O Corredor de Espera

Nas primeiras idas ao serviço de urgência, o novato estudante de Medicina nem sabe bem de que terra é. Não é bem uma guerra, mas podia ser. A FRONTAL traz-te as emoções de uma experiência universal em que o estetoscópio vale quase tanto quanto uma mezinha a São José. Ou ainda menos.

[Crónica]

[dropcap]O[/dropcap] corredor de espera das urgências parece um campo de batalha, cheio de esfaqueados, moribundos, deprimidos e gementes. Além, ouve-se um grito de mais um que acordou. Ali, de outro que não quer sair dos braços protectores dos filhos. Acolá, excruciante, capaz de pôr a léguas qualquer filme de terror, ouve-se os gorgolejos entrecortados por vómito e berraria de alguém que é submetido a uma endoscopia. Aos meus pés, mistura-se a lama do dilúvio que cai penosamente com as secreções de quem passa, sejam elas sangue, escarro ou o cozinhado do almoço. Ao fundo do corredor, mais perto da saída, um casal de crianças brincam nesse mesmo chão, felizes no seu chilrear, escarnecedoras do olhar desatento da mãe que sucumbiu finalmente ao cansaço. Um senhor com alguma idade verga-se para apanhar o seu lenço, provavelmente bordado pela mãe, e sorri aos pequenos rebentos, enquanto uma jovem deixa cair a carteira por não ter dedos suficientes para sacar de um cigarro e responder a uma SMS.

Entro no corredor e vejo os olhares a erguerem-se. A cravarem-me a nuca. Estás de branco, parecem eles dizer, estás de branco e não estás a fazer nada. Estás de branco e levas isso pendurado ao pescoço, como uma medalha de um santo qualquer. Estás de branco, um branco demasiado limpo e arrumado, de quem nunca andou a chuva. Despe esse branco, criatura.

Acelero o passo e entro para outra ala, ansiosa por escapar aos julgamentos do Corredor da Espera, mas fui demasiado lenta e perdi o meu assistente de vista. Volto a sair e engano-me na saída – entre macas a entrar e a sair, alguns “com licença” e “peço desculpa”, sou novamente lançada para o Corredor.

“Doutora, a minha mãe já aqui está há três horas.”

Fui apanhada. À minha frente encontra-se uma senhora de meia-idade, de braços cruzados, carente de respostas que eu não posso dar. Olha-me por cima dos óculos, desaprovadoramente, fixando o olhar no estetoscópio que trago ao pescoço. Juro a mim mesma que não o volto a trazer. Encolho-me dentro da bata branca que me cobre, qual armadura brilhante de um cavaleiro imaculado e patético, e balbucio as palavras mágicas habituais, demasiado baixo para serem ouvidas:

“Sou apenas aluna…”

A senhora olha-me nos olhos e os papéis inverteram-se. Nos seus olhos vejo a indignação e a revolta. Deixa de ser ela a vítima e passa a ser a agressora, a malfeitora prestes a agredir uma criatura frágil e indefesa. E ignorante.

“Ela está muito nauseada e prestes a vomitar e ainda ninguém lhe deu atenção.”

Antes que eu pudesse sequer pronunciar o meu lamento habitual, a senhora começou a relatar o que a tinha levado a trazer a sua mãe à urgência num domingo chuvoso, à noite. Fechei a boca e abanei a cabeça, tentando parecer, no mínimo, compreensiva. Mas os olhos revelam o que a boca não quer dizer e, se os meus desmascaravam a impotência e o pânico, os dela mostravam cansaço. Ouvi tudo, como um coelho apanhado numa gaiola. O que podia eu fazer? Não tinha em mim o poder, a capacidade, ou o computador necessários para poder ajudar a pobre senhora. Nem as minhas palavras lhe valeriam de alguma coisa – de que valem as palavras de quem ainda não conhece nada?

Entre um suspiro e mais um “Sabe doutora…”, lá me lembrei de perguntar à senhora se a mãe estava sentada, se tinha um saco, algo onde pudesse vomitar. Ela abanou a cabeça e eu, vendo a gaiola meia aberta, escapuli-me em busca do saco. Quando voltei, o rosto da senhora já não mostrava indignação. Só pena. Se de mim, dela, da mãe, do domingo chuvoso, não sei. Sorriu-me e agradeceu-me, deixando-me novamente sozinha num Corredor abarrotado.

Segui em busca do assistente perdido, evitando olhares carentes de atenção, suspiros de corações ainda não partidos e gritos exaltados de quem tem mais que fazer. Pensei na pobre senhora agoniada, sentada algures no meio do Corredor. Um dia, talvez conseguisse fazer algo mais. Um dia, pensei eu, talvez fosse ter com ela e lhe desse a mão e palavras de conforto, mostrando-lhe que o espírito de um médico, além de cansaço, está cheio de compaixão. Um dia, seria eu a sua médica e tirar-lhe-ia as dores e a náusea, e mandá-la-ia novamente para debaixo da chuva impávida. Para casa.

Para já, o saco foi o zénite da minha compaixão.

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Joana Moniz Dionísio é uma aluna do 5º ano de Medicina na FCM-NOVA. Apesar de ter nascido em Lisboa, viveu durante toda a sua vida em Alcobaça, até regressar novamente à capital para ingressar no ensino superior. Vem de uma zona conhecida pela sua doçaria conventual, mas as suas paixões e hobbies ignoram por completo a culinária, indo desde a Medicina, Literatura e História Universal até temas como a Cultura Oriental e Música Clássica. É colaboradora da revista FRONTAL desde Março de 2013 e foi no também nos idos de Março do ano seguinte que se tornou editora da secção Cultura. Desde Novembro de 2014 que assegura a função de Editora-Geral da FRONTAL. A autora opta pelo Antigo Acordo Ortográfico.

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