A qualidade da formação médica em Portugal – e, por extensão, a qualidade dos serviços de saúde prestados à população – está a ser posta em causa pelo excesso de vagas em Medicina. Para discutir esta problemática incontornável ao ensino médico foi constituída uma mesa redonda no âmbito das III Jornadas Médicas da NOVA. A Frontal esteve presente e dá-te a conhecer os pontos mais altos do debate!
A primeira intervenção ficou a cargo do Reitor da Universidade Nova de Lisboa e moderador do debate, o Professor Doutor António Rendas, que confessa: “Não temos, em Portugal, um planeamento sério de recursos humanos”, o qual seria determinante enquanto “ciência prospetiva que permite ter uma opinião em relação ao futuro”. No entanto, o Professor alerta: “A questão da sobrelotação é paralela à questão de fundo: como é que as escolas médicas devem começar a preparar os estudantes para serem futuros médicos capazes de exercerem autonomamente a sua atividade profissional?”. Neste sentido, o Professor Rendas recua na história e relembra os “dois grandes momentos na formação das escolas médicas”: por um lado, o aumento significativo do número de estudantes de Medicina (de acordo com dados fornecidos pelo atual bastonário, o número de ingressos, em Portugal, aumentou na ordem dos 396%, nas últimas décadas); por outro, o direcionamento das verbas para criar mais e melhores infraestruturas, de modo a permitir que a formação médica decorra num ambiente de investigação científica.
Como carreira alternativa apontada pelo Professor está a docência, embora reconheça a sua “dificuldade em atrair legitimamente estudantes para uma carreira académica que não é aliciante (poderá apenas proporcionar satisfação profissional ou realização social)”. O seu relato termina com a convicção de que, a par do “direito de serem competentes” está, inseparavelmente, “o dever de contribuírem para a melhoria da sociedade”, já que “vocês foram a melhor geração que Portugal teve”.
O Dr. Eduardo Rodrigues, interno do ano comum e membro do Senado da Associação Nacional de Estudantes de Medicina, é o primeiro orador a intervir. Inicia o seu discurso referindo que “o tema da sobrelotação é uma pergunta que está, na minha opinião, mal colocada. O que se deveria discutir é o ensino de qualidade”, incluindo a exigência formativa dos estágios hospitalares, a standardização e a eficiência dos mesmos.
“Arrisco-me a dizer que os numerus clausus não vão diminuir. O verdadeiro bottleneck em trazer qualidade quando há muitos estudantes passa-se no ambiente clínico”, sendo indiscutível que “o número de estudantes condiciona e prejudica, quando em excesso, o ensino clínico”. Como solução possível aponta o recurso à simulação médica: “Fiz Erasmus em Paris e nos estudantes franceses o ensino é muito algoritmorizado. A simulação e a repetição permitem criar um conjunto de mapas mentais que facilitam, num primeiro momento, a abordagem do doente”.
Neste enquadramento, o Dr. Eduardo apela à importância do associativismo representativo – “a ANEM continua a ter um papel ativo na definição destas políticas, nomeadamente no grupo de trabalho da prova nacional de seriação” –, incentivando a audiência a fazer ouvir a sua voz “enquanto transeuntes que passam pela faculdade e enquanto cidadãos”.
Em resposta ao comentário do Professor Rendas, faz ainda uma referência ao investimento que as faculdades recebem e à forma como o empregam na formação médica. “Senti que havia muitos recursos que não eram alocados ou poderiam ser aos estudantes”, sendo ao invés utilizados para fins de investimento das unidades de investigação.
Quanto ao facto de escassearem vagas para todos os recém-licenciados, o Dr. Eduardo Rodrigues assume um tom provocatório:
A Dra. Inês Pereira, interna de Neurologia em Berlim, tem um percurso singular: desde pequena que frequentou um colégio francês no qual convivia com alunos não só de França e do Canadá como também de Senegal e Marrocos, o que lhe inculcou uma satisfação precoce pelo ambiente internacional, que viria a condicionar profundamente a sua carreira médica.
A propósito da existência de internos sem especialidade, a Dra. Inês relembra que devem ser consideradas outras carreiras alternativas à prática clínica (“não necessariamente mais fáceis” e para as quais “devemos estar sensíveis”), entre as quais o jornalismo médico, gestão/administração hospitalar e investigação. E dá o seu exemplo: “A minha emigração foi uma opção própria e não o resultado de um sistema falhado”. E porquê Berlim? Porque aí existem “muitos centros de investigação em neurociências”, além de um “ambiente de startups muito vivo” associado à área da Saúde no qual poderia “começar as minhas colaborações e projetos paralelos”.
Aliás, as estatísticas mais recentes demonstram inclusive que a percentagem de pessoas que procuram as carreiras ditas “alternativas” quase iguala a percentagem das que se direcionam para a prática clínica: “Na Alemanha, quase 40% das pessoas que se formam em Medicina não seguem uma carreira médica”. Outras das vantagens proporcionadas pelo estrangeiro reside na maior flexibilidade de escolha: “Em Portugal só se pode mudar de especialidade duas vezes; na Alemanha pode-se mudar mais de serviço”.
Finalmente, coube a palavra ao Dr. Miguel Guimarães, atual Bastonário da Ordem dos Médicos: “Não gosto do termo sobrelotação – dá ideia de overbooking. Nós devemos lutar pela qualidade da formação pré-graduada: respeitar as capacidades formativas das várias escolas médicas”. Para tal, propõe “avaliar a idoneidade e a capacidade formativa dos vários hospitais/unidades de saúde para formar estudantes de Medicina”. Este é, de resto, o primeiro plano estratégico que expôs nas III Jornadas: “Nós temos de ir pela linha da qualidade”. “Todos os estudantes de Medicina que terminem a sua formação têm de fazer o ano comum. Ter médicos sem especialidade é mau para os médicos, para as famílias que investiram, para o sistema de saúde e para o Estado português”.
É por isso, aliás, que “toda a gente quer vir fazer formação em Portugal, e depois vão dar o seu contributo importante para outros países”. A Alemanha é um deles: forma menos médicos do que aqueles que emprega, indo recrutar os restantes ao estrangeiro. Estima-se que este saldo migratório se traduza, para Portugal, na exportação de mil milhões de euros na área da saúde, segundo dados mencionados pelo atual bastonário.
Ora, se a nível ministerial nada se pode fazer diretamente para contornar este problema motivado pelas diretivas europeias, existem porém algumas estratégias que indiretamente o conseguem: por exemplo, aumentar o nível de língua exigido para se poder exercer em território nacional. Até medidas como esta entrarem em vigor e se repercutirem na prática, o problema persiste:
Curiosamente, “uma parte significativa das pessoas que estão a emigrar não têm especialidade”. Porquê? Não é difícil entender: um contrato de Londres, em comparação com um de Beja ou Lisboa, “paga duas a três vezes mais”; oferece mais períodos de férias; faculta “acesso à última tecnologia para exercer Medicina de acordo com as boas práticas”; e até prevê dias de formação, que é patrocinada.
O envelhecimento da população médica em geral é outra consequência negativa que decorre desta “fuga” migratória: “a média de idades [dos médicos] é superior à da população em geral”, particularmente nos distritos de Bragança, Beja e Évora” (há 6 anos, mais de 50% dos médicos tinham mais de 50 anos). O “envelhecimento do SNS” e consequente “perda da capacidade de acompanhar aquilo que é a nova medicina” concorre igualmente para a premência de “fixar os jovens médicos em Portugal”, criando “condições potenciais para que eles prefiram ficar cá”. A Dra. Inês concorda, fundamentando-se num relatório da OCDE a propósito do internato de especialidade: “o ganho absoluto seria imenso se as pessoas com conhecimento adquirido forem atraídas para Portugal”.