Ser-se vegetariano não é (apenas) uma questão de saúde – para muitos apresenta-se como um imperativo moral. A dimensão ética que envolve uma vida de abstenção em relação a alimentos de origem animal é o móbil do presente ensaio, segundo momento desta abordagem da FRONTAL sobre o vegetarianismo. No primeiro artigo do dúplice concluímos a segurança da dieta vegetariana e defendemos possíveis vantagens para a saúde; agora, o momento é de reflexão, sob orientação do Diogo Duarte, vegetariano e convidado da FRONTAL para abrir terreno a uma discussão que se pretende polémica.
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[ENSAIO]
Animais Humanos e Não-humanos
Diferença, especismo e vegetarianismo
O que distingue o humano do animal nunca foi matéria de consenso. As fronteiras que os separam mudaram, e mudam continuamente, consoante as ideologias, os credos religiosos ou mesmo as cosmologias e mundividências dominantes. Em alguns momentos da história, o lugar e importância do ser humano foram radicalmente colocados em causa, por vezes alterando o entendimento que dele se teve daí em diante – dois dos exemplos mais simbólicos devem-se a Copérnico, que o tirou do centro do universo, e a Darwin, mais tarde, que o tirou do centro da Terra, expondo a sua condição como algo resultante de um processo casual (a evolução) comum a todos os outros animais e, com isso, relativizando a sua importância no mundo. Como tal, os critérios que estabelecem essa distinção e definem a forma como nos relacionamos com os seres de outras espécies não são imutáveis.
O que talvez nunca tenha mudado foi a posição privilegiada do ser humano para impor essa fronteira sobre os animais não-humanos. Se podemos aceitar que é a permanente capacidade de pensar e questionar o lugar que ocupamos no mundo que estabelece um dos factores que mais nos distingue dos restantes animais, é preciso ver que este não nos diz grande coisa sobre a forma como devemos tratá-los. Desde logo, o binómio humano/animal é demasiado simplista, pois arruma numa categoria – a de “animal” – espécies muito diferentes e distantes entre si e leva, com isso, a que muitas vezes não haja diferenças no tratamento que damos a cada uma delas. Tal como é inegável que o ser humano é diferente de outros animais, e a isso pode corresponder o reconhecimento de direitos diferentes, também o símio está muito mais próximo da nossa espécie do que uma lagosta e, no entanto, essa diferença raramente resulta num tratamento diferente. Há, por isso, inúmeras perguntas a colocar, havendo para uns casos respostas aparentemente mais imediatas e fáceis e para outros respostas menos consensuais. Por exemplo, será que a constatação das diferenças entre uns e outros torna os animais não-humanos nossa propriedade para os comermos, usarmos ou vestirmos? Se sim, porquê? Há limites? Quem institui esses limites e a partir de que critérios o faz? É a superioridade da nossa força ou inteligência que dá legitimidade para o fazer, sujeitando sempre os interesses do animal aos nossos?
Diferença e desigualdade
Se é indesmentível que há grandes diferenças entre o animal humano e os animais não-humanos, também o é que essas diferenças não são unívocas. Há capacidades em que somos superiores e há outras em que somos inferiores. Como tal, a constatação da diferença per se não pode ser determinante no que respeita ao reconhecimento de certos direitos básicos e fundamentais. Há sempre alguém que pode argumentar que há diferença dentro da nossa própria espécie (seja ela no gosto individual, na personalidade ou na inteligência ou, nos casos mais essencialistas, na “raça” e no “género”) e que essa diferença é suficiente para justificar desigualdades quanto a esses direitos. E não é possível ignorar que a diferença foi e continua a ser usada para tentar legitimar formas de discriminação e violência dentro da própria espécie – umas vezes naturalizando essas diferenças como inatas, vendo nisso razão suficiente para justificar um tratamento diferenciado (como no sexismo), outras questionando mesmo a pertença à espécie de certos indivíduos humanos, procurando rebaixá-los à condição animal (como no racismo).
Se é indesmentível que há grandes diferenças entre o animal humano e os animais não-humanos, também o é que essas diferenças não são unívocas. Há capacidades em que somos superiores e há outras em que somos inferiores
Hoje vemos a escolha dos critérios que sustentaram coisas como a escravatura (e no presente ainda sustentam outras desigualdades) como totalmente arbitrária, eticamente insustentável e indefensável, muitas vezes contrária a qualquer base lógica ou empírica. Isto alerta-nos de que a “natureza” da diferença é sempre social e culturalmente construída – e que porventura não há nada mais cultural do que a ideia de “natureza” ou do que é “natural”. A defesa ética do vegetarianismo, o tema que aqui nos interessa, dispensa a constatação da sua maior ou menor “naturalidade” face a outros tipos de alimentação para se legitimar. Não só porque é irrelevante, na medida em que o ser humano satisfaz plenamente todas as suas necessidades e consegue viver com total saúde sem incluir carne ou peixe na sua alimentação, como porque se há coisa que não caracteriza o ser humano é a sua vivência conforme a “leis da natureza” – antes pelo contrário, pois a sua capacidade de adaptação possui uma amplitude quase única.
O ser humano satisfaz plenamente todas as suas necessidades e consegue viver com total saúde sem incluir carne ou peixe na sua alimentação
Alguns desses critérios, usados para legitimar formas de discriminação entre seres humanos no passado, são os mesmos que sustentam o uso que fazemos dos animais. Derivam acima de tudo de hábitos, tradições ou “simplesmente” de desigualdades de poder que permitem salvaguardar ou privilegiar os interesses de um grupo em detrimento dos de outros. Um exemplo que ilustra bem esses factores, e também a arbitrariedade atrás referida que assiste a selecção dos critérios dessa “diferença”, pode ser encontrado numa das reacções à publicação de A Vindication of the Rights of Woman (1792), talvez uma das primeiras grandes obras do feminismo, onde a sua autora, a escritora e filósofa inglesa Mary Wollstonecraft defendia para as mulheres os mesmos direitos fundamentais que os homens. Uma das respostas mais conhecidas suscitadas pelo texto foi escrita por um então célebre filósofo, Thomas Taylor, e intitulava-se A Vindication of the Rights of Brutes. Nas suas páginas o autor procurava ridicularizar a posição de Wollstonecraft argumentando que se esta tivesse razão nada impediria a atribuição de direitos aos animais. Patente na ironia do seu argumento estava a opinião de que era igualmente absurdo uma mulher ou um animal terem os mesmos direitos fundamentais que os homens
Talvez esteja na hora de perguntar, também, se nas condições em que vivemos atualmente, com o grau de desenvolvimento tecnológico que alcançamos e com a quantidade de informação e de bens a que temos acesso, continua a fazer sentido o especismo,
São, obviamente, situações distintas (as mulheres são da mesma espécie que os homens), mas se uma parte do que parecia absurdo a Taylor, e a muita gente do seu tempo, já se tornou uma evidência para nós (ou, pelo menos, para uma maioria), devemo-nos questionar se o mesmo não pode acontecer com a outra parte do seu argumento, levando em consideração, claro, as devidas particularidades do problema. Até porque, neste exemplo, o que está na base da sustentação quer do sexismo quer do especismo deriva em grande medida da tradição. Portanto, uma forma de começar a pensar sobre isso talvez seja aplicando algumas das questões que fizemos sobre a nossa espécie para lá dela própria. O facto de as diferentes espécies não serem equiparáveis não significa que não sejam comparáveis e, por essa razão, talvez nos devamos questionar se certas formas de desigualdade que nos parecem insustentáveis e absurdas para os humanos não o são também para os animais não-humanos. Talvez esteja na hora de perguntar, também, se nas condições em que vivemos actualmente, com o grau de desenvolvimento tecnológico que alcançamos e com a quantidade de informação e de produtos a que temos acesso, continua a fazer sentido o especismo, ou seja, a discriminação que tem como base a espécie (em vez da “raça”, como no racismo, ou o “género”, como no sexismo). Especialmente quando a nossa existência e bem-estar não dependem da sua exploração para diversão, conforto ou mesmo alimentação.
“Podem eles sofrer?” – A ética do vegetarianismo
Em conexão com o que se entendia ser o elemento distintivo na separação entre humano e animal, o vegetarianismo encontrou eco, ao longo da história e em diversos lugares, em diferentes correntes de pensamento. A argumentação em sua defesa apoiou-se em vários factores, por vezes antagónicos: desde as discussões acontecidas na Grécia clássica em torno da relação entre os animais e os humanos e a sua natureza, passando pelos debates teológicos (presentes em todas as grandes tradições religiosas), assim como em correntes estéticas como o romantismo ou, finalmente, pela sua defesa científica e médico-sanitária, emergente com o racionalismo iluminista e muito popular a partir do séc. XIX, por vezes assente em modelos evolucionistas (biológicos e culturais, até eugenistas).
Foi, no entanto, com o utilitarismo do filósofo Jeremy Bentham, no séc. XVIII, que a reflexão ética sobre o tratamento dado aos animais começou a encontrar um novo rumo. O cerne da sua legitimidade deixou de ser procurado na especulação sobre a posse de uma alma, nos benefícios ou prejuízos para a saúde no consumo de carne e vegetais ou na posse de inteligência e auto-consciência, e deslocou-se para a capacidade de sofrer ou ter sensações (a chamada senciência). Para Bentham, a racionalidade ou a capacidade para falar não eram critérios suficientes para impedir um estatuto de igualdade básico, pois deixavam de fora muitos seres humanos (desde os bebés a pessoas com certos tipos de deficiências). Logo, a escolha desses critérios parecia tão arbitrária como a de basear na cor da pele a justificação para certas desigualdades. Como resposta, sugeriu que a questão não era “podem eles raciocinar?”, ou “podem eles falar?”, mas sim “podem eles sofrer?” e, nesses termos, alargou os limites do que chamava a “linha insuperável” para lá da sua própria espécie.
Em conexão com o que se entendia ser o elemento distintivo na separação entre humano e animal, o vegetarianismo encontrou ao longo da história eco em diferentes correntes de pensamento.
Ainda que provavelmente Bentham não fosse vegetariano, é possível situar por volta desse período a emergência de uma discussão pública mais constante e visível sobre o vegetarianismo ético. Ao longo do século XX, em particular, o seu crescimento foi significativo, atingindo um ponto particularmente marcante (e iniciando outro momento de forte expansão) com a publicação de Libertação Animal, em 1975, um livro da autoria do conhecido filósofo australiano, Peter Singer, que desenvolvia o utilitarismo de Bentham. Este livro permanece, ainda hoje, e apesar de muitas críticas, uma das grandes referências dos movimentos de libertação animal e é, sem dúvida, um dos mais influentes, conhecidos e debatidos para lá do círculo dos seus defensores.
Não é fácil considerar a opção vegetariana e esta talvez se torne mais difícil de aceitar para muita gente quando se baseia em motivos éticos. A sua prática implica uma mudança radical em alguns hábitos quotidianos, tão enraizados e aparentemente indispensáveis que raramente são sujeitos à reflexão crítica, e parece entrar em choque, por vezes, com formas de sociabilidade tão básicas e transversais como as que se relacionam com a gastronomia e a alimentação. A isto não é alheio quer o facto de o consumo de animais na alimentação ser provavelmente tão antigo quanto a história da humanidade (ainda que a investigação historiográfica nos mostre que este nunca foi tão unânime quanto se julga), quer a sua associação ao progresso social e à melhoria das condições de vida das populações, pois, para a maioria, o seu consumo regular raramente dependia apenas da escolha ou da vontade, já que era economicamente incomportável e, por isso, um luxo quase sempre reservado às elites (em Portugal, este é um avanço ainda presente na memória de muitas famílias e, com a enorme regressão social que se enfrenta actualmente, ameaça tornar-se cada vez mais um factor do presente). Juntam-se a isto inúmeros mitos, surgidos quer por via dessa tradição e do enraizamento deste hábito, quer pela necessidade de desconsiderar argumentos ou opções de vida que põem em causa (ainda por cima com argumentos tão “simples”) algumas bases centrais da nossa educação, adquirida por via de instituições em quem aprendemos a confiar e que estruturam a nossa forma de pensar (desde a família à escola). Por todas as ambiguidades e complexidades em jogo, o facto de se poder considerar o vegetarianismo como uma opção ética válida, e até mais legítima do que muitas outras, não torna, obviamente, quem o defende e pratica moralmente superior a ninguém. No entanto, é impossível ignorar a importância de algumas das questões que coloca, senão pela senciência e até inteligência dos animais, pelo menos pela sua coincidência, como sugeri, com outras formas de discriminação e desigualdade que marcaram a nossa história e para as quais hoje olhámos com espanto e arrependimento. Além disso, se é verdade que a carne sempre fez parte da alimentação do ser humano, a maior parte da humanidade raramente pôde escolher o que comer da forma que nós hoje podemos fazer (pelo menos neste cantinho do mundo em que habitamos). Por estas razões, e independentemente do estatuto que lhes possamos conferir, as nossas responsabilidades são hoje diferentes perante os animais.
MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS DIETAS – O vegetarianismo visto pela Lupa da FRONTAL
Será saudável ser-se vegetariano?
O vegetarianismo é hoje como nunca opção dietética para milhões de pessoas por este mundo fora. Vegetais e frutas são suficientes para o desenvolvimento psico-motor das crianças? É necessário tomar suplementos caso se queira ter uma dieta vegetariana? Estas e outras questões finalmente respondidas de forma clara e informativa!