Todos sabemos o quanto a música é essencial para o nosso bem-estar, mas talvez poucos se apercebam do quão crucial é para a saúde. A musicoterapia é uma prática clínica reconhecida internacionalmente e já regulamentada como profissão de saúde nalguns países como o Reino Unido, a Áustria, a Alemanha, os Estados Unidos, o Brasil, a Austrália, entre outros, e está em fase de reconhecimento legal em Portugal. Tem como objetivo primordial o tratamento e prevenção de problemas de saúde mental, utilizando elementos da música (ritmos, melodias) para esse fim.
Contudo, a ação da música vai muito além desta variante clínica e é muito mais transversal do que o seu efeito mental. Habitualmente proporciona relaxamento, reduz o stress, promove a alegria e até uma sensação de plenitude total, em especial quando ouvimos “aquela” música que nos invade por completo. Adicionalmente a esta vertente sensorial atribuída e reconhecida da música, cada vez mais tem sido dada importância ao impacto orgânico que a mesma pode ter no nosso organismo. Um exemplo disso é o efeito que a música parece ter na regulação hormonal.1 Não é difícil conceber, portanto, que esta poderá ter um papel bem mais determinante no nosso bem-estar e saúde geral do que muitos pensam.
Conhecedora dos efeitos benéficos da música para o ser humano e baseada nos conceitos da Musicoterapia, a SAMP, Sociedade Artística Musical dos Pousos, em Leiria, tem vindo a desenvolver há já mais de duas décadas um vasto leque de programas musicais com uma forte componente terapêutico-social. Inicialmente, focou-se em proporcionar a experiência musical na primeira infância (crianças entre os 0 e os 5 anos), tendo criado um programa pioneiro a nível nacional, o “Berço das Artes”, que acabou por ter um elevado reconhecimento internacional. Além deste programa, desenvolveu ainda uma outra oferta musical inovadora que introduz a experiência da música ao bebé ainda in utero, o “Auditório 1”.
Depois desta primeira fase de projetos músico-terapêutico-sociais, focados no início da vida, a SAMP tomou consciência da importância de se cuidar também, através da música, do outro extremo da existência. Como tal, iniciou em 2003 outro projeto, o “Novas Primaveras”, para idosos. O núcleo ‘Saúde com Arte’ da SAMP é composto atualmente por uma equipa residente de 9 profissionais de música, dança, teatro, musicoterapia e ensino especial, e apoiada localmente em cada um dos seus projetos por equipas de médicos, psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais.
A experiência adquirida com estes projetos, e o retorno tão gratificante das populações que destes programas usufruem, levou a que esta equipa se concentrasse recentemente num outro projeto.
O projeto “Aqui Contigo” pretende melhorar a saúde dos doentes acamados e dependentes através da estimulação da sua capacitação social, intelectual e emocional nos últimos momentos da sua vida. Atualmente, destina-se sobretudo a doentes terminais idosos, mas também abrange bebés prematuros com mau prognóstico. A SAMP ambiciona levá-lo ainda mais além, procurando abranger outros doentes, como os que se apresentam em estado vegetativo irreversível.

Depois de 10 anos a desenvolver sessões artísticas para idosos, esta equipa multidisciplinar concluiu que são as pessoas em estado terminal que mais precisam de uma presença sonora quando já não processam mais nenhum sentido. A SAMP defende que a sociedade atual está muito focada nos cuidados aos filhos, mas pouco focada nos cuidados aos pais. São diversos os fatores que levam a esta discrepância de atitudes e um deles seguramente prender-se-á com a novidade que não deixa de ser o aumento da esperança média de vida que se tem verificado nos últimos anos. Só recentemente se assistiu à criação de estruturas de suporte para esta nova realidade social. Segundo esta Associação, “existem tantos modelos para nos ensinar a nascer e crescer, e tão poucos para nos ensinar a envelhecer e morrer”. Assim sendo, o objetivo do projeto “Aqui Contigo” é o de criar momentos musicais regulares junto destes doentes, de forma a proporcionar-lhes uma melhoria do seu bem-estar afetivo, social e mental neste momento da sua existência, por vezes o mais solitário, por diversas e distintas razões. Mas não só. Por entender a individualidade e os gostos musicais de cada um como “sagrados”, a SAMP pretende ainda promover o conceito de testamento musical.
A pessoa em estado terminal, na maioria dos casos, já está incapacitada de comunicar. Além disso, a ausência da família pode não permitir às equipas associadas ao projeto conhecer os gostos musicais específicos de cada doente. Por considerar de elevada relevância os gostos e referências musicais de cada pessoa como parte de si própria, a SAMP pretende recolher os referidos testamentos musicais, em que o idoso ainda independente descreve as suas preferências. A existência destes testamentos revelam-se, posteriormente, essenciais para quem os acompanhar na fase terminal, permitindo a criação de momentos musicais específicos para cada doente.

Numa primeira fase, este conceito inovador será apenas adotado para a população idosa da região de Leiria, através de parcerias que a SAMP tem já com o Centro Hospitalar de Leiria e com cerca de 30 instituições prestadoras de cuidados continuados e paliativos a idosos. O propósito final será o de realizar visitas semanais junto de doentes terminais acamados, para lhes proporcionar momentos musicais de 15-20 minutos nas cerca de 30 instituições associadas ao projeto. Posteriormente, é intenção alargar este conceito a todo o país, no que concerne à sua aplicação a outros doentes terminais e na população idosa.
O objetivo é simples e prende-se muito com uma mudança do atual paradigma social, de modo a que se passe a dar mais atenção aos idosos e a doentes terminais, independentemente dos seus estados de saúde e/ou consciência, e para quem a música pode ter um papel especialmente importante a desempenhar.