Uma Porta que se Abre, um Mundo que Descobrimos

O voluntariado: uma aprendizagem de vida, algo que se revela bem mais do que uma simples experiência ou uma atividade meramente assistencialista. A FRONTAL introduz os mais distraídos ao projeto Saúde Porta a Porta.

Tocámos à campainha e, sem recebermos resposta, como se há horas nos aguardassem, a porta do prédio abriu-se. Depois de um vão de escadas, mais uma porta esperava agora que transgredíssemos a passagem do bem comum para o lar de família. E assim, acompanhado pelo Diogo e pelo Daniel, entrava num espaço que nada me dizia, onde nunca ninguém me tinha visto. Entre fotografias e bibelôs, acabei por cair num apertado sofá que me amparou a queda e onde, minutos depois, sem perceber muito bem o que se estava a passar, o meu olhar se fixava impassivelmente nas palavras da D. Alice. Palavras místicas que rapidamente pareceram vir de uma amiga de longa data, em quem depositava a confiança de a querer ouvir incessantemente e sem parar.

Fazendo-me sentir como se estivesse em casa da minha avó, a D. Alice, mulher de 82 anos, recebia-me pela primeira vez em sua casa, de braços abertos e expressões faciais caracteristicamente inesquecíveis, juntamente com dois estudantes de Medicina que nas últimas semanas a têm visitado.

Fomos recebidos como estudantes de Medicina que tinham vindo para fazer os testes de rotina planeados, mas, com a magia do voluntariado, acabámos por regressar a casa com uma sensação estranha. Uma sensação paradoxal de nos fazer sentir como alguém que recebeu muito mais do que aquilo que pôde dar.

Através do projeto “Saúde Porta a Porta”, uma iniciativa criada entre a AEFCML e a CUF Infante Santo, com o apoio da Junta de Freguesia dos Prazeres, estudantes da FCM-NOVA de diversos anos desenvolvem um projeto de voluntariado de caráter social e apoio médico. Quinzenalmente, em equipas de dois, os estudantes visitam várias famílias na freguesia dos Prazeres (na cidade de Lisboa), referenciadas por assistentes sociais. O projeto pretende promover um acompanhamento e aconselhamento médico por parte dos alunos, no sentido de melhorar a qualidade de vida destes doentes e, de alguma forma, tentar colmatar lacunas existentes no acesso aos parâmetros mais básicos de saúde e bem-estar. Periodicamente realiza-se uma reunião que junta voluntários e profissionais de saúde da CUF Infante Santo, com o intuito de melhorar o acompanhamento e discutir possíveis intervenções, de modo a que sejam as famílias as principais benificiárias do trabalho coletivo entre estudantes, médicos e assistentes sociais.

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Os casos são diversos de família em família, a complexidade peculiar de casa para casa, mas o desafio é transversal a todos e a vontade é constante em querer levar o conhecimento aprendido sob a tutela de professores para um lar que nos dá a confiança, nos abre a porta, e nos leva nas primeiras aventuras do que é ser médico e ter a responsabilidade de, percebendo tão pouco de tamanha arte, ser aquele que à sua volta mais entende a fisiologia humana, a diferença entre saúde e doença, a hora de se tratar e o momento de estar curado.

Tomei a liberdade então de acompanhar o Daniel e o Diogo numa das suas habituais visitas para compreender o modo como se desenvolve este projeto e o impacto que tem junto das famílias apoiadas. Este ano estão responsáveis por acompanhar a Elisabete, uma senhora que vive totalmente dependente dos cuidados e de todo o amor que a sua mãe, a D. Alice, lhe oferece como ninguém. À nascença a sua esperança de vida não ultrapassava os sete anos, mas hoje, com cinquenta, continua sem nunca, por um dia, ter sabido o que é viver sem a sua paralisia cerebral.

Saindo do conforto da nossa casa e ao darmos o passo para querer conhecer novos mundos, mesmo estando esses mundos numa porta escondida de um prédio velho na rua do lado, regressámos, perplexamente, mais preenchidos.

Carregados com os nossos objetos mágicos, desde o estetoscópio ao esfigmomanómetro, do medidor da glicémia ao diário de registos, acompanhei-os para o que viria a tornar-se numa tarde inesquecível. Fomos recebidos como estudantes de Medicina que tinham vindo para fazer os testes de rotina planeados, mas, com a magia do voluntariado, acabámos por regressar a casa com uma sensação estranha. Uma sensação paradoxal de nos fazer sentir como alguém que recebeu muito mais do que aquilo que pôde dar.

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É difícil compreender como é que alguém que vive há meio século dedicada exclusivamente à sua filha, que não tem perspetivas de reversibilidade da sua doença, consegue esboçar um sorriso tão grande e tão feliz. E mesmo esse sorriso não se imagina, nem tão pouco se entende, até se estar defronte dele. Dizia-me, apontando na direção do teto da sua sala: “é lá em cima que vou buscar a energia à noite quando me deito; e de manhã, quando acordo, agradeço”. Convicta, diz que não precisa de ir à igreja. Prefere ler os seus livros espirituais, falar com alguém que não vê com os olhos e, por vezes, ir ao encontro do nosso conhecido Dr. Sousa Martins. E com isto – baseada também na sua experiência de juventude como prestadora de cuidados de saúde da aldeia onde nascera – afirmava, imperturbável na sua crença, que nós, médicos, na nossa profissão, no relacionamento com os nossos doentes, também precisamos dessa fé, dessa mesma espiritualidade que lhe afasta a solidão e a faz esquecer do seu cansaço. Qualquer coisa que vai para além da ciência e da racionalidade, qualquer coisa que não se explica, que somente se sente e se partilha.

O voluntariado no projeto Saúde Porta a Porta é precisamente uma porta, uma porta que se nos abre e nos diz: vive, aprende com o outro, conhece-te a ti mesmo, faz deste mundo um lugar melhor e sê feliz!

Podemos concordar, discordar ou simplesmente achar difícil de compreender. Mas não é isso que importa. Naquela tarde a D. Alice ficou feliz com a nossa visita e a Elisabete mostrou-se estável na sua saúde. Mas nós, saindo do conforto da nossa casa e ao darmos o passo para querer conhecer novos mundos – mesmo estando esses mundos numa porta escondida de um prédio velho na rua do lado – regressámos, perplexamente, mais preenchidos. Se calhar com menos respostas, certamente com mais questões, pensativos e confusos sobre o valor tão relativo que a vida e a felicidade podem revelar. Estarei eu à altura de compreender os meus doentes, mesmo quando tudo parecer somente um problema fisiológico ou anatómico? Serão os meus problemas profissionais e pessoais verdadeiramente problemas quando encontro vidas como estas? É algo que se aprende simplesmente vivendo. E viver significa arriscar, significa ter a confiança de concretizar um sonho, de querer ser feliz por quem se é e pelo valor que se tem para os outros. O voluntariado no projeto Saúde Porta a Porta é precisamente uma porta, uma porta que se nos abre e nos diz: vive, aprende com o outro, conhece-te a ti mesmo, faz deste mundo um lugar melhor e sê feliz!

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O Projeto Saúde Porta a Porta (SPAP) estará de volta muito em breve. Se tens interesse em participar nesta iniciativa mantém-te atento às plataformas de divulgação da AEFCML, como o seu site e página de facebook.

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