Sábado, dia 25 de Maio, realizou-se na Reitoria da NOVA a conferência Music Poetry & the Brain (MP&B). A FRONTAL marcou presença e agora conta-te (com algum delay) tudo o que se passou.
Quando um estudante de Medicina se desloca a uma conferência médica, sente-se inevitavelmente um tanto ou nada deslocado. Neste mundo, ele é o “estrangeiro”. Provavelmente faltam-lhe conhecimentos que só anos de prática garantem e a maioria das palestras aborda temáticas com as quais não estará inteiramente à vontade. Maioritariamente, os convidados acabam por apresentar investigações levadas a cabo por si ou pelos seus colaboradores, trabalhos super específicos e complexos que os leigos terão dificuldades em seguir. Resumindo: estas são conferências de especialidades, vocacionadas para especialistas; a restante população mundial sentir-se-á tão à vontade nestas como numa reunião de uma sociedade esotérica do Cambodja. Nestas aspecto, a MP&B não foi uma conferência médica habitual
Cavalgada das Valquírias – o mais reconhecido trecho das obras de Wagner
A organização do evento aparentemente esforçou-se para cumprir o objectivo de alargar o público-alvo além do grupo de neurologistas e neuro-cientistas. Existem muitas pistas que o indiciam. Em primeiro lugar, não podemos ignorar a singularidade da temática do evento, particularmente se pensarmos que este esteve ligado ao bicentenário do nascimento de Richard Wagner – de facto, não é de todo habitual vermos a medicina a aliar-se às artes (se pensarmos nas músicas que costumam passar nos blocos operatórios, temos a certeza que música-medicina é tudo menos uma relação óbvia), ou melhor, qualquer ciência exacta à inexactidão da expressão artística. Em segundo lugar, ao observarmos o painel de oradores, verificamos a presença de várias personalidades alheias à medicina e, a encerrar a tarde, António Damásio, que será, sem qualquer dúvida, um dos mais reconhecidos cientistas portugueses e dono da capacidade única de conseguir cativar simultaneamente, através de um discurso em que ciência hardcore se mistura com os mais variados conhecimentos coloquiais, o especialista e o leigo. Com intenção ou sem ela, o facto é que uma multidão mordeu o isco e a Reitoria acabou por se encher de pessoas que tanto levaram debaixo do braço livros sobre a família Wagner, como um molho de artigos científicos.
E COM WAGNER COMEÇA O DIA
O dia começou cedo e em grande. Enquanto o secretariado ainda estava ocupado a receber os retardatários, já o auditório se enchia de música numa performance orquestrada por Louise Wagner – nada mau para começar uma maratona de oito horas de palestras. Logo de seguida, chegou a vez dos organizadores tomarem a palavra, num díptico que foi intitulado de Prelúdio. Enquanto que Armando Sena, professor da FCM-NOVA, se entreteve a interrogar sobre a possibilidade do mesmo cérebro apreciar simultaneamente a música de Wagner e Verdi (contemporâneos, compositores nos antípodas um do outro), Robert Zatore preferiu explicar como o cérebro humano percepciona a música e a sua relação com o prazer. Apesar de partirem de dois pressupostos diferentes (não por acaso, Sena invocou os mestres do séc. XIX e Zatore recuou até aos primórdios da humanidade para recordar que existem vestígios de flautas de osso com mais de 35.000 anos de antiguidade), os dois professores acabaram por dar o mote a uma mesma questão que acabou por ser transversal a toda a conferência: afinal, o que tem a música de tão especial (se o tem) e que respostas faz despoletar no cérebro para lhe atribuirmos tal singularidade?
Verdi ou Wagner? Tal como no futebol, quem ganha é a Alemanha.
SÃO NEUROCIÊNCIAS, ESTÚPIDO!
Com o fim do prelúdio, entraram em cena os cientistas, prontos para desvendar os mistérios da relação música-cérebro. Representaram aquele que foi o core da conferência – apelidado pela organização como Acto I – deixando a plateia interessada quanto aos mistérios dos circuitos neuronais. Como a música é percepcionada pelo cérebro, que áreas particulares são responsáveis pela sua interpretação (e por isso se encontram activadas aquando da audição de música), que influência pode a música ter na plasticidade cerebral e como esta pode servir de chave para desvendar alguns dos muitos mistérios por desvendar do cérebro foram algumas das perguntas que foram sendo levantadas ao longo do Acto I.
Stefan Koelsch, um professor de biopiscologia, foi o ponta-de-lança e logo em dose dupla (com um intervalo entre as duas palestras ocupado por Daniele Schön, que abordou a influência da música na aprendizagem da linguagem e na plasticidade cerebral, assunto novamente versado mais à frente). Apresentou ideias interessantes sobre a semântica da música, isto é o estudo da sua capacidade de transmitir significados e como estes significados são interpretados. Num segundo momento, avançou para uma explicação sobre como a música desperta emoções no nosso cérebro, argumentando que o faz através da activação dos sistemas límbico e para-límbico – apontados como o centro dos mecanismos adaptativos neuro-emotivos – e esforçou-se por elucidar os vários componentes da compreensão musical (avaliação, composição, expectativa, imaginação, etc.). No final, deu enfoque à ideia de que as emoções evocadas pela música são emoções-reais e não meras ilusões sensoriais.
De seguida, foi a vez de Virginia Penhune expor as suas ideias. Defendeu que a estrutura musical se divide, essencialmente, em melodia e ritmo e dedicou a maioria do seu tempo a este último. Novamente, foram invocadas diversas áreas cerebrais envolvidas na percepção da musica, começando nas necessárias para acompanhar ritmos simples até às que estão em actividade quando alguém está a dançar – o corolário é de que todo o cérebro pode estar envolvido, desde as áreas auditivas até às motoras, passando pelas responsáveis pela memória, no processo da incorporação da informação musical.
As áreas envolvidas na percepção musical
Lutz Wanke aprofundou a questão da influência da música na plasticidade cerebral, questionando-se sobre as diferenças entre os cérebros de músicos – e entre estes, os excepcionais – e as pessoas vulgares. Partindo do facto de que os músicos profissionais começam a sua formação em tenra e idade e continuam a praticar durante toda a vida – o que lhes permite tocarem mais de 1800 teclas por minuto – o cientista suíço conclui serem espécimen perfeitos para o estudo de alterações neuroanatómicas. A informação mais extraordinária que terá apresentado foi a de que artistas musicais possuem menor densidade de conexões entre as diversas áreas do cérebro e, contrariamente, exibem precisamente o contrário numa área particular – a área peri-silviana – o que levou o investigador a classificar este processo como a “especialização especializada”
Já a meio da tarde, a patologia entrou em campo pela mão de Timothy Grifihs, um professor de neurologia cognitiva em Newcastle. Este investigador descreveu diversas anormalidades na cognição cerebral, desde os simples acufenos até a patologias mais complexas – e fascinantes – como a amúsia e alucinações musicais.
Com esta palestra, deu-se por encerrada a vertente “científica” da MP&B (apenas retomada na sessão de encerramento). Apesar de cada um dos oradores ter apresentado argumentos particulares, estes acabaram por se encontrar através de algumas pontes unificadoras entre os vários trabalhos. Quase todos falaram sobre a influência particular da música na plasticidade cerebral e das áreas cognitivas envolvidas na sua percepção e interpretação. Muitos vincaram a importância de um treino precoce como garante para atingir a excelência na performance musical. Todos foram unânimes, implicita ou explicitamente, a vincar uma ideia: a música é fundamental para o Homem e sua companheira desde tempos imemoriais, ainda mais hoje ao poder representar um contributo importante para o estudo dos mistérios das neurociências.
E AGORA: UM POUCO DE MÚSICA!
Paulo Maria Rodrigues e Helena Rodrigues terão sido responsáveis pelo prelúdio do Acto II, num dos momentos mais surpreendentes (e finalmente multidisciplinar) de todo o dia. A dupla de professores universitários veio à Reitoria apresentar uma série de projectos musico-performativos – com um cunho social marcado – sob a égide duma ideia orientadora: a música pode (e deve) ser uma ferramenta para o desenvolvimento da Humanidade. Pela primeira vez ao longo do dia não se ouviu falar no lobo da ínsula e do hipocampo; no fim da apresentação, com a ajuda de um breve trecho em piano e um discurso cuidadosamente enunciado em fade-out, ficámos inteiramente convencidos de que, de facto, a música enquanto forma de comunicação – no espírito de Wagner – pode induzir mudanças para uma sociedade melhor.
Oliver Sachs influenciou o Acto II através deste vídeo
O Acto II da MP&B foi dominado por musicólogos. Foi a parte da conferência que terá menos interessado aos amantes das neurociências e, contrariamente, fascinado os “Wagnerianos”. A estrutura formal da obra do compositor alemão foi o tema central das duas conferências, durante as quais se entreabriu a porta sobre o método utilizado por Wagner para despertar as mais variadas emoções (quase como se um guitarrista dedilhasse terminações nervosas para obter uma resposta emocional precisa). Alegria, tristeza, horror, melancolia, todas o compositor dominava com mestria – à conta da associação entre de leitmotivs com personagens e elementos -, não fosse um defensor da ideia de que existem emoções apenas transmissíveis pela música (tese confirmada por Damásio mais à frente)
FINALMENTE, DAMÁSIO!
Se a conferência MP&B fosse um festival de verão, António Damásio seria o cabeça de cartaz (e logo ao nível de uns Radiohead). O cientista português sediado em Los Angeles é uma referência a nível mundial, a sua investigação sobre a cognição emocional e consciência revolucionária e os seus livros bestsellers mundiais. Não é de estranhar, portanto, que as expectativas estivessem altas.
O neurocientista conseguiu logo no primeiro momento conquistar a audiência com o seu carisma (ou terá sido pela percepção de se estar a ouvir uma das mentes mais brilhantes da actualidade?) e logo iniciou uma divagação onde foi capaz de resumir o seu pensamento em relação à formação de emoções e relevância do cérebro “emocional” enquanto sistema de controlo homeostático superior.
Neste sentido, a música não teve o enfoque que alguns esperariam, contudo ficou longe de ser esquecida, com Damásio a dedicar a segunda parte da sua oração para responder à seguinte pergunta: serão as emoções despoletadas pela música diferentes das restantes? Damásio respondeu que sim e ninguém na plateia foi capaz de contestar tal ideia.
Damásio abordando a importância da dicotomia emoções-racionalidade
O dia acabou tarde para os que se deslocaram à Reitoria no sábado passado – 10 horas e 14 conferências depois de Louise Wagner ter dado o tiro de partida, poucas pessoas terão tido capacidade para tecer qualquer comentário. No entanto, dificilmente alguém terá ficado indiferente às ideias apresentadas pelos oradores. Da ciência mais elementar à subjectividade inerente à produção musical, um pouco de tudo que fica no meio foi falado na MP&B – sem esquecer, obviamente, que a temática da conferência teve como ponto de partida as neurociências, Claro que a transversalidade entre os domínios da música e ciência nunca foi verdadeiramente alcançada por nenhum dos palestrantes, pelo que quem a procurava poderá ter saído um tanto desapontado.
Em conclusão, acabou por haver muito cérebro, pouca música e nenhuma poesia. Mas isso também não é necessariamente mau – não estivéssemos nós em Medicina.