Carta Aberta à FRONTAL

Respeitando o direito de resposta, a FRONTAL vem desta forma publicar a carta aberta escrita pelo colega João Coimbra, na sequência do artigo «Eutanásia: e se não te deixassem morrer?»
finalissimo
 

Carta Aberta à Exma Editora chefe da revista FRONTAL Ana Luísa Pereira,

Estimada colega,

 No dia 27/01/2011 foi publicado o artigo “Eutanásia: e se não te deixassem morrer?” por Sara Oliveira, na secção de Política Médica. Após leitura cuidada, é do meu entender que o artigo não reúne as características básicas de boa prática jornalística, nomeadamente: objectividade, imparcialidade, verdade e precisão. De seguida exponho a minha posição.

1. A imprecisão começa justamente no título sensacionalista adoptado: “e se não te deixassem morrer?”. Como o próprio artigo aborda no início, “deixar morrer” refere-se a eutanásia passiva que, neste caso, seria pela vontade do próprio. Ora, desde Hipócrates que se consagra o direito de recusa de tratamento a cada doente. Na verdade, eutanásia passiva só se coloca como problema ético quando a vontade do doente não se consegue aferir.

2. Atenta-se à verdade quando a referência aos cuidados paliativos é feita como se o facto de “estarem pouco desenvolvidos em Portugal” (sic) fosse argumento a favor da eutanásia. A questão da eutanásia é antes de tudo uma questão moral/ética. Nesse contexto, a eutanásia tem de provar ser boa per se e não como hipótese de segunda linha. Esta linha de argumentação da autora pode ser simplificada nesta frase: “Como as pessoas não são bem acompanhadas nos últimos tempos de vida, mais vale que se lhes disponibilize uma morte rápida.” Realmente lembra auxílio a cometer suicídio, ainda mais quando pensamos que muitos dos que querem recorrer à eutanásia fazem-no exactamente porque não são bem apoiadas.

Das duas uma: ou se assume de que os cuidados paliativos são o melhor que se tem a oferecer a um doente moribundo, e nesse caso não faz sentido recorrer à eutanásia; ou se assume que são uma hipótese justificada em si mesma, como a eutanásia, e nesse caso o fraco desenvolvimento de um não é argumento para o outro.

3. Segue-se no artigo um redopio opinativo-especulativo de perguntas retóricas e hipérboles que transcrevo na íntegra como evidência das faltas de verdade argumentativa, objectividade e imparcialidade:

«Em certas situações, a sedação ou o uso de certos medicamentos fortes podem conduzir à diminuição do tormento. Porém qual é o objetivo de viver quase que como em estado vegetativo, com um sorriso na cara que é independente dos nossos atos ou emoções? Quando a vida de alguém deixa de fazer sentido, não será preferível acabar com a ela a mantê-la ou mesmo prolongá-la de forma desumana e em agonia?»

Ainda que possa ser curioso indagar sobre as perspectivas da autora do que são o “sentido da vida”, ou pertinência da utilização de analgésicos em doentes terminais; remeto para os objectivos da FRONTAL que constam no website “A FRONTAL é uma plataforma informativa para estudantes de Medicina e jovens médicos. (…) A FRONTAL procura, desta forma, colmatar a escassez de informação direcionada para este público-alvo, divulgando conteúdos atuais, relevantes e fidedignos(…)”. A pertinência da opinião da minha estimada colega fica por justificar.

4. Outra grave imprecisão é evidente quando a autora refere que “pode existir a possibilidade de o prognóstico médico estar errado o que levaria à prática de mortes precoces e sem sentido. Daí que se deva tratar de uma decisão deliberada do próprio doente, bem informado e após serem consultados diversos profissionais.” (sic) Não me refiro desta vez à pertinência da opinião da autora sobre o sentido da morte, mas antes ao raciocínio limitado que faz sobre o prognóstico médico. Ora, o prognóstico médico em grande parte dos casos é feito com base nos mesmos parâmetros, levando a que diferentes profissionais não possam diferir assim tanto – e isto faz

todo o sentido. Além disso, o que é que a autora considera um doente “bem informado” na decisão da sua morte? A autora remete a decisão para o próprio doente como se isso tornasse o facto justificável, mas não explica em que difere isso do suicídio.

5. Quando a autora acrescenta que “o principal contra-argumento no que concerne os médicos é a existência do Juramento de Hipócrates (…)” (sic) revela ou falta de objectividade e de argumentação justa, ou um raciocínio bem limitado e incapaz de compreender outra perspectiva que não a sua. Como é mais do que óbvio, qualquer princípio moral em qualquer juramento ou declaração tem uma justificação de existir. O principal contra-argumento para a eutanásia é o mesmo que justifica a existência desse princípio num juramento, e não o facto de que esse juramento existe.

6. A referência à religião cristã uma vez mais é feita com meia-verdade (que acaba por ser mentira) uma vez que só aborda o facto de, para um cristão, a vida ser um Dom de Deus. Muitos outros argumentos estão na base de um categórico não à eutanásia por parte da Igreja Católica, bastaria um pequeno trabalho de pesquisa no catecismo da ICAR. Assim, quando a autora chega à conclusão de que “embora possa ser considerado um argumento válido para os seguidores desta doutrina, não o é para os restantes.” ignora por completo todos os outros argumentos apontados pela ICAR que seriam compreendidos pela generalidade dos leitores perpetuando uma argumentação falaciosa.

7. Uma vez mais a capacidade de raciocínio da autora é posta em causa quando diz isto:

«Alega-se que a legalização da eutanásia poderia ser aplicada de uma forma abusiva, tendo como consequência a morte sem o consentimento das pessoas em causa (…) Estas situações podem ser evitadas recorrendo ao conselho médico e efetuando uma decisão informada, ausente de pressões externas.»

Basta pensar um minuto para perceber os inúmeros casos de doentes em final de vida cujo consentimento é impossível de ser dado pelos próprios. Nestes casos, é de salientar a incapacidade moral e legal de um conselho médico para determinar a vontade de morrer de um doente. A autora uma vez mais reduz a realidade aos parâmetros que lhe convém na argumentação. Não há verdade nem sequer procura de imparcialidade.

8. Além de tudo isto, o que causa verdadeiro horror é quando a autora diz que é eticamente inadmissível que não seja efetuada uma consulta popular de modo a legitimar qualquer evolução legislativa sobre a prática da eutanásia.”. Fica assim evidente que a autora não faz ideia do que é a Ética – esse ramo da filosofia que procura descobrir “o bem” através da razão – trocando-a rapidamente pela opinião da maioria.

Espero que esta carta seja vista como uma vontade de crescimento da FRONTAL. As publicações numa revista de carácter científico têm que ter rigor na exposição dos argumentos. Se se pretende publicar uma opinião, ela que seja fundamentada.

Com os melhores cumprimentos,

João Coimbra

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O Luís Afonso nasceu em Coimbra, mas sempre sonhou ser de Mortágua. É estudante do 6º ano de Medicina, mas gostava era de ter um bar de praia em Copacabana e um canudo de Línguas Orientais na algibeira. Se o virem num concerto de Coldplay com ar aluado, provavelmente enganou-se no caminho ao sair de casa para comprar bolachas com chocolate, situação que, aliás, lhe acontece frequentemente. Quase ganhou o torneio de Trivial Pursuit da Queima das Fitas, só que errou a pergunta «Quantos dias sobrevivem os Glóbulos Vermelhos?». A partir daí a sua vida foi sempre a descer.

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