O Último Diretor

Ao chegar à Maternidade Alfredo da Costa (MAC), dirigi-me à porta das traseiras do edifício, como habitualmente faz a enorme comunidade de alunos, internos, profissionais de saúde e, acima de tudo, utentes. Noutra ocasião, ter-me-ia questionado: utilizar a porta dos fundos não é de todo nobre para quem visita as novas vidas que o mundo recebeu. No entanto o que me trouxe à MAC não foi a certeza de ver um nascimento, mas sim um óbito institucional há muito determinado. Ironicamente, quando perguntei pelo gabinete do Professor Dr. Jorge Branco (diretor da MAC e regente de Ginecologia e Obstetrícia da FCM-NOVA) foi-me indicada a porta principal. Saí rapidamente do edifício. A imponente escadaria conduziu-me aos elevados portões de madeira que parecem fechados, mas ainda não estão. Por lá entrei, como dentro em breve não será possível (ou pelo menos necessário). O encerramento da MAC foi decretado pelo Governo de Portugal em 2012 e está previsto para março de 2013. A FRONTAL falou com o Professor Dr. Jorge Branco sobre a tomada de decisão do Governo e as perspetivas de um futuro incerto para todos.

Jorge Branco

[hr]

ENCERRAR? PORQUÊ?

FRONTAL (F): Muitas entidades governamentais falaram sobre o encerramento da MAC. Quais foram os motivos indicados para a decisão?
Jorge Branco (JB): A MAC foi durante muito tempo um hospital central monovalente com Ginecologia e Obstetrícia. Isto levou a que a MAC sentisse a necessidade de se associar a um hospital polivalente de modo a poder garantir uma colaboração próxima de profissionais de outras especialidades. Isto porque cada vez mais a mulher engravida mais tarde, o [pullquote]Com esse desejo veio a ameaça constante, a voracidade, para que a MAC desaparecesse do mapa (…)[/pullquote]que aumenta a incidência de certas patologias. Daí que a ligação ao Centro Hospitalar de Lisboa Central (CHLC) me pareça muito indicada, trazendo múltiplas vantagens tanto para o CHLC como para a própria maternidade. Esta “união” teria funcionado bem se tudo tivesse sido feito como a MAC propôs. A sugestão foi criar um centro individualizado e especializado em Medicina da Mulher dentro do CHLC. Com esse desejo veio a ameaça constante, a voracidade, para que a MAC desaparecesse do mapa hospitalar da Grande Lisboa. Nunca foram apontadas razões objetivas à MAC nem ao Bastonário da Ordem dos Médicos, que várias vezes pediu explicações ao Ministério da Saúde. Nem nós, nem o CHLC, nem a Ordem, nem a própria Faculdade de Ciências Médicas (FCM) recebeu qualquer justificação válida, objetiva e concreta para o encerramento da MAC. No meu entender este fecho é absolutamente contra-natura. A MAC tem qualidade, tanto nas equipas como no edifício – totalmente renovado há 4 anos. Pretende-se meter a maternidade no Hospital Dona Estefânia, o que é completamente impossível tendo em consideração as unidades e volume de trabalho que estão aqui [pullquote align=”right”]A qualidade de profissionais com gosto de trabalhar em equipa é muito maior do que a soma das qualidades individuais.[/pullquote]colocadas. As equipas que foram criadas ao longo destes 9 anos, com grande volume de trabalho, experiência e qualidade, deviam continuar unidas. A qualidade de profissionais com gosto de trabalhar em equipa é muito maior do que a soma das qualidades individuais. A ameaça é essa. Perder equipas multivalentes distribuídas aleatoriamente por toda a Lisboa. Isto vai demorar muitos anos a recuperar, se for possível recuperar. Não estou nada otimista em relação a esta ameaça. No entanto, o que mais me preocupa são as nossas pacientes. A MAC tem uma referência primária nas freguesias que lhe estão atribuídas, e uma secundária que consiste nas pacientes enviadas por outros hospitais do país. Esta referência, retrato da nossa qualidade, representa 60% do volume de trabalho da MAC. As razões? Desconheço.

F: Será possível inferir alguns motivos, talvez do foro económico-financeiro?
JB: A qualidade não tem preço. A confiança é fundamental. Se não apostarmos na qualidade os custos vão aumentar, sempre foi assim. Mas se apostarmos na qualidade certificada os gastos vão progressivamente diminuir. Portanto, qualquer perda de qualidade acaba sempre por se refletir na despesa.

F: As entidades governamentais não apontaram motivos para o encerramento da MAC. Foram conduzidos alguns estudos?
JB: Que eu saiba não houve nenhum estudo que tivesse concluído pelo encerramento da MAC. Não há qualquer estudo do conhecimento público que aconselhe, mesmo por razões financeiras, o encerramento da MAC.

F: Havia alternativas de redução de gastos que não culminassem no encerramento?
JB: Claro que sim. Quando nós apontámos para a ligação com o CHLC fomos nesse mesmo sentido. A MAC podia, assim, recorrer a outras especialidades do CHLC sem aumentar os gastos. As nossas doentes tanto gastam aqui como noutro lado. Os profissionais tanto vão ser pagos aqui como noutro lado. Quanto ao orçamento do Ministério da Saúde, a repercussão não é muito significativa. No entanto, alguns profissionais já foram dispensados. Haverá alguma poupança que eu considero insignificante para justificar o encerramento de uma unidade destas.

[hr]

O QUE SE GANHA? E O QUE SE PERDE?

F: Terá o encerramento da MAC sido “usado”, de alguma forma, para ofuscar a necessidade de despedimentos?
JB: Algumas pessoas já foram dispensados, tanto na área administrativa como na enfermagem. Como já lhe disse, isto não justifica a pulverização das equipas que estão nesta casa.

F: Considera um investimento perdido aquele feito na formação de equipas e nas infraestruturas técnicas?
[pullquote align=”right”]Perder as equipas é perda de qualidade imediata.[/pullquote]JB: Perder as equipas é perda de qualidade imediata. O tempo que isso vai demorar a recuperar acaba por aumentar a despesa. É uma poupança negativa.

F: Durante todo este processo a MAC foi alguma vez consultada?
JB: Nenhum parecer foi pedido à MAC. A MAC fez o seu próprio parecer pois percebeu que o devia fazer em tempo útil. Claro que o nosso parecer não está de acordo com as medidas que vão ser tomadas, e dele nada resultou de positivo.

F: Olhando para o futuro, com o encerramento da MAC, terão os outros hospitais de Lisboa capacidade para absorver os utentes e profissionais que esta maternidade deixa?
JB: Eu tenho conhecimento que há outros hospitais em Lisboa com carência de pessoal. Quer o São Francisco Xavier, quer o Garcia de Orta têm franca falta de pessoal. Portanto, as pessoas que saem da MAC são bem-vindas a essas instituições. Infelizmente, isso é feito à custa da perda de uma instituição e das respetivas equipas. O que aqui se faz não se vai continuar a fazer noutros locais. A integração é sempre dolorosa. Para quem chega e para quem está. Isso custa tempo. Demora tempo. Leva ao desajustamento de equipas e adaptação de pessoas. Até se conseguir recuperar qualidade haverá um [pullquote]Destruir o conhecimento de equipas comprovadamente competentes e reconhecidas internacionalmente é criminoso.[/pullquote]prejuízo enorme para as pacientes. Tal deveria ser feito à custa de novos profissionais que se vão tornando especialistas. A MAC é a maior formadora de especialistas de Ginecologia, Obstetrícia e Neonatalogia do país. Devíamos esperar pela formação destes novos especialistas para os colocar nesses locais com deficit de pessoal. Destruir o conhecimento de equipas comprovadamente competentes e reconhecidas internacionalmente é criminoso. Não se vai fazer nada de bom, vai-se fazer tudo de mal. Aceito que haja alguma boa vontade para criar condições noutros hospitais, mas não pode ser à custa da destruição de uma marca de qualidade em quem os portugueses confiam. O país precisa de marcas de qualidade e vai destruir uma. Como é que podemos concordar com isto? É completamente impossível. A solução seria criar um compromisso entre a MAC, o Ministério da Saúde e outros hospitais para que alguns especialistas formados nesta casa fossem integrados nos quadros de pessoal desses hospitais com falta de profissionais.

[hr]

E NÓS, QUE NOS FORMAMOS NA MAC?

F: Terão os internos da especialidade – que escolheram a MAC como instituição de referência para terem a sua formação – de ser distribuídos por outros hospitais?
JB: Não faço ideia como é que isso vai ser feito. É totalmente desconhecido. Os melhores classificados escolhem sempre a MAC e, de facto, tenho muita pena que os nossos internos não saibam onde irão continuar a sua formação.

F: Há então alunos que entraram com notas altíssimas, tendo ficado colocados onde queriam, e que poderão ser alocados para outro sítio qualquer?
JB: Sim. No meu entender isso vai ser feito de uma forma quase aleatória. Mas não são só os internos, são também os alunos. Somos também um centro de formação pré-graduada. Infelizmente, não faço ideia para onde irão esses alunos. Temos, neste momento, 125 alunos do 4º ano durante metade do ano, sendo que a maior parte deles está colocado na MAC.

F: E terão esses alunos de encontrar um novo local de ensino que, certamente, não oferecerá ratios tutor-aluno tão bons como os desta maternidade?
JB: Não, isso é impossível. A Estefânia tem neste momento 6 alunos do 4º ano e o serviço não consegue ter mais. Portanto onde ficam os alunos que estão aqui? É uma preocupação que eu, como regente, já transmiti ao Conselho Pedagógico e ao presidente do Conselho Científico, dos quais aguardo uma resposta.

F: E não existem alternativas?
JB: Por enquanto ainda não, embora tenha feito uma proposta construtiva, talvez um pouco avançada. Os colegas do Conselho Pedagógico estão a par da mesma.

F: E tudo isto vai então culminar no encerramento da MAC?
JB: Não sei. Nós aqui dentro temos sempre esperança que isso não aconteça. Mas tudo aponta para que sim.

MAC

 

[hr]

QUE FUTURO SEM A MAC?

F: Não há então nenhuma data prevista para esse encerramento?
JB: A próxima data apontada é no fim de março. Foi feita uma providência cautelar, mas ainda não temos resposta do juiz. No entanto, sabemos que nestes casos não têm muito resultado…

F: A população portuguesa tem um carinho muito especial pela MAC. Qual é a sua opinião relativamente às manifestações do público contra o encerramento? Terão sido insuficientes? Tiveram algum peso nas decisões?
JB: O público e todos os que já passaram por esta casa sabem que a mesma é respeitada e é uma marca de confiança. Considero de grande importância os gestos destas pessoas. Desde já agradeço, pelo menos aconchegam todos os elementos desta casa. No entanto, penso que não vão ter repercussões no fecho desta casa. Há a necessidade de fazer um referendo na grande Lisboa. Talvez isso tivesse uma força maior do que as manifestações, que são sempre pautadas com algum sentimentalismo, tornando logo a posição menos objetiva. Penso que seria a única medida que poderia travar efetivamente o encerramento da MAC até que o novo Hospital Oriental de Lisboa estivesse pronto.

F: Temos visto o Serviço Nacional de Saúde (SNS) ser vítima de reformas centradas na diminuição dos gastos, com o aclamado objetivo de sustentabilidade. Acha que a manutenção destas políticas pode ser prejudicial para o funcionamento do SNS?

JB: Acho que pode. Todas as medidas que prejudiquem a qualidade do serviço prestado são destrutivas para o utente e para o próprio SNS. O SNS foi das melhores coisas que o 25 de abril nos trouxe. Os governantes de então construíram um edifício [pullquote align=”left”]Já o ano passado houve um agravamento da taxa de mortalidade infantil. É com toda a convicção que afirmo que os ganhos do SNS não podem ser eliminados por uma portaria ou um qualquer decreto.[/pullquote]que tem dado múltiplos resultados. Quero lembrar-lhe que, num espaço de 20 anos, deixámos de ser o país europeu com piores resultados neonatais para agora ocuparmos o 4º ou 5º lugar. Com pessoas de grande qualidade a coordenar esse trabalho conseguimos resultados que são um património nacional. Já o ano passado houve um agravamento da taxa de mortalidade infantil. É com toda a convicção que afirmo que os ganhos do SNS não podem ser eliminados por uma portaria ou um qualquer decreto. O nosso SNS é melhor que o inglês, o francês e muitos outros da Europa. Vamos mantê-lo, não podemos perdê-lo só porque temos menos dinheiro. É muito doloroso para quem se esforçou no sentido de que Portugal desenvolvesse um SNS de sucesso, ver cair agora esses resultados.

F: Pensa que poderá haver uma correlação entra o futuro aumento da taxa de mortalidade com a diminuição dos cuidados prestados pela MAC?
JB: Obviamente que tenho esperança que a qualidade dos nossos profissionais se mantenha. No entanto a fragmentação das equipas e a sua colocação aleatória por diversos hospitais vai, certamente, resultar em piores cuidados perinatais e obstétricos, numa altura em que as patologias obstétricas estão a aumentar, dado que a mulher engravida cada vez mais tarde. Tenho receio que isso se possa espelhar em piores resultados.

F: Vai ser o último diretor da MAC, um projeto que lidera desde 2003. Como se sente em relação a isto?
JB: Nunca pensei ser o último diretor da MAC. Quando eu cheguei aqui, a maternidade estava bastante debilitada. As instalações eram más e irreais para a capital de Portugal. [pullquote align=”right”]Nunca pensei ser o último diretor da MAC.[/pullquote]Conseguimos ultrapassar isso com investimento governamental e não só. Em 9 anos gastaram-se 11 milhões de euros. Se os dividirmos por 9 anos, é pouco para o que se fez e faz na MAC. Deixar de ser diretor da MAC, passados 10 anos, porque o seu concelho de administração foi extinto, dá-me um desgosto enorme, porque reflete a ausência de futuro para a juventude. Esta sensação é, para mim, muito triste. É péssimo.

Artigo anteriorA Medicina dos Entroikados
Próximo artigoRevolução Y
Diogo Franco Santos é aluno do 6º ano na NOVA Medical School / Faculdade de Ciências Médicas - Universidade NOVA de Lisboa. É natural de Torres Vedras e, como tal, é amante do Carnaval mais Português de Portugal. Fez todo o seu percurso escolar na vila da Lourinhã, Capital Europeia dos Dinossauros, e ingressou no Ensino Superior em 2010, onde ficou logo colocado na sua 1ª opção: Mestrado Integrado em Medicina, na supracitada faculdade. Se não estivesse em Medicina, provavelmente estaria em Jornalismo, o que tem tudo a ver. Atualmente é membro da Direcção da FRONTAL, estando a cargo da gestão dos conteúdos online da revista. Ele é aquela pessoa que deteta os erros que mais ninguém vê, dado o seu olho de lince para a coisa. "Grammar Nazi", muitos dirão. Os seus interesses pessoais, além da própria Medicina e de tudo o que se possa relacionar com a área da Saúde, incluem Artes e Espetáculos, Literatura, Natação, História de Portugal, Viagens... e a incomparável paixão por Cães. Aliás, só lhe falta mesmo ladrar.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.