Opinião: E se não te deixassem morrer?

Opinião: Sara Oliveira, colaboradora da FRONTAL, reflecte sobre a eutanásia, o fim da vida e o prolongamento, por vezes desnecessário, da mesma.

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Vivemos com o objetivo de aproveitar ao máximo e de prolongar, tanto quanto possível, a nossa existência. Contudo, há situações em que os nossos instintos básicos são suprimidos por uma vontade maior: a de partir, de deixar para trás um sofrimento insuportável. Para alguns, a eutanásia surge como solução para este dilema. O problema? Amanhã podemos ser nós ou os nossos entes queridos a querer recorrer a um procedimento que não é permitido em Portugal 

O que é a Eutanásia?

A palavra eutanásia, da junção de “eu” e “thanatos“, significa literalmente “uma boa morte”. Na atualidade, remete para o ato de matar intencionalmente uma pessoa, invocando compaixão. Implica dois elementos: primeiro, acabar com a vida de um indivíduo deliberadamente e, segundo, que este acto seja realizado em benefício do mesmo.

Aceitabilidade Social e Legalidade

Os antigos praticavam a eutanásia em larga escala em crianças, idosos e enfermos, sendo tal prática também associada a motivações e ritos religiosos. Os povos primitivos sacrificavam os débeis em benefício dos outros.

Jesus Cristo

O presente sentimento geral de que a vida humana é sagarada e não deve ser deliberadamente tirada derivou enormemente do Judaísmo e da ascensão do Cristianismo. Para os cristãos, terminar uma vida humana é efetivamente usurpar o direito de Deus de dar e tirar a vida, Daí que a igreja católica se tenha posicionado, em 1956, contra a eutanásia. O Papa Pio XII, em 1957, aceitou, contudo, a possibilidade da vida poder ser encurtada como efeito secundário da utilização de drogas para diminuir o sofrimento insuportável, mas não provocando intencionalmente a morte.

Quanto à legalidade, a eutanásia é permitida, entre outros, na Holanda (primeiro país a legalizar o procedimento em Abril de 2002), Luxemburgo e Bélgica, sob a condição de apenas poder ser efectuada por pessoal médico, após consulta de outros profissionais, na existência de sofrimento físico ou mental considerado insuportável, não havendo outra solução razoável e tratando-se de uma decisão voluntária e refletida realizada por um paciente informado.

E em Portugal?

O Código Penal Português apresenta severas penalizações no que se concerne à prática da eutanásia:

[list type=”cross”] [li]Art. 133º (Homicídio privilegiado)
Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.[/li] [li]Art. 134º (Homicídio a pedido da vítima)
1. Quem matar outra pessoa determinado por pedido sério, instante e expresso que ela lhe tenha feito é punido com pena de prisão até 3 anos.
2. A tentativa é punível.[/li] [/list]

A Associação Portuguesa de Bioética também se pronunciou sobre o assunto, apelando ao debate nacional sobre o tema, e ao reforço dos esforços governativos com vista à amenização do sofrimento na fase final da vida e à realização de um referendo nacional sobre a legalização da eutanásia.

Sim ou Não?

O principal argumento apresentado a favor da eutanásia é o alívio do sofrimento, que nem sempre é alcançável medicinalmente a ponto de permitir a qualidade de vida do doente. Por conseguinte, a ortotanásia (morte natural, não prolongada de forma excessiva através de meios médicos), apontada como uma alternativa à eutanásia, nem sempre é praticável, prolongando uma dor incapacitante. Acresce ainda o facto de os cuidados paliativos (que têm como componentes essenciais o alívio dos sintomas e o apoio psicológico, espiritual e emocional do doente e da família) estarem pouco desenvolvidos em Portugal.

sem nome

Em certas situações, a sedação ou o uso de certos medicamentos  podem conduzir à diminuição do tormento. Porém, qual é o objetivo de viver quase que como em estado vegetativo, com um sorriso na cara que é independente dos nossos atos ou emoções? Quando a vida de alguém deixa de fazer sentido, não será preferível acabar com a ela a mantê-la ou mesmo prolongá-la de forma desumana e em agonia?

Claro que, por vezes, é difícil prever o tempo de vida que resta ao doente, e pode existir a possibilidade de o prognóstico médico estar errado o que levaria à prática de mortes precoces e sem sentido. Daí que a eutanásia deva surgir como uma decisão deliberada pelo próprio doente, bem informado e após serem consultados diversos profissionais.

O principal contra-argumento do ponto de vista médico é a existência do Juramento de Hipócrates que, na versão de 1771, referia: “Mesmo instado, não darei droga mortífera nem a aconselharei”; e após a Declaração de Genebra em 1983: “Guardarei respeito absoluto pela Vida Humana desde o seu início, mesmo sob ameaça e não farei uso dos meus conhecimentos Médicos contra as Leis da Humanidade”.

Contudo, estas mesmas “Leis da Humanidade“, compiladas na Declaração dos Direitos Humanos, abordam o conceito de dignidade humana o qual poderá ser definido como a possibilidade de “cada ser humano ter o direito de construir o seu próprio projeto de vida, tendo apenas como limite a liberdade dos outros fazerem o mesmo.”.

Sendo assim, o ser humano possui o direito, absoluto e inviolável, de morrer dignamente. Como ser autónomo e livre detém o poder de ser ator e agente digno até ao fim, possuindo o direito à autodeterminação. Trata-se de uma decisão pessoal, centrada no indivíduo, que os outros devem respeitar pois não os prejudica de qualquer modo.

A religião cristã rejeita este argumento afirmando que a vida provém de Deus e só a Ele lhe compete tirá-la. Todavia, embora possa ser considerado um argumento válido para os seguidores desta doutrina, não o é para os restantes.

Para além disso, há que ter em atenção que a eutanásia não defende a morte em si, mas a sua escolha por parte de quem a concebe como melhor ou a única opção, em situações extremas.

“Temam menos a morte e mais a vida insuficiente” (Bertolt Brecht)

Há países que consentem a eutanásia passiva mas não a ativa, pois consideram “matar” como uma ação condenável, ao contrário de “deixar morrer”. Pode-se considerar este argumento absurdo pelo facto de sermos tão responsáveis pelas ações que realizamos como pelas que decidimos não realizar. Inclusive, é permitido aos doentes, ou seus representantes legais, que neguem submeter-se a certos tratamentos, negação essa que os pode conduzir à morte. Assim, se legalmente se considera “deixar morrer” como aceitável, também não se deveria aprovar a “morte misericordiosa” intencional?

Alega-se que a legalização da eutanásia poderia ser aplicada de uma forma abusiva, tendo como consequência a morte sem o consentimento das pessoas em causa e que, no que respeita aos familiares ou governo, estes poderiam agir com interesse financeiro e recomendar ou mesmo incentivar a eutanásia. Porém, estas situações podem ser evitadas recorrendo ao conselho médico e permitindo ao doente realizar uma decisão informada, ausente de pressões externas.

Porquê discutir o assunto?

É fundamental promover um debate sério e participado sobre a eutanásia tendo em conta que é uma matéria de interesse público. É eticamente inadmissível que não seja efetuada uma consulta popular de modo a legitimar qualquer evolução legislativa sobre a prática da eutanásia.

É também essencial que se perceba que a legalização da eutanásia não pretende que esta seja obrigatória, apenas que quem a deseja tenha acesso a ela. Há sempre a possibilidade de a pessoa, quando mentalmente capaz, negar a sua realização, ou mesmo de redigir um testamento vital em que exponha o seu desejo de não ser sujeite a tal procedimento em qualquer circunstância.

Não há motivos que justifiquem que a eutanásia não seja moralmente aceitável, claro que praticada sob certas condições, idealmente:

[list type=”check”] [li]Solicitação voluntária, competente, explícita e persistente, por parte do doente, baseada em informações completas.[/li] [li]Situação de sofrimento físico ou mental que seja considerado inaceitável ou insuportável pelo doente.[/li] [li]Inexistência de outras alternativas à eutanásia; tendo já sido tomadas todas as hipóteses aceitáveis para redução da dor ou do sofrimento do doente.[/li] [li]Obrigatoriedade de troca de opinião do médico com, pelo menos, um outro médico.[/li] [/list]

Consegue-se assim prevenir que a visão utilitária da vida leve à eliminação da vida de pessoas que não o desejam.  É também tido em conta que atualmente se verifica uma “crise” do sentido da vida, prevenindo-se assim que uma desmoralização mínima conduza a uma morte injustificada.

As componentes biológicas, sociais, culturais, económicas e psíquicas têm que ser avaliadas, contextualizadas e pensadas, de forma a assegurar a verdadeira autonomia do indivíduo, que, alheio de influências exteriores à sua vontade, certifique a impossibilidade de arrependimento.

Viver é um direito, não uma obrigação e todos têm direito a uma morte pacífica.

Direito de Resposta

[toggle title=”Carta Aberta por João Coimbra”]Carta Aberta à Editora-Geral da FRONTAL, por João Coimbra[/toggle]

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Sara tem 18 anos e frequenta o 1º ano da FCM-NOVA onde ingressou em Setembro de 2013. Nascida em Coimbra, com família de Aveiro, viveu toda a sua vida em Leiria antes de se mudar para Lisboa. Conjuga o curso com os Escuteiros católicos e atividades de voluntariado a eles ligadas. A opção pela Medicina surgiu do interesse pelo corpo humano, da noção da fragilidade da vida e da vontade de ajudar os outros. A Frontal apresenta-se como meio de expressão da consciência cívica e do gosto pela escrita e pela leitura.

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