CEDOC: Investigação em Quatro Frentes

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Hoje, mais do que nunca, a Medicina faz-se de Investigação. O Médico, antes de o ser, tem também de entender os mecanismos e raciocínios pelos quais os dogmas da Medicina de hoje foram um dia meras hipóteses num papel. Tem que compreender que uma simples descoberta que envolve uma molécula pode ser o alicerce para a compreensão (e cura) de uma doença.

A FRONTAL foi (re)descobrir o CEDOC – Chronic Diseases Research Center e as suas mentes de vanguarda nas suas quatro principais áreas: Saúde Mental, Doenças Raras, Oncobiologia e Metabolismo e Inflamação.

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Professor Caldas de Almeida – Professor Catedrático de Psiquiatria e Saúde Mental da NOVA Medical School
Professora Gabriela Silva - Docente na NOVA Medical School e líder da equipa dedicada ao estudo da terapia génica
Professora Gabriela Silva – Docente na NOVA Medical School e líder da equipa dedicada ao estudo da terapia génica
Professora Ana Félix – Professora Associada de Anatomia Patológica da NOVA Medical School
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Professora Doutora Maria João – Prémio De Castro, Heymans and Neil de 2016 e Prémio Ephar Young Investigator de 2014

 

PROF. CALDAS DE ALMEIDAPSYCHIATRIC EPIDEMIOLOGY AND LIAISON PSYCHIATRY

Em que medida é que a investigação pode ser útil no levantamento das necessidades nos cuidados de saúde mental, em especial no que diz respeito a populações menos protegidas ou com necessidades particulares, como os idosos ou a população prisional?

A investigação não é só útil, ela é indispensável para o levantamento das necessidades de cuidados de saúde mental. Os estudos epidemiológicos, em particular, têm neste campo um papel fundamental. Eles permitem determinar a prevalência das doenças mentais a nível da população geral e de grupos especialmente vulneráveis, avaliar o grau de incapacidade associado a estas doenças e estimar o nível de cuidados que recebem. É fundamentalmente a análise destes dados que torna possível estimar as necessidades de cuidados de saúde mental de uma forma rigorosa. Tem sido graças a estudos epidemiológicos deste tipo que, nos últimos anos, se verificaram progressos muito significativos no conhecimento sobre as necessidades de cuidados de saúde mental e a forma como os diferentes sistemas de saúde conseguem responder adequadamente a estas necessidades. Uma das iniciativas que mais têm contribuído para estes avanços é a World Mental Health Surveys Initiative, coordenada pela Universidade de Harvard, que levou à realização de estudos nacionais em cerca de 30 países, entre os quais Portugal. Foi graças a este estudo epidemiológico nacional, realizado no nosso país pelo Departamento de Saúde Mental da Nova Medical School, que passámos a ter em 2009 uma visão de qual é a verdadeira prevalência das perturbações psiquiátricas entre nós, quais são os fatores associados a estas perturbações, quais as suas consequências, quais as suas necessidades de cuidados de saúde mental que são satisfeitas e quais as que não o são.

Uma das vertentes pesquisada no CEDOC é o desenvolvimento de algoritmos que permitam estratificar o risco de episódios de depressão e de ansiedade. Tendo em conta a prevalência destes distúrbios na população portuguesa, qual a importância da detecção de grupos de maior risco e a que nível deverão ser aplicados estes instrumentos nos cuidados de saúde?

A detecção de grupos de risco é fundamental para a prevenção primária e secundária das doenças. Dada a elevada prevalência e a enorme carga das perturbações depressivas e de ansiedade, o conhecimento dos grupos de maior risco para estas perturbações é uma prioridade importante de saúde pública. A sua aplicação deve ter lugar sobretudo a nível da comunidade e dos cuidados primários. Na comunidade, as escolas e os locais de trabalho são contextos especialmente favoráveis para a aplicação de estratégias de deteção de situações de risco de doença mental, observando-se atualmente um enorme desenvolvimento de programas nestes domínios em muitos países. Os cuidados primários, sendo a porta de entrada do sistema de cuidados de saúde e tendo um contacto estreito com as populações ao longo das várias fases da vida, oferecem naturalmente condições únicas para a aplicação de instrumentos de screening que permitem a deteção de novos casos.

Foi co-autor de um artigo publicado em 2016 no International Journal of Social Psychiatry que relaciona o desemprego com níveis mais elevados de mal-estar psicológico nas famílias. Qual é a importância desta relação no actual contexto de crise económica e de que maneira pode ser prestado o suporte adequado nestes casos?

As pessoas desempregadas constituem um grupo especial de risco para a ocorrência de problemas de saúde mental. Assim sendo, é de esperar que as crises económicas levem a um aumento da morbilidade psiquiátrica nas populações e afectem em especial as pessoas que perdem os seus empregos. Isso mesmo é comprovado pelos primeiros resultados de um estudo sobre o impacto da crise económica sobre saúde mental em Portugal, que estamos a desenvolver atualmente com financiamento europeu, que mostram uma associação significativa entre problemas de saúde mental, desemprego, queda de rendimentos e dificuldades financeiras. Mas não são só as pessoas que ficam desempregadas que são afectadas. Como mostra o estudo coordenado por Diana Frasquilho, no âmbito da sua tese de doutoramento nesta Faculdade, a saúde mental dos filhos de desempregados é também atingida.

O suporte nestes casos passa por medidas sociais e de apoio activo ao emprego que permitam mitigar a magnitude e os efeitos do desemprego e programas de apoio à resolução de dívidas das pessoas desempregadas. A organização de programas específicos de prevenção de problemas de saúde mental deve também ser promovida a nível dos cuidados primários de saúde e das escolas.

Nas últimas décadas assistimos a avanços notáveis nas técnicas de neuroimagiologia, genómica e biologia molecular, mas o progresso tecnológico nem sempre se faz acompanhar de utilidade directa para os doentes. Qual foi, na sua opinião, a mudança mais significativa para a saúde mental na última década?

O impacto destes avanços no tratamento pode não ser imediato. E a verdade é que os avanços acima mencionados não levaram ainda a desenvolvimentos significativos de novas armas terapêuticas biológicas. No entanto, eles vão certamente resultar em progressos terapêuticos importantes e parece-me legítimo esperar que todo o avanço que se está a verificar a nível das neurociências irá, dentro de algum tempo, levar à criação de novos métodos de tratamento das doenças mentais muito mais eficazes que as atualmente disponíveis. Estou certo de que os atuais estudantes de medicina irão praticar uma medicina com uma capacidade de intervenção em relação às doenças psiquiátricas muito superior à que temos agora e que isso se deverá em grande aos progressos que estão atualmente em curso a nível da investigação.

Há também que reconhecer que os avanços registados a nível das intervenções psicossociais têm também contribuído para melhorar de forma significativa a nossa capacidade de intervenção no tratamento e reabilitação das pessoas com doenças mentais. Muitas situações clínicas que num passado não muito longínquo eram consideradas não tratáveis e que, nalguns casos, estavam condenadas a internamentos prolongados em instituições psiquiátricas, podem hoje recuperar e ter uma boa integração na sociedade, se tiverem a possibilidade de usufruir de programas terapêuticos adequados, envolvendo intervenções medicamentosas e psicossociais bem integradas.

Na minha opinião, verificaram-se várias mudanças significativas para saúde mental na última década. Por exemplo, a maior atenção em relação os problemas dos direitos humanos das pessoas com doença mental, vítimas no passado de discriminação e frequentes abusos de vária ordem; a ênfase crescente na prevenção das doenças e na promoção da saúde mental; a melhoria enorme verificada nos serviços de saúde mental, com uma crescente componente de cuidados na comunidade e de programas centrados nos problemas do doentes; e a cada vez maior integração da saúde mental no sistema geral da saúde, integração que tem contribuído para diminuir o estigma associado às doenças mentais e para o desenvolvimento de modelos colaborativos de cuidados.

Na sua perspectiva enquanto médico psiquiatra e investigador, qual a sua opinião sobre o actual ensino da psiquiatria nas escolas médicas?

Penso que tem melhorado muito. Regra geral, o ensino da psiquiatria e saúde mental tem vindo a dispor de mais tempo, e a ser desenvolvido ao longo do curso, de uma forma mais progressiva e mais integrada com o ensino das outras áreas, o que é bom. Os estágios práticos têm vindo também a aumentar a sua duração, o que é essencial para um contacto direto dos alunos com os problemas de saúde mental e para uma aprendizagem baseada na prática clínica. É verdade que muito há ainda a fazer para assegurar um aproveitamento pleno destes estágios, melhorando a capacidade de acolhimento dos serviços onde eles se realizam e diminuindo o número de alunos por docente ou tutor. Mas, em Portugal, assim como em muitos outros países, deram-se já passos importantes neste domínio. Penso também que o ensino tem vindo a colocar maior ênfase na importância de uma perspectiva mais atenta às contribuições da investigação científica oriunda das várias disciplinas envolvidas na Psiquiatria e que os alunos começam a ser mais estimulados a interessar-se pela investigação científica.

No entanto, nem tudo está bem. Apesar de todos os progressos, o ensino da saúde mental continua a não estar suficientemente articulado com as outras áreas do curso. Há que assegurar uma formação mais integrada a todos os níveis. Em muitos casos, também, o ensino continua a estar demasiado centrado na prática hospitalar. Importa, na minha opinião, dar aos alunos a possibilidade de participar ativamente, e mais prolongadamente, em cuidados prestados na comunidade. É a este nível que se encontram as situações clínicas que, como médicos, irão encontrar mais frequentemente na sua prática clínica futura. É também a este nível que poderão confrontar-se com aspectos importantes das doenças mentais graves que se observam predominantemente nas fases de tratamento na comunidade.

PROF.ª GABRIELA SILVA – GENE THERAPY

Olhar para o futuro: Terapia Génica

A terapia génica consiste na transferência de material genético para uma célula, tecido ou órgão com o objectivo de aliviar sintomas, curar doenças ou abrandar a sua evolução. Um dos factores mais importantes para a eficácia da terapia é o método de transferência do material genético, sendo que os meios de transferência do material genético, designados de vectores, podem ser classificados como virais ou não-virais. Os vectores virais apresentam uma maior eficácia na transferência de material genético, mas acarretam o risco de vir a desenvolver novos sintomas provocados por material genético viral inadvertidamente transcrito. Desde a altura do primeiro caso clínico, em 1990, até à actualidade, a terapia génica evoluiu consideravelmente, sendo que uma das áreas que mostra ser mais promissora é o tratamento de retinopatias, devido à acessibilidade anatómica, características imunes, dimensão reduzida, compartimentalização e possibilidade de controlo contra-lateral. Um dos estudos que chamou a atenção para esta terapêutica ocorreu em 2001, que mostrou melhorar de forma significativa e duradoura a visão a cães com Amaurose Congénita de Leber (ACL); desde essa altura, já foram iniciados vários ensaios clínicos em seres humanos para tratar a mesma patologia e, até 2013, têm-se mostrado eficazes, duradouros e seguros.

No Centro de Estudos de Doenças Crónicas da NOVA Medical School – Universidade Nova de Lisboa (CEDOC), a Professora Doutora Gabriela Silva tem-se dedicado ao estudo da terapia génica aplicada a retinopatias, nomeadamente retinopatias diabéticas (RD) e prematuras e à ACL. O principal objectivo da equipa da Professora é desenvolver vectores não-virais: trabalhos recentes que a equipa tem vindo a desenvolver indicam que polímeros como o ácido hialurónico e quitosano mostram um bom potencial como vectores não-virais eficazes e, inerentemente, mais seguros. Relativamente à origem destes materiais, o ácido hialurónico é extraído do humor vítreo do olho, enquanto o quitosano é um material derivado da quitina, extraída do exosqueleto de crustáceos e que permite, portanto, uma valorização de resíduos.

Relativamente à RD, esta é, nas palavras da Professora Doutora Gabriela Silva, um enorme desafio para a terapia génica, pelo simples facto de não ter uma etiologia definida; isto é, não ter um ou mais genes responsáveis pelo desenvolvimento da doença. Contudo, a investigação nesta área tem permitido identificar uma série de moléculas importantes na génese e progressão da doença e a terapia génica poderá dar um contributo importante na reposição dos níveis normais ou na inibição da expressão de determinadas moléculas. Em 2013, a Fundação de Ciência e Tecnologia premiou a Professora com uma bolsa para o projecto Targeting the renin-angiotensin system for the treatment of retinal diseases, que surgiu de uma conjugação de interesses entre a Professora Doutora Gabriela e a Doutora Sónia Simão, investigadora de pós-doutoramento que integrou a equipa após ter concluído o seu doutoramento na área da hipertensão arterial. Como a hipertensão arterial parece contribuir para a RD, este projecto pretende demonstrar que o sistema renina-angiotensina tem um papel significativo na RD e que poderá ser um alvo terapêutico.

Uma outra área de interesse da Professora é a optimização dos sistemas de expressão génica baseada em plasmídeos. O sistema desenvolvido pela equipa tem mostrado excelentes resultados na manutenção a longo prazo da expressão de um gene terapêutico, que é particularmente relevante nas mutações em que há perda de função e, como tal, na ausência de proteína funcional, o que leva a uma condição patológica.

Além de retinopatias, a terapia génica tem sido utilizada em patologias oncológicas, monogénicas e cardiovasculares, entre outras. Com cerca de 1831 ensaios clínicos em 31 países em 2012 e com a aprovação, no mesmo ano, do primeiro tratamento à base de terapia génica – o Glybera®, para o tratamento da deficiência familiar da lipoproteína lipase – é seguro dizer que a terapia génica se tornará uma ferramenta à disposição dos clínicos para melhorar a qualidade de vida dos doentes.

PROF.ª ANA FÉLIX – TUMOR MORPHOLOGY AND MICROENVIRONMENT

Como Médica e Investigadora na área de oncobiologia, quais considera as maiores lacunas atualmente existentes na oncologia relativamente à integração e aplicação dos conhecimentos científicos na prática clínica?

É desde logo importante ressaltar que alguns conhecimentos científicos podem não ter uma tradução imediata em alterações práticas na conduta clínica. Em muitas circunstâncias, o conhecimento científico teórico necessita de tempo para a sua avaliação nas práticas existentes; e pode necessitar da criação de instrumentos ou condutas para que se tornem relevantes no exercício prático. De um modo geral, é possível afirmar que, se há conhecimentos científicos que não estão na prática clínica, é porque: ou os clínicos que executam essas práticas não possuem esses conhecimentos; ou não os aplicam porque ainda não existe evidência de como os pôr em prática. Identifico a formação contínua ao longo da vida dos actores da prática clínica como o principal modo de integrar conhecimentos científicos novos na prática. Esta formação deve ser fruto, não só da necessidade, mas sobretudo de um desejo de sempre fazer mais e melhor o trabalho que temos de executar. É sempre necessário estimular essa vontade; não devemos ficar dependentes da ética e da praxis de cada um dos protagonistas em cuidados de saúde; será sempre importante assegurar a obrigatoriedade de recertificação dos profissionais de saúde. Deste modo, poderá ser mais fácil e mais rápida a integração e aplicação de novos conhecimentos científicos na prática clínica.

Sendo o cancro uma doença multifatorial, dotada de enorme complexidade a nível científico e clínico, e com uma transformação epidemiológica notável nas últimas décadas, o que acha ser emergente no que concerne à abordagem política, social e familiar desta “doença do futuro”?

Não considero que seja uma “doença do futuro”, já é uma doença do presente. Não acho que a perspectiva política, social e familiar, ou mesmo económica, deva ser específica para determinadas doenças. O critério geral de organizar toda a acção e cuidados médicos deve ser centrado numa perspectiva humana e pessoal, guiada por escolhas que valorizem a pessoa que sofre, e não a doença. Com esta perspectiva podemos consequentemente detalhar abordagens ou políticas que respondam melhor e em cada momento ao Doente e à sua doença.

Uma das vertentes da investigação que desenvolve no CEDOC centra-se no cancro do colo do útero, um cancro ainda bastante prevalente na população portuguesa face ao aumento da taxa de cobertura geográfica dos rastreios, ao desenvolvimento de vacinas contra o HPV bem como a sensibilização para os fatores de risco inerentes. O que considera ter sido o maior avanço desenvolvido na última década ao nível da prevenção, diagnóstico e tratamento do cancro do colo do útero? Qual pensa ser o impacto, a longo prazo, na incidência desta doença após introdução da vacina contra o HPV no Plano Nacional de Saúde?

O avanço maior nesta área é, como sugere, a introdução da vacina contra o HPV6, 11, 16 e 18 no plano nacional de vacinação. O impacto é estimado iniciar-se dentro de cerca de 20 anos, após o início da implementação da vacinação. A vacinação tem uma taxa de cobertura nacional excelente; e, se assim prosseguirmos, poderemos nessa altura ver resultados. Mas é importante realçar que esta perspectiva futura não deve gerar uma atitude de remeter este assunto para o passado, e pensar que não há mais nada a fazer. O impacto da vacinação na epidemiologia do Carcinoma do colo do útero é ainda uma das áreas mais estudadas e que mais controvérsia tem levantado sobre o modo de actuação futura e sobre as consequências na população. Por isso existem e são necessários mais estudos prospectivos para avaliar o real impacto da vacinação e quais são as melhores práticas de rastreio da população vacinada; pois a vacina usada apenas protege dos principais tipos (corresponde a 67% dos carcinomas, usando a vacinação actual).

Tanto o metabolismo das células tumorais como o seu microambiente tem sido alvo de grande interesse na oncologia, sobretudo pelo seu envolvimento e alteração durante a transformação neoplásica, surgindo novos biomarcadores que permitam realizar um diagnóstico e prognóstico mais precoces e ainda potenciais alvos terapêuticos. Quais os principais alvos de interesse do seu grupo de investigação nesta área?

Os alvos de interesse na investigação do grupo estão intimamente ligados à minha actividade hospitalar. No IPOLFG, participo na consulta de decisão terapêutica em tumores ginecológicos desde 1998 e, desde essa, data tenho-me dedicado ao diagnóstico e à investigação em ginecologia oncológica. O grupo tem desenvolvido duas linhas principais de investigação, em neoplasias do colo do útero e do ovário, por razões distintas (associadas à sua frequência e à agressividade biológica). Nessas áreas temos desenvolvido a “expertise” das duas investigadoras principais: a minha, no diagnóstico (associação do HPV ao carcinoma do colo uterino) e do papel da matriz extracelular em oncologia; e a da Prof. Jacinta Serpa, em biologia molecular, em especial em metabolismo, e temos investigado principalmente em tumores ginecológicos.

Uma das últimas investigações científicas na qual participou, publicada na revista Tumour Biology em 2015, levanta a hipótese do lactato estar envolvido na progressão do cancro do colo do útero apontando ainda o monocarboxylate transporter 1 (MCT1) como um possível alvo terapêutico. Perante este resultado, qual a progressão atual desta investigação e quais os passos seguintes após validar o MCT1 como alvo terapêutico no cancro do colo do útero? Teria um impacto a curto prazo na clínica?

Seria óptimo que assim fosse, mas temo que não seja para um futuro próximo. O MCT1 é um interessante transportador que não é exclusivo do lactato, pelo que a regulação da sua acção tem importantes efeitos celulares. Pensamos que será difícil, de uma forma simples, bloquear o transportador e obter imediatos efeitos terapêuticos no desenvolvimento e progressão da doença sem custos sistémicos. O que estamos a fazer, na sequência deste estudo, é identificar os factores de regulação deste transportador, alguns dos quais já são parcialmente descritos, e conhecê-los melhor neste modelo neoplásico sobretudo aqueles que estão relacionados com a modulação dos oncogenes virais presentes.

Também a influência dos inibidores das histonas deacetilases no cancro do ovário tem sido um foco da sua investigação. Sendo estes fármacos utilizados no tratamento do cancro, quais as principais conclusões que obtiveram com esse estudo?

Seria óptimo que assim fosse, mas temo que não seja para um futuro próximo. O MCT1 é um interessante transportador que não é exclusivo do lactato, pelo que a regulação da sua acção tem importantes efeitos celulares. Pensamos que será difícil, de uma forma simples, bloquear o transportador e obter imediatos efeitos terapêuticos no desenvolvimento e progressão da doença sem custos sistémicos. O que estamos a fazer, na sequência deste estudo, é identificar os factores de regulação deste transportador, alguns dos quais já são parcialmente descritos, e conhecê-los melhor neste modelo neoplásico sobretudo aqueles que estão relacionados com a modulação dos oncogenes virais presentes.

Também a influência dos inibidores das histonas deacetilases no cancro do ovário tem sido um foco da sua investigação. Sendo estes fármacos utilizados no tratamento do cancro, quais as principais conclusões que obtiveram com esse estudo?

Os nossos resultados estão ligados a um projecto de tese para doutoramento de uma das estudantes do grupo que apresentará o texto de dissertação para discussão até ao final do ano. O projecto iniciou-se há alguns anos, num contexto histórico de grandes esperanças neste tipo de agentes, e que é uma fase comum a todos os novos fármacos. Após a descrição na literatura científica de um novo alvo terapêutico, surgem sempre grandes expectativas para os novos agentes, que serão capazes de modular o alvo e bloquear o desenvolvimento da doença. Com a implementação na prática clínica dessas novas terapêuticas, muitos dos aspectos promissores são frequentemente desiludidos por resultados substancialmente inferiores aos esperados; e, numa fase mais avançada deste processo, estabelece-se então um plateu que identifica o real valor desse novo alvo/agente terapêutico. Em relação às HDACs os nossos estudos iniciaram-se no final da fase quando havia ainda grandes expectativas e estamos agora na fase, onde é importante identificar o nicho onde estes fármacos podem ser realmente úteis. Assim, esperamos contribuir para que uma melhor seleção e adequação das terapêuticas a determinadas neoplasias seja mais representativa do valor desta terapêutica oncológica.

Os resultados dos estudos realizados pelo grupo sublinham a utilidade destes fármacos no carcinoma do ovário se houver prévia selecção do tipo histológico, reforçando mais uma vez a classificação histológica dos carcinomas do ovário em uso, que também foi recente confirmada pela classificação molecular destes tumores. Os nossos resultados identificam onde eventualmente teremos um maior sucesso com o uso destes fármacos; e identificam como são activadas e moduladas as vias de tradução de sinal pelas HDACs na proliferação e na resistência à terapêutica das células neoplásicas dos carcinomas do ovário. Em resumo, as conclusões destes estudos identificam tipos histológicos de carcinomas do ovário onde poderão ser usadas ou não deverão ser usadas as HDAC na adjuvância terapêutica; e qual a explicação que pensamos estar subjacente a esta acção.

Para finalizar a entrevista, gostaria de a questionar sobre a mítica questão: existirá uma cura para o cancro?

Penso que não, porque o cancro não existe como uma entidade, e porque as células neoplásicas malignas usam de forma inapropriada os mecanismos celulares normais. Nas aulas de Anatomia Patológica relembro sempre que, no organismo humano, existem cerca de 200 tipos celulares distintos, que cada tipo de células pode originar neoplasias malignas, e que estão descritos mais de 600 tipos de neoplasias malignas diferentes no Homem, o que dificulta muito a abordagem terapêutica. Eu gostaria de pensar que um dia haverá uma cura para todos os cancros, pois actualmente há alguns cancros curáveis — são é muito poucos, e por vezes com uma morbilidade associada importante. Mas penso que, num futuro muito próximo, haverá mais cancros curáveis e que entretanto conseguiremos prolongar a vida de muitos dos doentes com cancro. O trabalho do grupo de Tumor Morphology and Microenvironment é o resultado simbiótico do esforço individual de cada membro do grupo e da colaboração com muitos outros grupos e investigadores individuais com que trabalhamos. A cura de qualquer doença será sempre a consequência da investigação de muitos investigadores que, usando o conhecimento partilhado prévio, um dia serão capazes de inovar e conseguir a cura de uma doença.

DOUTORA MARIA JOÃO RIBEIRO – TUMOR MORPHOLOGY AND MICROENVIRONMENT

O nosso grupo tem colocado o corpo carotídeo na vanguarda da investigação científica.

O corpo carotídeo (CC) responde a uma vasta panóplia de estímulos, versatilidade que o consagra como o principal quimiorrecetor periférico. Mas e se, além deste papel no controlo hemodinâmico, o CC operasse como um sensor metabólico cuja sobreativação crónica estivesse implicada na fisiopatologia da resistência à insulina? Que impacto daí adviria para a diabetes, epidemiologicamente cunhada como a peste negra do século XXI? E que tem o café a ver com tudo isto?

No seu grupo de trabalho formulou-se a hipótese de o corpo carotídeo (CC) atuar como «sensor de glicose»; contudo, este tema está ainda sujeito a fervoroso debate. Em que medida é que os estudos realizados in vitro e in vivo não permitiram, até à data, ultrapassar a controvérsia existente a este respeito? Devem preferir-se expressões como «sensor de insulina» ou «sensor metabólico» quando apelamos à função do CC no contexto da homeostasia energética?

Nos últimos anos, a hipótese de o CC ser um sensor de glucose tem sido muito debatida, como demonstra o número de estudos presentes na literatura. Estes permitiram um melhor entendimento do papel do CC na sensibilidade à glucose, tendo surgido algumas teorias para explicar a discrepância entre resultados. Acredita-se hoje que a falta de homogeneidade entre os estudos se deva às condições distintas em que estes foram realizados, nomeadamente: utilização de diferentes modelos animais, diferentes preparações de estudo, diferenças nas condições das culturas (protocolos de dissociação, pressão de oxigénio). Atualmente, sabe-se que as células do CC em cultura adquirem características fenotípicas diferenciadas, tornando-se sensíveis à glucose. No entanto, a expressão sensor de glicose não é a mais correta no caso do meu trabalho, já que um sensor de glucose não é o mesmo que um sensor de insulina. No meu trabalho, demonstrámos que o CC “funciona” como um sensor periférico de insulina, e que esta hormona é capaz de gerar uma ativação do órgão que se traduz numa resposta neurosecretora. Assim, no contexto da homeostasia energética devemos preferir a expressão sensor metabólico.

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A insulinorresistência tem-se revelado uma espécie de «chave-mestra» para um alarmante rol de doenças metabólicas e cardiovasculares: por um lado, a “diabesidade”; por outro, a síndrome metabólica, uma doença sistémica em que o efeito dos diferentes fatores de risco é sinérgico e multiplicativo, afetando 20-25% da população mundial (IDF 2006). Como avalia o impacto económico de uma terapia farmacológica apta a reverter a resistência insulínica, tendo como alvo os canais Kv1.3?

A diabesidade é uma pandemia deste século e representa um dos maiores desafios devido aos elevados custos para os sistemas de saúde. Uma terapia farmacológica tendo como alvo os canais Kv1.3 teria um impacto económico positivo, uma vez que permitiria diminuir os gastos de saúde com os cuidados prestados aos diabéticos, para além de também permitir uma diminuição dos gastos associados com outras co-morbilidades – como é o caso das doenças cardiovasculares –, onde a resistência à insulina aparece como um “gatilho” para o seu desenvolvimento.

Do ponto de vista funcional, a sobreestimulação do CC, e consequente ativação do SNS, poderá figurar como uma das principais engrenagens fisiopatológicas patente nos distúrbios metabólicos. Nestes casos, que abordagem terapêutica será preferível: a desnervação do CC (mediante a resseção do nervo do seio carotídeo) ou uma modulação intermitente?

No nosso estudo utilizámos a desnervação crónica do nervo do seio carotídeo apenas como metodologia para avaliar um possível papel do CC na etiologia da resistência à insulina e restantes distúrbios metabólicos. Não defendemos de todo que a desnervação crónica do CC seja uma abordagem terapêutica plausível para o tratamento destes distúrbios, pois falamos de um nervo que, para além de transmitir informação dos quimiorrecetores, também contém informação dos barorrecetores. Consequentemente, uma desnervação comprometeria mecanismos fulcrais na regulação da pressão arterial a curto prazo, para além de outros efeitos nefastos,como é o caso da perda das respostas à anoxia/hipoxia, assim como consequências ao nível das respostas ao exercício. Uma modulação intermitente seria, portanto, uma melhor abordagem.

A inibição da atividade do CC, favorável à homeostasia energética em pacientes com DT2, pode ser conseguida através da hiperóxia proporcionada pela oxigenoterapia hiperbárica (OTH), uma modalidade terapêutica que consiste na inalação de oxigénio puro em ambiente hiperbárico. Poderá a OTH, que possui ainda mais-valias anti-edematosas, pró-cicatrizantes e anti-infeciosas, vir a constituir uma via de tratamento standard para o tratamento da DT2 e das suas comorbilidades, não obstante alguns efeitos prejudiciais?

Apesar de a OHT ser considerada segura e já utilizada para o tratamento de situações específicas, como é o caso das úlceras diabéticas, não podemos esquecer que nos referimos a uma terapêutica que também possui efeitos adversos, nomeadamente o stresse oxidativo, que leva à produção de espécies reativas de oxigénio com efeitos nefastos nos diferentes órgãos, para além das lesões barotraumáticas que pode originar. Além disso, não foi efetuado no nosso estudo qualquer follow-up dos doentes e não sabemos se o efeito se mantém ao longo do tempo. É importante salientar que não excluímos a possibilidade da OHT poder ser uma terapêutica importante no contexto dos distúrbios metabólicos. No entanto, seria necessária a realização de mais estudos para poder aferir sobre os efeitos nefastos/benéficos desta terapêutica a longo prazo.

Diversos estudos epidemiológicos têm demonstrado uma relação estatisticamente relevante entre o consumo de café solúvel e a baixa incidência de DT2. A administração crónica de cafeína – em contraste com a aguda – parece associada à diminuição do risco de DT2 e de síndrome metabólico, um efeito mediado provavelmente pela inibição do SNS. À luz destes resultados, dever-se-á incluir o café num padrão alimentar coadjuvante à terapêutica administrada a indivíduos com DT2? E estará o CC envolvido no mecanismo de atuação subjacente ao efeito protetor do café?

Sim, o consumo de café deve fazer parte da dieta dos doentes. De facto, a British Nutrition Society já introduziu o café nas guidelines de uma alimentação saudável e com benefícios quer ao nível da DT2 quer da hipertensão arterial.
Uma das linhas de investigação exploradas nos últimos anos pelo nosso grupo centrou-se em estudar qual o efeito do consumo agudo versus crónico da cafeína na sensibilidade à insulina. Sabe-se que, a nível celular a cafeína apresenta três mecanismos de ação, sendo que para concentrações semelhantes às do consumo humano, é um antagonista dos recetores de adenosina. Observámos que, quando administrada de maneira aguda – por exemplo, numa toma única –, a cafeína induz resistência à insulina, mas, se for administrada de maneira crónica (toma continuada), tem um efeito insulino-sensibilizador. Dado que a cafeína modula a atividade do CC, defendemos que um dos mecanismos plausíveis esteja relacionado com o bloqueio dos recetores de adenosina no CC, inibindo a sobreactivação do SNS induzida pelo CC.

O seu grupo de investigação está a desenvolver um implante que, de entre todas as funções controladas pelo CC, intervirá somente no nervo responsável pela sensibilidade à insulina. Quais são os maiores desafios a ter em conta na conceção deste dispositivo bioeletrónico, e em que fase do projeto se enquadra atualmente?

No nosso grupo não estamos a desenvolver o implante em si (ou seja, a parte eletrónica do dispositivo), mas a colaborar com a indústria farmacêutica com o intuito de testar a modulação elétrica do nervo do seio carotídeo para o tratamento da DT2, em modelos animais. Um dos maiores desafios na conceção deste dispositivo será desenvolver um implante de pequenas dimensões que permita apenas modular a atividade do CC, evitando o desenvolvimento de resistência à insulina, sem afetar as respostas fisiológicas onde o CC é fundamental (como é o caso das respostas à hipóxia e a modulação das respostas pressoras via barorrecetores).

A investigação conducente à sua tese de doutoramento foi apresentada em diversos congressos científicos nacionais e internacionais. Como posiciona a investigação do seu grupo de trabalho no atual panorama científico?

Quando iniciámos este projeto era indiscutível uma sobreativação do SNS em condições fisiopatológicas, como é o caso da resistência à insulina; no entanto, ainda permanecia por esclarecer qual o mecanismo que induzia um aumento da atividade do SNS e que mantinha esta ativação de uma forma sustentada. Com a realização deste projeto, mudámos o paradigma dos distúrbios metabólicos, colocando o CC com um papel fundamental no contexto fisiopatológico da resistência à insulina. Além disso, a investigação que tem sido conduzida pelo nosso grupo e pelo grupo do professor Julian Paton (no contexto do papel do CC no desenvolvimento de hipertensão essencial) tem colocado o CC e a sua modulação na vanguarda da investigação científica. Atualmente, podemos dizer que somos um grupo de referência no CC e no metabolismo. O facto de colaborarmos com a indústria farmacêutica em produtos de inovação tem-nos aberto portas para várias colaborações multidisciplinares, tanto ao nível nacional como internacional.

 

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