Muitas coisas têm sido ditas, pensadas, suspeitadas e escritas sobre o tema: chama-se Acesso ao Internato Médico e já fez correr muita tinta, assim como motivou reuniões e encontros, mais ou menos formais, os ditos “ajuntamentos de pessoas”, de modo a resolver esta questão que há tantos anos permanece em aberto.
A ANEM, enquanto representante de todos os estudantes de Medicina em Portugal, manifestou a sua posição com um comunicado lançado ontem à noite, e a posição apresentada é, a bem dizer, manifesta do seu desagrado, repetido um ano depois da última tentativa de levar a cabo o projeto de Decreto. O desagrado não será para menos, quer para todos os que fazem parte da ANEM, quer para os que, meio adormecidos, se fazem por eles representar sem muito se perturbarem com estes assuntos.
Definir o provisório
Após anos de indecisão e burocracias logísticas, a conhecida prova provisória de seriação (o polémico “Harrison”) terá por fim o seu objetivo cumprido e dará lugar à nova e definitiva Prova Nacional de Seriação e, com tom de novidade, Avaliação dos 6 anos de curso (PNAS).
Após a polémica de prazos e modelos, chegam agora dados mais concretos acerca da sua implementação.
Ao abrigo do artigo 13, a nova prova terá inicio em 2017, ainda que em data imprecisa, sendo que os seus moldes, a título mais uma vez indefinido, serão definidos por uma Comissão a criar a posteriori pelo Ministério da Saúde para o efeito.
Sem mais especificidades, o documento deixa em aberto o futuro de vários estudantes de Medicina, que perante currículos inadaptados às novas necessidades e desafios põem em causa a formação e o próprio acesso à especialidade.
O artigo abre ainda a hipótese de o acesso à especialidade médica ser condicionada por uma nota mínima de acesso, a qual continua indefinida e será alvo de posterior discussão.
A ANEM manifesta-se contra as sugestões previstas no decreto-lei, apesar de concordar com a necessidade de alteração do modelo vigente. Esta federação considera não só que a prova não deverá ter caráter avaliativo, por acreditar que a conclusão do curso de Medicina em Portugal se apresenta como um garante da qualidade dos recém-graduados, reiterando que quaisquer alterações impostas no regime do Internato Médico deverão ser implementadas num prazo de 3 anos (a contar da data da aprovação do decreto), ou seja, em 2018.
Enquanto defensora e representante dos direitos dos estudantes de Medicina, a ANEM defende a sua integração na comissão a criar para a elaboração do modelo da PNAS, de modo a dar o seu contributo na defesa dos interesses daqueles por quem se fazem representar.
10%, 25%, e ficou nos 20%!
Sendo um dos temas mais polémicos, o decreto-lei afirma que o acesso à formação específica será determinado pela classificação final obtida na PNAS, juntamente com a média ponderada entre as diferentes escolas médicas.
Após a batalha das percentagens, o governo apresenta o modelo 80% (PNAS) + 20% (Média Ponderada) como sendo o mais justo no sentido da valorização do percurso académico do estudante.
No entanto, vários atores do processo consideram que a ponderação das médias entre as diferentes escolas médicas nunca constituirá um modelo perfeitamente justo, dadas as discrepâncias de valores entre estas a nível nacional. Num cenário de autonomia das faculdades, onde reinam diferentes tradições e estruturas curriculares, a premissa da igualdade definida pelo decreto poderá ficar condenada logo à partida.
A ponderação das médias entre as diferentes escolas médicas nunca constituirá um modelo perfeitamente justo
Por outro lado, não fica totalmente esclarecido se a contabilização da média será apenas para os futuros colocados no Mestrado Integrado em Medicina, ou se abrange igualmente os que já se encontram em formação. A justiça e igualdade de oportunidades rienvendicadas pelos estudantes permanecem com resposta incerta.
Ciente dos riscos desta medida, e atentos às especificidades locais, a ANEM defende que a classificação do curso não deve ser usada para efeitos de acesso à especialidade, mas apenas para efeitos de desempate. Sendo que, em caso de ser considerada, esta deve ser estatisticamente equiparada através do método avançado pela ANEM e consensualizado pelo Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP), baseado no Z-Score (modelo que anula as diferenças entre as médias finais de Mestrado das várias escolas, estandardizando essas médias de licenciatura).
E o Ano Comum?
Dadas as características particulares da estrutura curricular dos diversos cursos de Medicina em Portugal, em que a ausência de um ano realmente profissionalizante se torna um facto, o Ano Comum surge como um meio, se não o único, para garantir o exercício da Medicina em prol da autonomia e da qualidade dos cuidados de saúde do Sistema Nacional de Saúde.
Nos últimos anos, dada a indefinição sobre a sua extinção, muitas das escolas médicas não dispuseram de tempo e recursos suficientes para garantir as alterações necessárias à sua estrutura curricular, de forma a se adaptarem às novas e já conhecidas exigências das alterações do internamento médico. Perante isto, a manutenção do Ano Comum, pelo menos num tempo que permitisse a adaptação, sempre foi uma das exigências dos vários intervenientes no processo. No seguimento destas reivindicações, a ANEM defende que o 6º ano não é suficiente para que um médico recém-formado possa adquirir competências clínicas em conformidade com um período de formação verdadeiramente profissionalizante, devido às contingências impostas pelo contexto académico da formação clínica, pela tese de Mestrado e preparação para a Prova Nacional de Seriação.
A ANEM defende que o 6º ano não é suficiente para que um médico recém formado possa adquirir competências clínicas
No entanto, por motivos logísticos e de rentabilização de recursos, o governo manifesta neste decreto a intenção da extinção do Ano Comum em 2018, assumindo um caráter provisório até à data. Para tal, será tida em conta a profissionalização introduzida no último ano dos cursos de Medicina em Portugal, avaliada por um Grupo de Trabalho composto por várias entidades (Ministério da Saúde, Conselho Nacional do Internato Médico, Ordem dos Médicos e Escolas Médicas) – grupo de trabalho no qual a ANEM pretende ser incluída, por acreditar que poderá dar contribuições que melhor refletem as verdadeiras condições pedagógicas.
Autonomia… say what?!
Sendo a autonomia médica uma premissa fundamental no exercício de uma Medicina de qualidade em prol da defesa dos interesses dos pacientes, o tempo necessário para a sua aquisição constitui alvo de intensa reflexão e polémica, já que se tratam de questões que se encontram sobre o escrutínio intenso da opinião pública.
O governo considera no artigo 3 deste decreto lei, que “o exercício autónomo da Medicina é reconhecido a partir da conclusão do primeiro ano de formação”. Assumindo o carácter transitório, de 3 anos, do Ano Comum, este constituirá a condição primária para a aquisição da autonomia, contrariando o modelo actualmente vigente que define dois anos de formação na especialidade como pré-requisito para a sua aquisição. Findado esse período, este estatuto é obtido no final do primeiro ano da especialidade.
Dadas as polémicas que actualmente atingem e afectam o funcionamento dos serviços de saúde, o exercício clínico dos jovens médicos poderá ser posto em causa, já que estes constituem parte significativa dos recursos humanos em situação de emergência hospitalar.
A possibilidade da criação de uma falsa autonomia poderá por em causa a formação dos jovens médicos, bem como levar ao agravamento da logística e dos serviços prestados aos cidadãos.
O que dizem os sindicatos?
Após a divulgação do famigerado Decreto-Lei reformador do Regime do Internato Médico, a reação por parte dos sindicatos médicos não se fez esperar. À semelhança da ANEM, tanto a Federação Nacional dos Médicos (FNAM), como o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) foram consensuais na crítica ao conteúdo do documento, acusando o Ministério da Saúde de estar a deteriorar um modelo formação pós-graduada que é «reconhecidamente um dos melhores da Europa».
«Inaceitáveis retrocessos à inegável qualidade da formação médica no nosso País», assim cataloga a FNAM as propostas apresentadas. O Sindicato aponta como principal retrocesso a implementação de um horário semanal com 18 horas destinadas à prática no Serviço de Urgências, num rol de críticas que cobrem pontos polémicos como a possibilidade da realização do Internato em organizações privadas, o fim do Ano Comum ou a ausência de qualquer valorização ou compensação para os Orientadores de Formação.
O SIM, em comunicado oficial, faz voz das críticas da FNAM e alerta ainda para a necessidade de clarificar o artigo 28.º/3, o qual acusam deixar entreaberta a porta para reconhecimentos de formação por parte da Ordem dos Médicos à margem do Internato. De lembrar que até à década de noventa existiu um regime de “internato voluntário”, o qual permitia a realização de formação pós-graduada (sem compensação remuneratória) em especialidades para as quais o candidato não conseguiu colocação através da nota obtida na Prova Nacional de Seriação; é contra o ressurgimento deste regime particular que o SIM se parece opor.
O Sindicato Independente afirma não compreender o porquê das “inovações” propostas pelo Governo, deixando palavras amargas em relação a todo o processo negocial, opinião que, aliás, é partilhada pela Comissão Executiva da FNAM. Os dois Sindicatos parecem, pois, unidos na recusa das alterações ao Regime do Internato Médico, antevendo-se, portanto, uma grande resistência por parte destas duas estruturas – e à qual a Ordem dos Médicos não deverá ficar alheia – à implementação efetiva das propostas do Ministério da Saúde.