Crónica de um SNS Jovem

Conceção

Em 1970 Portugal era, no contexto Europeu, um país pobre e pouco desenvolvido. Dos 180.000 portugueses que nasciam por ano, 63% faziam-no em casa, frequentemente em habitações de baixa qualidade. Em cada 1000 nascimentos, cerca de 60 não sobreviviam até ao primeiro aniversário. A nova constituição democrática de 1975 prescreveu a criação de um Serviço Nacional de Saúde (SNS) com a finalidade assegurar o acesso a cuidados de saúde de qualidade a todos os portugueses.

Utopia? Direitos sem tomar em conta os recursos financeiros (e outros) necessários para os realizar? Muitos respondem que sim, que estas não são proposições realistas. Mas quem assim pensa desconhece o caráter necessariamente visionário das políticas públicas. E o SNS é um bom exemplo.

De facto não se trata de aspirar a um futuro diferente, pensando simplesmente a partir daquilo que temos ou somos hoje. Pelo contrário, o que está em causa é objetivar aspirações mobilizadoras de bem-estar, capazes de desencadear um processo de mudança, à procura de uma sociedade mais empreendedora e mais próspera, onde essas aspirações se possam realizar. O discurso “não temos dinheiro, temos que cortar” é deprimente, fatalista e incompetente. Só pode levar a um ciclo vicioso de subdesenvolvimento.

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Curiosamente, as Constituições podem ter manifestações disléxicas. É o caso da portuguesa, quando diz que o SNS é gratuito! Como gratuito? O que lá devia constar é que o SNS é pré-pago por todos os portugueses que o podem fazer. A fórmula é: pagar de acordo com os nossos rendimentos, quando somos capazes, ativos e saudáveis, para receber de acordo com as nossas necessidades quando formos menos jovens e saudáveis.

Imagine-se, o folheto que anunciava a criação do SNS inglês, em 1948, explicava, com simplicidade e clareza, a ideia que ainda hoje não chegou a um considerável número de portugueses (incluindo governantes): “Não há taxas de utilização, mas não é caridade. Está a pagar para isto, especialmente através do seus impostos, mas vai liberta-lo das preocupações do dinheiro em tempo de doença”.
A ideia é mesmo essa: que a pessoa se sinta protegida. Chegada a doença, não tem que se preocupar também em ter dinheiro para pagar os cuidados que precisa. Nem sempre, num mundo tão imperfeito, é possível realizar tão elevados desígnios civilizacionais com perfeição. Mas o desafio é, apesar das dificuldades, porfiar em as superar o melhor possível, em vez de dar passos na direção oposta.

Nascimento

Estava o país preparado, na segunda década da década de 70, para um SNS? Tudo parecia indicar que não. Na Europa, os gloriosos trinta anos de crescimento económico pós-II Grande Guerra tinham chegado ao fim. A crise do petróleo, associada a um brusco aumento de preço do crude, estavam a afetar seriamente a economia mundial. Os países mais desenvolvidos tinham a aproveitado os anos de sólido crescimento económico para investir nos seus sistemas de proteção social. Portugal, pobre, vivendo num regime autoritário e assistencialista, não pôde aproveitar a oportunidade. E os anos 70 eram a pior altura para fazê-lo. Não havia “dinheiro novo”.

A ideia do SNS estava também longe de ser politicamente consensual. Uma parte considerável da profissão médica recebeu com significativas reservas a criação do SNS por duas razões, ambas de peso. No fim dos anos 60 a remuneração dos profissionais de saúde nos serviços públicos era mínima, quase simbólica. Lembro-me de um alto cargo do Ministério da Saúde dizer aos seus alunos, nessa altura: “Nós, de facto, pagamos pouco. Mas vocês também não precisam de cá estar muito tempo”. Neste contexto a integração no SNS dos serviços onde os médicos somavam pequenas parcelas da sua remuneração total, significava literalmente “continuar a ganhar muito pouco e ter que lá estar muito mais tempo”.

Por outro lado, o país padecia de uma administração pública antiquada, hierárquica e conservadora (muito mais do que agora), que parecia obviamente desajustada à natureza do trabalho profissional. O risco da “burocratização” definitiva da Medicina parecia real.
Ao nascer nestas circunstâncias, o SNS adquiriu de início uma grande carga de afeções congénitas de difícil tratamento e prognóstico. No entanto, improvavelmente, sobreviveu e cresceu, para se tornar, sem dúvida, no maior sucesso da democracia portuguesa.

A proposta de António Arnaut para a criação do SNS foi um ato de irrazoável teimosia face à situação do país nessa altura. Mas, na feliz expressão de um académico californiano, o fundador soube entender o “país que nos estava sonhando”.

Desenvolvimento

Seguiram-se 15 anos de grande expansão. O país encheu-se de novas infraestruturas de saúde, nomeadamente centros de saúde e hospitais. O número de profissionais de saúde aumentou substancialmente e as suas condições de trabalho melhoraram notoriamente.
Apesar das suas limitações congénitas, o SNS acabou por se situar uns níveis acima das restantes instituições públicas portuguesas. Mas não pode “descolar” do país onde se insere. Para que possa progredir mais afoitamente é necessário que o conjunto do país se desenvolva também – no apreço pelo conhecimento, no reconhecimento do mérito, na confiança e respeito mútuos, no rigor e transparência na gestão da coisa pública…

sak1Feita a expansão, o desafio passou a ser o da qualificação. Um dos maiores obstáculos para essa qualificação era a excessiva rigidez da sua estrutura organizacional: uma direção tradicional de comando-e-controlo (quem está acima manda e quem está abaixo obedece), demasiadas dificuldades no acesso aos cuidados de saúde por parte das pessoas que deles necessitam ou ausência de qualquer forma de premiar os bons desempenhos dos profissionais de saúde.

E então o SNS dá um novo salto qualitativo. Aquilo quena altura foi referido como “acontecimento extraordinário”. Um acontecimento também muito improvável no contexto da administração pública portuguesa. É a reforma dos centros de saúde, e muito especialmente o desenvolvimento das “Unidades de Saúde Familiar”.

Os profissionais auto-organizam-se em pequenas equipas multidisciplinares e escolhem o seu coordenador. Em vez de simplesmente obedecer ao chefe, contratualizam o seu desempenho com a “administração”, abrindo caminho para formas de remuneração em função desse mesmo desempenho. Tornam-se mais facilmente acessíveis as pessoas inscritas na sua unidade de saúde. Os profissionais passaram a sentir-se em sua casa.

Os velhos temores sobre a inadequação do serviço público português ao bom desempenho profissional na saúde, deixaram de ter razão de ser. A classe média, que sustenta financeiramente o SNS, passou a frequentar (ou voltou) aos centros de saúde. Esta é maior garantia de sustentabilidade do SNS. Isto é possível também fazer nos Hospitais.

Esperança no futuro

sak2Esquematicamente, podemos pensar o futuro do SNS através de dois cenários distintos. Cenário 1: um SNS português, com a capacidade de se internacionalizar e crescer como um setor importante da economia do país, em atualização e transformação permanentes, suscitando nos cidadãos e nos profissionais que o servem um forte sentido de pertença, trabalhando em cooperação aberta e transparente com o setor social e privado. Cenário 2: um conjunto de serviços de saúde privados (e privatizados), tendencialmente transnacionais, financiados diretamente pelos utilizadores e indiretamente pelos contribuintes, cujos centros de decisão se irão progressivamente deslocando para fora do país, coabitando com um sector público residual e limitado em dimensão e qualidade.

A evolução recente e debate sobre a saúde nos Estados Unidos são paradigmáticos. A profunda mercantilização da prestação dos cuidados de saúde nos Estados Unidos durante as últimas décadas levou a uma extraordinária expansão das mais valias obtidas pelas diversas indústrias da saúde, a par de uma notória degradação do exercício das profissões da saúde. Neste contexto, o forte apoio proporcionado pela Associação Médica Americana à Reforma Obama não tem nada de surpreendente. Os ensinamentos que daqui podem retirar os jovens médicos portugueses sobre os riscos que espreitam o sistema de saúde português e as esperanças que depositamos no futuro do SNS não podiam ser mais óbvios.

Também não deverá surpreender o facto da ideia forte que presidiu à recente criação da “Fundação para a Saúde – SNS”, seja a de que o SNS é nosso, é património de todos. Disse recentemente Sampaio da Nóvoa, no I Congresso “SNS: Património de todos”: «O futuro? Mas o futuro não existe, exclamou um dia António Sérgio. E respondeu: Existe, sim. Existe o futuro como ideia. O que constitui uma nação não é uma causa eficiente. É sempre sim uma causa final: um projeto, um plano, uma ideia do que há-de ser.»

O SNS é jovem, não tanto porque tem relativamente poucos anos, mas porque ainda tem muitos anos à sua frente – os melhores anos – se assim quisermos.

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Constantino Sakellarides é Professor Catedrátivo Jubilado de Políticas de Saúde. É atualmente Presidente da Fundação para a Saúde - Serviço Nacional de Saúde, uma instituição com origem na sociedade civil que procura preservar e apoiar o desenvolvimento do SNS e educar os cidadãos no que toca à importância do serviço público de saúde. É um ativista na defesa do acesso dos cidadãos portugueses a uma saúde universal, gratuita e de qualidade. O Professor Sakellarides exerceu ainda os cargos de Diretor para as Políticas e Serviços de Saúde da OMS/Europa (1991-95), Diretor-Geral da Saúde (1997-99), Diretor da Escola Nacional de Saúde Pública da NOVA e Presidente da Associação Europeia de Saúde Pública.

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