Para lá do que está à vista

Para falar de transexualidade, o fundamental é o que nos define como homens ou mulheres. E se à nascença o que se regista é o sexo biológico da criança (objectivável pelos órgãos genitais externos), a identidade de género, aquilo que é a experiência emocional da própria pessoa enquanto feminina, masculina (ou nenhuma das duas), só é completamente definida nos primeiros anos da infância. Por sua vez, é a própria sociedade que impõe estes papéis dicotómicos e que determina padrões de comportamento, a dita expressão de género, que se devem coadunar com o sexo biológico (e civil) de cada um. Mas por vezes nem tudo é concordante, e algo que deveria ser natural pode passar a ser motivo de estranheza, de desconforto, de ansiedade.

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A discordância entre género e sexo pode manifestar-se de várias formas. Antes de mais, porque esta pode ser relativa apenas à expressão de género, sem que haja divergência com a identidade de género. Aqui encontramos aqueles a quem chamamos transgénero, pessoas que não se comportam conforme o esperado para o seu sexo biológico. Não têm necessariamente que estar descontentes com o seu sexo biológico, podendo ter apenas uma forma de expressão fora da norma, como os travestis. A transexualidade, por sua vez, está intimamente ligada com o descontentamento perante o sexo biológico e civil. O termo transexual é, então, utilizado para descrever pessoas que desejam que o seu sexo biológico corresponda à sua identidade de género mudando o corpo através de hormonas e/ou cirurgias. Surge aqui a entidade clínica Disforia de Género, caracterizada pelo descontentamento afectivo/cognitivo que pode acompanhar a incongruência entre género e sexo. Esta é definida pelas ansiedade e angústia clinicamente significativas associadas. Na realidade, estes indivíduos poderão sofrer de isolamento social, baixa auto-estima e relações difíceis com a família. Muitas vezes automedicam-se com hormonas e alguns até se auto-mutilam tal é o desconforto com os seus genitais. São frequentes as tentativas de suicídio, perturbações psiquiátricas e os consumos de álcool e drogas.

Alguma História

Sempre houve pessoas transgénero e transexuais na sociedade, sendo, no entanto, difícil definir este segundo grupo anteriormente às cirurgias reatributivas. Historicamente, as suas descrições são frequentes, mas provavelmente não espelham a sua expressão real. Na realidade, a noção do sexo masculino como o sexo forte, que sempre acompanhou as sociedades ocidentais, faz com que as referências na literatura a mulheres que se faziam passar por homens sejam muito mais numerosas que o contrário. Esta ideia permitiu até que, através dos séculos, homens muitas vezes personificassem mulheres em actividades que eram consideradas impróprias para estas, sendo o exemplo mais conhecido e flagrante o teatro. Estão até documentadas castrações e penectomias (ressecções penianas), tanto nestes casos como no canto, com os castrati, o que era inclusivamente tolerado pelas igrejas da religião Cristã, que proibiam tais procedimentos. Supõe-se que algumas destas pessoas pudessem ser actualmente consideradas transgénero ou transexuais mas é difícil prová-lo. Há diversos casos bem documentados já no século XIX de homens que viveram como mulheres durante décadas, tendo conseguido, na maioria dos casos, iludir conhecidos e autoridades. Nesta altura, aquilo a que actualmente chamamos Disforia de Género era considerada uma perversão sexual.

Na realidade, a mudança começou a surgir no início do século XX. Um dos primeiros e mais marcantes nomes na área é Magnus Hirschfeld, sexólogo alemão, tido como o autor do termo Travesti (na sua obra de 1910, Transvestites), que definia indivíduos que são tomados por “uma sensação de paz, segurança e exultação, felicidade e bem-estar… quando envergando roupa do sexo oposto”. Hirschfeld dissociou o travestismo da homossexualidade, que até à altura era assumidamente considerada na literatura como associada a alguma forma de inversão do género, tendo encontrado na sua pesquisa, que os travestis poderiam ter qualquer orientação sexual, inclusivamente, que o mais frequente era serem heterossexuais, do ponto de vista do seu sexo biológico. A distinção entre travestismo e o que actualmente conhecemos por transexual, no entanto, nunca foi feita pelo sexólogo.

Hirschfeld criou o primeiro instituto exclusivamente dedicado à sexologia, o Instituto para a Investigação Sexual, em 1919, Berlim. Foi aqui que se procedeu às primeiras cirurgias de mudança de sexo. O primeiro caso documentado foi o de Dorchen Richter, um indivíduo alemão, do sexo masculino. Em 1922 procedeu-se à sua castração, sendo removido o pénis e construída uma vagina nove anos mais tarde. Após a primeira cirurgia, foi contratada pelo instituto como doméstica, servindo como exemplo para os restantes doentes.

Nas décadas de 50 e 60, um endocrinologista americano, Harry Benjamin, iniciou a instituição de terapia de substituição hormonal em doentes com discordância de género, referenciando-os também a cirurgiões na Europa, numa altura em que a prática corrente no país era a psicanálise para tentar “curar” estes indivíduos. É atribuído a Benjamin, em simultâneo com David Cauldwell, também médico norte-americano mas com uma visão tradicional da discordância de género, a instituição do termo transexual. Desde então, o caminho tem sido longo, mas a visão de Benjamin, tem-se afirmado, sendo já prática corrente em muitos países do globo a transição destes indivíduos, segundo as orientações terapêuticas do próprio Benjamin (1998).

Em Portugal

Portugal é o único país da Europa em que é necessário consentimento da Ordem dos Médicos para se proceder às cirurgias de reatribuição sexual.

Em Portugal, a cirurgia reatributiva foi proibida até 1995. Foi só em 1996 que se realizou a primeira, no Hospital de Santa Maria, pelo cirurgião plástico Dr. João Décio Ferreira. O processo não é simples, passando por diversas morosas etapas. Antes de mais, é necessário elaborar um diagnóstico. O indivíduo é sujeito a entrevistas, psiquiátricas e psicológicas, e a avaliações médicas, sempre por profissionais especializados em sexologia. O diagnóstico tem que ser feito não só pela equipa que o acompanha, mas também por uma equipa externa. É necessário que ambas concordem para que se possa prosseguir o processo de reatribuição sexual. A psicoterapia acompanha todas as fases do processo e mantém-se mesmo depois de terminado. Em seguida, poderá iniciar-se a terapia hormonal, que deve manter-se também a termo incerto, à qual se segue a prova real de vida (que poderá ocorrer antes). Este teste permite preparar o transexual para a mudança efectiva. Durante pelo menos um ano, terá que assumir o sexo que pretende tomar perante a sociedade, em todos os aspectos da sua vida. Nesta altura, o transexual faz-se acompanhar de uma declaração médica probatória. Após todos estes passos, é necessário submeter o processo à Ordem dos Médicos, para que esta dê consentimento. Somos, aliás, o único país em que isto é requerido. É a partir daqui que se pode iniciar o tratamento cirúrgico. No caso das transições Masculino/Feminino, esta abordagem terapêutica é mais simples, consistindo de apenas um acto operatório, nas transições Feminino/Masculino, o processo é mais complicado, podendo ser necessários até oito actos operatórios separados no tempo. Quando terminado, é possível iniciar a alteração do sexo civil. É instaurado um processo judicial contra o estado, um procedimento muito demorado, composto por diversas audiências, testemunhas e relatórios, após o qual é feito um averbamento não-público à certidão de nascimento do indivíduo e são reemitidos os seus documentos.

Para saberes mais sobre transexualidade
  • Bullough, V. Transsexualism in History, Archives of Sexual Behaviour. Vol. 4, Nº.3, 1975
  • Devor, A.H., The Transgender Archives Foundations for the Future, University of Victoria Libraries, 2014
  • Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition (DSM-5), American Psychiatry Association, 2013
  • Beemyn, G., Transgender History in the United States, Oxford

A Rapariga Dinamarquesa

© Universal Pictures

A Rapariga Dinamarquesa (The Danish Girl), chega nesta época natalícia às salas de cinema portuguesas. Baseado no livro de David Ebershoff, conta a história de LiLi Elbe, uma das primeiras e mais famosas pacientes do Instituto de Investigação Sexual, de Hirschfeld. O filme realizado por Tom Hopper (“O Discurso do Rei”), acompanha a vida de Einar Wegner (Eddie Redmayne), pintor dinamarquês e da sua esposa Gerda (Alicia Vikander) e a sua viagem em conjunto na transição de Einar como mulher.

PASSATEMPO A RAPARIGA DINAMARQUESA

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