«Conhecer não é demonstrar nem explicar. É aceder à visão.» Antoine de Saint-Exupéry, in Piloto de Guerra
Lisboa efervesce e reinventa-se: sem entrar em dissertações teóricas sobre o que terá mudado, queremos ver feições nascentes e sentir a suspeitada mudança de ambiente. Está na altura de revelar a nova “faceta” da capital, também personagem lisboeta; porque Antoine de Saint Exupéry tinha razão.
Boas (re)descobertas!
Lisboa está diferente. Será algo no ar? Sente-se uma dinâmica nova a invadir as ruas da cidade velha, do seu centro histórico, dos bairros que vêem os seus edifícios a degradar-se progressivamente. Em antigas casas e armazéns abandonados, projectos nascem, outros afirmam-se. Dizem-se ou chamam-nos de “alternativos” – o que quer que isso signifique. De uma forma ou de outra, eles existem, estão aí: cafés que não são só cafés, associações culturais que convidam a comunidade a sentar-se à sua mesa ou nas suas salas de espectáculo, e que são autênticas galerias de arte. Criam, compõem, fabricam, trabalham de maneira diferente, disso não se duvide. Mais com menos e, se não em oposição, pelo menos em concorrência à cultura dita de massas, já globalizada, pejorativamente apelidada de comercial. Será esta uma cultura alternativa? Talvez só de certa maneira…
O conhecimento dos produtos desta “cultura autónoma” provém do empenho de cada um em procurá-los: não é algo que esteja facilmente ao acesso de todos. E é talvez daqui também que surge o tom pretensioso que adquiriu a expressão “ser alternativo”. Mas, desde há uns anos para cá, e talvez por causa do que parece ser neste momento o quase eterno argumento económico, ou talvez apenas por causa da sedução intrínseca do que é diferente, assiste-se a uma paradoxal democratização, a uma antitética mainstreamização deste tipo de movimento. Organizações comunitárias promotoras de bairros como a Mouraria ganham força; espaços culturais (alguns muito improváveis!) como a Casa Independente, o Bacalhoeiro, o Clube Ferroviário e mesmo a Fábrica de Braço de Prata têm proliferado desde 2005. Mas este movimento não nasceu nesta década: outros projectos, como a Galeria Zé dos Bois, já nos vêm acompanhando há largos anos, desde os anos 90!
Correndo o risco de serem apelidados de jacobinos, os apoiantes desta maré defendem: ainda bem que esta democratização avança! Não será de facto injusto que apenas parte de um todo tenha acesso a uma fonte tão rica em novas experiências? Novas experiências essas difíceis de caracterizar, isto porque esta “cultura alternativa” não se limita a um género, a um estilo particular. Os artistas deste “movimento” usam, abusam ou negligenciam as cores; tanto produzem música que poderíamos ouvir ao deitar, como sons, temas e efeitos no mínimo sinestésicos, para não dizer psicadélicos.
Enfim, fica aqui, ao serviço do leitor, uma pequena selecção de espaços e de experiências mesmo à mão de semear, situados muito no centro da nossa capital.
Em pleno Bairro Alto, muitos de vocês já provavelmente se terão cruzado com este espaço, sem saber o que se esconde por detrás das paredes daquele prédio que serve de esquina revolucionária. Pois bem, esconde-se uma associação cultural sem fins lucrativos, um centro cultural no antigo Palácio Baronesa de Almeida, que, mais do que servir de local de acolhimento de obras já feitas, acompanha o processo de construção dos projectos que aí se criam. Nascido como espaço de criação, de discussão e de reflexão, o ZDB apoia anualmente vários projectos culturais, nomeadamente musicais; colabora com artistas como Norberto Lobo (nomeado com Mel Azul para o prémio de melhor álbum europeu independente de 2012) e acolhe músicos como os Dead Combo e Filho da Mãe. Peçam para ver o “aquário” e o terraço, da próxima vez que virem, na Rua da Barroca, uma ampla bandeira vermelha e, à frente dela, o operário de fato azul a vozear.
As surpresas começam logo à entrada: arte urbana, graffitis murais. Entramos pela porta à esquerda e deparamo-nos com uma grande placa de fundo azul com ondas desenhadas, sobre a qual lemos “A Biseladora Lda”. Engano nosso, talvez? Não. Continuamos a avançar e entramos numa ampla e longa sala, ainda com maquinaria que denuncia os tempos em que este edifício era uma fábrica de vidro. Ao fundo, um balcão, uma mesa e cadeiras, enfim, o que parece ser uma taberna… sem dúvida a Taberna das Almas, nome inspirado no da muito próxima Ermida de Nossa Senhora do Resgate das Almas, datada da época pombalina! Subimos até ao piso superior e deparamo-nos com um espaço para oficinas, que inclui uma mesa com símbolos maçónicos. É neste edifício e noutro que lhe foi anexado, ambos repletos de pequenas surpresas (incluindo um quadro das Amoreiras de Tomás Taveira), que a ARTA realiza as suas actividades culturais: teatro, dança, tertúlias musicais, workshops de música com instrumentos feitos de materiais reciclados, concertos, feiras do livro… e, claro está, para os amadores de exposições, performances e roupa em segunda mão: a sua conhecida Feira das Almas, todos os primeiros fins-de-semana de cada mês.
Tomando a Avenida Almirante Reis em direcção ao lar das Tágides, não deixemos de notar o “novo” largo do Intendente, para o qual olha um antigo palacete, em tempos um espaço para-maçónico, hoje sede da Casa Independente. Não se admirem por não haver qualquer indicação. É mesmo necessário entrar no edifício, subir até ao primeiro andar e transpor a porta aberta. Virem à esquerda e comecem a observar o salão, com o seu procurado palco felino. Reparem na antiga cadeira de dentista com ar de instrumento de tortura. Quando estiverem com os olhos cheios deste espaço heterogéneo, continuem a andar até ao fundo do salão e virem à direita. Percam-se então a olhar para a mistura de molduras, algumas com um quadro ou uma fotografia, outras solitárias. Percam-se também a abrir gavetas e armários. Encontrem As Mil e Uma Noites, Os Capitães da Areia ou Nana e sentem-se no antiquado cadeirão a ler. Visitem a cafetaria, não esquecendo o espaço exterior e… não negligenciem as “casas-de-banho” (incluindo a do sexo oposto!), aqui conjuntamente apelidadas de Galeria dos Fundos, onde até somos convidados a escrever nas paredes. A Casa Independente não pretende ser uma obra de arte, objecto de contemplação. Quer-se apreciada como uma experiência.
É no recôndito Beco do Rosendo que jaz a sede desta organização comunitária: a Mouradia. Ideia surgida numa viagem, esta nobre associação sem fins lucrativos nasceu oficialmente em 2008 para combater a degradação estrutural, social e cultural que assolava a Mouraria. Tem vindo a crescer desde então: neste momento, já conta com quatorze voluntários a tempo inteiro, para além de muitos outros colaboradores e, sobretudo, já dispõe de um espaço seu. Organiza um sem número impressionante de actividades: sessões de cinema com VHS, concertos com músicos do bairro, aulas de guitarra e de piano, karaoke ao vivo (em que o acompanhamento instrumental é feito, ao vivo, com guitarra e piano), tertúlias, jantares temáticos, aulas de danças latinas ou de ballet, oficinas de ilustração, de fotografia. A associação ainda organiza visitas guiadas à Mouraria, visitas cantadas, o Mercadinho do Beco (onde se vende, compra e troca)… enfim: et caetera. E se estão convencidos de que não é possível realizar todas estas actividades sem gastar uma fortuna, pensem duas vezes. No “Banco de Tempo”, a moeda de troca é tempo: ofereçam algumas explicações de matemática a quem precisa e frequentem depois aulas de ioga sem pagar um tostão. Aconselho vivamente uma visita a esta inspiradora associação que, mais do que fazer da Mouraria um bijou turístico, quis e quer reabilitá-la para proveito dos seus.
Perto do histórico Terreiro já sem Paço, este espaço de singular nome pleonástico ocupa a rua dos Bacalhoeiros, mas não pensem que o verão logo. Terão de entrar no nº125 e subir até ao segundo piso, até encontrar a porta, inconfundível quando aberta, desta associação. Terão achado a volúvel primeira sala, onde se poderão sentar num sofá ou à mesa, rodeados de um ambiente mais calmo e tranquilo, para petiscar ou beber à saúde destas organizações multifacetadas. Achem depois as escadas ao lado do bar que vos levarão ao piso inferior, onde tudo acontece: desde sessões de cinema às quartas-feiras a concertos de jazz, rock (menos) e reggae, passando pelas festas de disco-jóqueis variados. Neste espaço de experimentação, de oportunidades, de promoção da cultura popular também, a entrada é para os sócios sempre livre. O cartão de sócio custa dez euros, é válido durante doze meses e dá direito a levar um amigo, que também não paga, aos eventos. Já para os não-sócios, alguns eventos são pagos, enquanto que outros… nem por isso.
Adenda: à data de fecho e impressão da edição, o Bacalhoeiro estava ainda aberto ao público. Infelizmente, recebemos recentemente a notícia de que terá encerrado no fim de Abril.