Virar do avesso com Cláudia Sabença – Histórias de voluntários no sector dos refugiados e o seu caminho pelo bem-estar mental

Cláudia Sabença esteve um período de mais de 4 anos a fazer voluntariado internacional com pessoas refugiadas em Calais, Grécia e Sérvia. Trabalhou como voluntária e coordenadora na distribuição de bens e prestação de serviços em campos regulares e irregulares. Nesta entrevista, conta-nos o que foi aprendendo ao longo dos anos, nas várias experiências diferentes, e os desafios que enfrentou no percurso.

Entrevista conduzida em Abril de 2022 

Carolina Veloso (CV) – Em primeiro lugar, pedia que me descrevesse as atividades que desenvolveu durante o seu voluntariado internacional.

Cláudia Sabença (CS) – Num período de aproximadamente quatro anos e meio, fui, primeiro, para Calais, França, em setembro de 2016 como voluntária de uma organização inglesa – HelpRefugees. Estive a trabalhar em armazém, na preparação de roupa e kits de receção; na confeção de comida; na receção de pessoas na caravana de boas-vindas, onde montávamos tendas e distribuíamos os kits para os recém-chegados; na distribuição de material; e no acompanhamento semanal das pessoas a quem tinha montado as tendas, tentando perceber o que precisavam. 

Em seguida fui para a Sérvia, onde criei um projeto de limpeza do campo que depois evoluiu para uma ONG. O trabalho consistia em limpar e gerir uma equipa de voluntários, mas que apenas durou 3 meses e meio por ausência de apoio das autoridades locais. 

Depois, estive na Grécia como coordenadora de logística, gestora de projetos e coordenadora de projetos paralelos num centro, e, noutra organização, fui coordenadora chefe de uma operação no terreno com uma equipa grande, onde tínhamos um centro num campo do interior e o maior armazém de roupa e de bens do norte da Grécia.

 

CV – O que a levou a ingressar nestas experiências de voluntariado? E com que expectativas ia em relação ao trabalho a desenvolver em comparação à realidade que enfrentou? 

CS – Em 2015, lembro-me de estar em casa com a minha família a ver televisão e estavam a passar imagens (que se calhar agora vemos da Ucrânia) de pessoas a fugir do Afeganistão e, principalmente, da Síria. Confrontei-me pela primeira vez com a realidade de que a Europa, que teve grande culpa no que estava a acontecer, não estava a saber receber as pessoas. Parecendo-me tudo isto muito esquisito e tendo familiaridade com o voluntariado desde os treze anos, foi natural, para mim, querer ajudar. Porém, não sabia bem como. Primeiro, tentei ajudar em Portugal, contactar plataformas de apoio a refugiados, mas não consegui obter resposta. 

A minha grande motivação foi o desejo de contribuir para algo, de poder ajudar um bocadinho. Além disso, devinha do choque de ver aquelas imagens e ter a consciência de que amanhã podia ser eu. Iria odiar que recebessem a mim e à minha família como estavam a receber as pessoas, sem nunca terem feito nada para serem tratados como cidadãos de segunda classe. 

 

CV – Que expectativas tinha em relação ao trabalho que ia desenvolver em comparação à realidade que enfrentou? 

Quando cheguei a Calais ia com muita vontade de ajudar e foi um choque quando me disseram que não podia ir para o campo, que ia trabalhar para o armazém. Neste momento, depois de muita experiência no terreno, percebo porque houve esta decisão, mas na altura mexeu comigo e comecei a questionar as minhas motivações. Já lidei com muitos voluntários neste sentido, compreendendo-os e validando-os, tentava explicar que muita da necessidade de trabalho é ao nível do backstage: trabalhar em armazéns. Nem sempre temos de estar na linha da frente. É necessário questionarmo-nos sobre o porquê de irmos. Vamos para ver o show? Naquele primeiro contacto, eu fiz parte deste processo. Tinha expetativas de que ia ter uma contribuição espetacular – e não vou dizer que toda a gente não faz falta porque faz – mas, realmente, é um problema muito grande, nós somos uma pequena peça da máquina. Provavelmente, foi nesta situação que fui confrontada pela primeira vez com o “complexo do salvador” e com a gestão de expetativas. Foi uma lição de humanismo enorme. 

 

CV – Como sentiu uma mudança a nível pessoal?

CS – A minha primeira experiência foi um choque, mas chocou-me pela positiva. Mudou-me, em primeiro lugar, porque senti realmente que existia mundo para além da minha casa. Mesmo já tendo viajado antes, percebi que existia, no sentido humano, um mundo para além, onde era possível estabelecer conexões muito fortes com pessoas de outros países. A seguir, consegui perceber que as histórias destas pessoas tinham uma componente mais relacionável do que um possa pensar. Montei tendas para médicos, arquitetos, entre outros. Realmente, a guerra não discrimina. Todas estas pessoas estavam naquele sítio nojento (não havia outro nome). Foi uma lição de vida muito rápida. Eram muitas lições que eu tinha que aprender ao mesmo tempo. 

Na altura fui mal agasalhada, mas a culpa era minha, ia mal preparada. Um dia, estava um grupo a distribuir camisolas para as pessoas do campo, onde havia uma fila enorme para as receber. Um rapaz que tinha estado na fila viu-me a tremer enquanto estava a trabalhar e veio-me entregar a camisola que tinha acabado de receber. Eu fiquei chocada e disse-lhe que não, mas ele insistiu, argumentando que eu estava com frio. A verdade é que estava com frio, mas o rapaz tinha ficado na fila durante horas. E ele respondeu-me que apesar de ter estado na fila esse tempo todo, achava que eu precisava mais da camisola do que ele. Isto acontecia com várias coisas. Claro que não vou dizer que foram todas as pessoas, mas foi a grande maioria. Estava presente um clima não só de segurança, como também de entreajuda e solidariedade. Eu sou socióloga e poder ver a forma como as comunidades interagiam entre elas e com as outras comunidades foi muito interessante.

Porém, também vi pais a desesperar porque tinham crianças a morrer nas tendas e nós não podíamos fazer nada. Senti uma impotência, que me fez crescer muito. Vi colegas a desesperar, mas também os vi a lidar com isso. Houve muitas pessoas que tiveram de sair, porque foi demasiado para eles. Havia fogos durante a noite e no dia seguinte tínhamos de montar outras tantas tendas, ou havia uma inundação que levava centenas de tendas, etc… Mas, no final, havia sempre uma parte positiva, nem que fosse uma certa comunidade que começou a falar com a outra. Foi muito…foi uma experiência mágica. Na altura a frase que me vinha mais à cabeça era aquela música da Rihanna“We found love in a hopeless place” – porque realmente aquele sítio era tão miserável, tão triste, mas criavam-se ali relações para a vida, entre voluntários, entre voluntários e residentes, e entre residentes. Eu, em dois meses, vivi uma vida. Explorei o mundo sem sair da Europa. E voltei para a casa onde tudo estava igual, obviamente. Porque o que são dois meses?

“The Jungle”, Calais, França (2022). Fotografia de Alex Vasey em Unsplash.

CV – Como foi a adaptação no regresso?

CS – Voltar foi chocante. Perceber que as pessoas não tinham visto aquilo que eu vi. Ninguém compreendia o que eu estava a sentir e a única pessoa que compreendia foi uma amiga que veio comigo. Por isso, fechámo-nos numa bolha. Desliguei a nível psicológico de alguma forma. Demorei a reajustar-me e a roupa foi parte disso. Continuava a usar aquelas roupas de trabalho. Não queria deixar de as usar porque significava que a experiência tinha acabado, e como gostei tanto de lá estar, era difícil. Mantinha o contacto com os amigos, mas dei por mim a estar em conversas e não estar lá realmente. Estava a contar os dias e o meu dinheiro para quando podia voltar. E esse é um perigo do voluntariado – um perigo bom – é um vício. Experiências de voluntariado viciam, porque realmente a sensação de poder estar a fazer aquilo que gostas, de sentir que há muita liberdade… A partir do momento em que me desvinculei da parte material e estava disposta a pagar por isso, a trabalhar de graça… é uma liberdade incrível. Aonde é que eu quero ir agora? Quem é que eu quero ajudar agora? Mas não havia como voltar. Não havia salário. E custou-me muito. 

As pessoas estavam preocupadas comigo, e eu não sabia como lhes explicar. Contava as histórias que trazia e as pessoas só viam o mal nelas. Não conseguiam ver para além do “horror”. A moral da história não era essa, era que o governo não estava a providenciar nada e que as pessoas estavam literalmente a agredirem-se por causa de um cobertor, porque tinham os filhos a morrer numa tenda. Não perceberem isso frustrava-me bastante. Por isso, comecei a ficar muito defensiva e falar de refugiados tornou-se um assunto muito sensível. Acho que para a minha família, apesar de terem sido tempos difíceis, foi bom, porque, hoje em dia, são pessoas mais educadas e alertas para a causa, e pensam de uma forma completamente diferente. É incrível o caminho que eles fizeram comigo. 

 

CV – Qual foi o apoio psicológico, se algum, a que tinha acesso em Calais? 

CS – Em Calais, tínhamos um psicólogo na organização, com quem podíamos falar às quartas individualmente, e às quintas numa rodinha de chá para quem quisesse. Muita gente em Calais não estava bem psicologicamente. Havia pessoas que estavam bêbadas todos os dias. Na minha opinião, o uso de álcool é um mecanismo de processamento muito perigoso. Ao fim de uns dias e de alguns meses, começa realmente a afetar. Era o ambiente perfeito para o burnout. Eu não atingi esse nível porque estive lá pouco tempo, mas já dava por mim a beber mais do que o normal.

Permanecer muito tempo neste trabalho não é muito bom para a saúde mental. Mas a verdade é que depende das condições em que se está. Quando se dorme no sítio onde se trabalha, com as pessoas com quem se trabalha, torna-se insustentável e resulta em burnout ou numa espécie de reclusão emocional do resto do mundo, sendo cada vez mais difícil retornar à realidade. Aos voluntários, advertíamos para o cuidado pessoal e aconselhávamos a manterem contacto com a sua casa, para manter a estabilidade emocional. Quando se vive com estas pessoas novas, a fazer um trabalho incrível, muito compensador, parece que não existe mais nada, nem pais, nem amigos, nem companheiros. Tudo desaparece, mas isto é efémero.

O psicólogo era para situações graves e agudas, mas diria que não era suficiente. Lembro-me bastante bem de ouvir pessoas a chorar à noite, especialmente, porque era depois de uns copos, o álcool puxava tudo e, quando bêbados, começava a vir tudo ao de cima. Muitas pessoas depois não podiam voltar para o campo porque estavam um pouco inutilizadas. Também havia quem quebrasse as regras do código de conduta, como envolver-se emocionalmente com um residente, o que se tratava de um desequilíbrio de poder. Por isso, é muito importante que as organizações mantenham o olho em cima do staff, porque com o apego segue-se a falta de discernimento. É a diferença entre um trabalho amador e profissional.

 

CV – No regresso, houve algum apoio psicológico? Acha que seria necessário?

CS – Quando voltamos, sentimos que, mesmo só depois de 2 meses, no campo de Calais era onde as pessoas nos entendiam, que eram os nossos pares, e queríamos voltar. Viemos com muita raiva que não foi processada. E lá está, faria sentido termos sido acompanhadas por um psicólogo à chegada, mas depois parece estúpido. O psicólogo não seria para as pessoas do campo?  Porém, tínhamos muitas emoções em segundo grau (1), porque ouvimos muitas histórias horríveis, e não tínhamos ninguém que nos compreendesse. Começava a falar da história de uma pessoa que conheci e a reação era: “lá vem ela estragar o jantar”. Quando se ouvem muitas histórias traumáticas e se aproxima das pessoas, acaba-se por viver um pouco a dor delas. 

Naquela altura, eu já não conseguia distinguir o que era uma conversa apropriada para ter com amigos num restaurante e o que não era. Perdi a capacidade de ler a sala e perceber o que era ou não adequado. E ainda por cima, contava os detalhes todos, porque havia uma parte de mim que queria chocar, queria que sentissem aquilo que eu senti. Queria desabafar e também encontrar simpatizantes com a causa, porque, naquela altura, as pessoas não eram muito favoráveis à mesma. Todavia, tiveram de me dizer: “Cláudia, compreendemos que tenhas feito isso e que tenhas gostado e ainda bem que foste. Agora, primeiro, nem tens o direito de estar a cobrar que nós sintamos algo que não sentimos e que nos chames más pessoas por isso, nem tão pouco estar sempre a partilhar coisas que são chocantes. Nós somos seres humanos vamos sentir também aquilo que estás a dizer.”. Foi um ajuste muito grande e percebi que se eu queria continuar a fazer este trabalho tinha de mudar algumas coisas.

 

CV – Com que expetativas voltou ao voluntariado internacional, agora na Sérvia? E quais foram os seus desafios?

CS – Quando fui para a Sérvia, ajustei um bocadinho o meu mindset. Cada vez que se passa para uma e outra experiência leva-se lições às costas. Tinha expectativas mais niveladas como “eu não ia mudar o mundo”, “não sou o salvador da pátria” e “eu ia fazer parte do processo”. Porém, foram meses muito duros. Na altura até me questionei sobre “O que é que eu estou aqui a fazer verdadeiramente?”. Isto também porque se as pessoas que lá viviam não tinham interesse, porque é que eu haveria de ter? Debatemo-nos muito, mas decidimos continuar. Aquilo ia ter um propósito e teve. As pessoas quando viram que nós não íamos embora, que íamos continuar ali, juntaram-se e foi incrível. As histórias que ouvia ainda me chocavam, mas já não era como na primeira vez, em que nem sabia que certas situações aconteciam. O que me chocou foi a violência que vi e que tive de gerir. Não havia muitos mecanismos de apoio, especialmente em campos irregulares com uma comunidade de voluntários muito escassa.

Na Sérvia, fui com a preocupação de zelar pelo meu cuidado pessoal. Fiquei a viver num sítio diferente, trabalhava menos horas por dia, deixei de fumar e beber álcool. Uma estratégia de coping que tive foi a comida, e de facto engordei bastante. Só partilhava a minha experiência com o meu companheiro, e desta vez quase atingi o outro extremo de não conseguir falar sobre o que via. O mecanismo de coping foi tentar equilibrar as horas de trabalho, não me deixar envolver da mesma forma e vivermos apenas eu e o meu companheiro. O facto de não haver uma comunidade de voluntários, acho que no fundo me ajudou, porque nos aborrecíamos de estar sempre a falar do mesmo, então obrigávamo-nos a falar de outras coisas.

 

CV – Como foi a adaptação na Grécia, depois de já ter passado esses tempos na Sérvia e em Calais? 

CS – A Grécia foi um passo muito mais natural. Ao longo deste tempo, tive mais treinos, fui estudando mais a sensibilidade cultural. Quando cheguei ao campo, para mim, foi o primeiro campo “normal” que eu vi, que não fosse irregular. Deu-me também outra perspetiva. Foi a primeira vez que trabalhei com mulheres e crianças, num ambiente familiar, mais de bairro. Vi outras coisas, que me afetaram de outra forma, mas o que me pesou mais emocionalmente foram as longas horas de trabalho. 

Era responsável por abastecer o campo todo, em que geria dois armazéns e uma equipa responsável por perceber o que é que faltava, trabalhar com fornecedores, recolher materiais, distribuir comida, …. E o grupo de voluntários voltou. Nós, os coordenadores, vivíamos todos numa casa e os voluntários noutra. Contudo, não se estabeleceram limites e continuávamos, constantemente, a falar dos problemas que confrontávamos diariamente. Trabalhava desde as 9 da manhã às 7/8 da noite no campo. Além disso, voltava para casa para jantares, pois era esperado que fizéssemos parte da vida social dos nossos voluntários de modo a se sentirem integrados, através de jantares de chegada e jantares de partida. Não havia tempo para respirar. Senti muitas vezes que não tinha tempo para mim, nem para falar com as minhas pessoas, nem para falar com o meu namorado. Saía do campo, ia a casa tomar um banho, ia para um restaurante qualquer beber e fumar, falar outra vez sobre o campo e depois ia para casa já meio bêbada, pronta para me levantar cedo na manhã seguinte. Lá está, não descansei bem e volto a trabalhar.

Depois de um ano neste ritmo, uma pessoa fica exausta, levando quase a uma loucura emocional. Nós tínhamos um psicólogo on call, mas mesmo assim acabei por nunca recorrer a esse serviço. Apoiava-me muito nas pessoas. Fiz amizades muito fortes na Grécia, e agarrava-me àquelas pessoas para desabafar. Porém, olhando para trás, se calhar aquelas pessoas também não estavam muito bem e não terá sido a melhor decisão. Há tanta coisa que acontece que nem se tem tempo de processar, só se sente depois.

 

CV – Como geriu o regresso depois da sua experiência na Grécia?

CS – O regresso já é diferente, porque eu já sabia fazer a imersão. Já não me deixava entrar naquele estado filosófico. Separava o “Eu na Grécia” do “Eu em Portugal”. Quando vinha, as pessoas já nem reparavam que tinha estado na Grécia. Comecei a conseguir deixar o trabalho lá. Deixei de colocar a expectativa do apoio nos meus amigos e na minha família. Se precisasse de falar enquanto estivesse em Portugal, ligava às minhas amigas da Grécia. A verdade é que também este comportamento me afastou das pessoas a um nível emocional, porque acabavam por não saber muito da minha vida, nem sabiam o que se passava. As histórias que contava já eram mais limpas e mais técnicas, sobre o trabalho em si. O importante era que existisse respeito pela causa e não houvesse comentários racistas e xenófobos.  

O que dizemos aos voluntários é nessa linha. Os voluntários são preparados para gestão de expetativas e para o retorno a casa. Tentamos que compreendam que apesar de serem testemunhas do que viram, a mentalidade das pessoas não muda se contarem esta história ou a outra, o que contribui muito para a frustração pessoal. Neste sentido, perdi amizades quando percebi que tínhamos maneiras de ver o mundo completamente diferente. No entanto, os conselhos que damos aos voluntários é para não criar ruturas, mas sim tentar construir o diálogo e mostrar o seu ponto de vista. 

 

CV – Como zelava pelo seu bem-estar mental?

CS – Na Grécia, tínhamos sessões de treino com psicólogos, e sabíamos a estratégia para a prevenção de burnout: mindfulness, escrever, fazer desporto, contactar os amigos de casa, tirar tempo para nós mesmos. Nós sabíamo-las todas, mas aplicar… ninguém aplicava, porque havia sempre um sentido de urgência. Era o sentido de urgência e o sentir que se é insubstituível quando não se é. És substituível. 

Na minha opinião o primeiro desafio foi o facto de vivermos todos juntos. Não é normal vivermos com os colegas de trabalho com a hierarquia toda junta. Depois, era o facto de trabalharmos 6 dias por semana, 16 horas por dia. Como se isso não bastasse, havia também a pressão de estar envolvido nos eventos sociais. Não há tempo nem para pensar. Este ritmo pode ser interessante para quem fica duas ou três semanas, mas para quem está lá a viver, leva a burnout. E as tais estratégias de prevenção do burnout não resultavam. Tentei implementar políticas diferentes quando lá estive com coisas pequenas como “não se falar no grupo de trabalho após as 19h”, e também tentei falar com a sede da organização para saber se podíamos mudar de casa e viver separados, fazer debriefs semanais, minimizar as horas de trabalho, dar dois dias de folga, entre outras.

 

CV – Na sua opinião a solução partia de mais financiamento ou mais suporte logístico?

CS – Acho que é um problema organizacional. Acontece mais nas organizações grassroots (2) do que nas organizações profissionais. Nas grassroots não há muito apoio e existe a necessidade de trabalhar sempre mais. É preciso também perceber qual é o foco do trabalho porque se se trata de distribuição de roupa, se calhar não existe o mesmo sentido de urgência do que estar a responder a crises médicas. Neste primeiro caso, há mais espaço para ter políticas mais normalizadas. Depois, é a questão de doadores que querem apoiar as pessoas refugiadas diretamente, e é necessário também vender a ideia de que ajudar os voluntários é apoiar as pessoas para a qual a assistência é dirigida. As organizações têm de angariar fundos com isso em mente. 

Também devia existir uma maior supervisão da organização para perceber como está o staff e geri-lo, porque quem está no terreno não pode tomar essas decisões. Sempre sugeri haver um Welfare coordinator (3) que trataria de nos gerir, perceber como otimizar o nosso trabalho, arranjar soluções para tornar esse trabalho mais confortável e fazer despistes de saúde mental. Conheço casos de pessoas que passaram meses e meses no terreno, num estado de completo burnout e, portanto, psicologicamente comprometidas. Isto levava-me a questionar: quem é que está a tomar conta das pessoas? Eu não podia ter essa responsabilidade acrescida. Existe uma negligência profunda por parte das organizações, principalmente nas grassroots, onde trabalhei. Estas organizações mais pequenas não investem no bem-estar do pessoal. Querem que todo o cêntimo que angariam vá para a distribuição de comida, roupa e higiene. O staff fica esquecido completamente. 

A estrutura é baseada na premissa de que o staff não fique muito tempo. Assim, estão preparadas para que o trabalho seja muito rotativo, porque as pessoas entram em exaustão. Na Grécia questionava-me muito se não seria melhor ter pessoas mais saudáveis a ficar mais tempo. Mais, há tanta informação que é perdida. Eu estive a liderar grupos regionais de trabalho e todos os meses tinha pessoas novas à minha mesa de trabalho. Já não sabia quem eram e as pessoas nem sabiam o que vinham fazer. Ter de explicar tudo de novo e garantir que toda a informação era comunicada não era sustentável.

Na minha perspetiva, um debrief devia ser obrigatório. Além disso, não devia ser da responsabilidade das equipas no terreno zelar pela saúde mental dos voluntários, mas sim de profissionais. Porque os coordenadores normalmente não têm nada a ver com áreas ligadas à saúde mental.  No fundo, é do interesse da organização saber que as pessoas que as representam estão bem. Sentia que estávamos um pouco abandonados e cabia aos coordenadores resolver.

As organizações estão cada vez mais a mudar o chip, percebendo que num trabalho com pessoas vulneráveis é indispensável a área do coaching e do welfare, associadas a essa devida supervisão.

 

CV – Que conselhos daria a futuros voluntários que quisessem prestar assistência humanitária a pessoas refugiadas? Falando em termos de preparação, motivação e circunstâncias…

CS – Primeiro é necessário perceber a razão pela qual se vai. O que os motiva mesmo a ir? Digo isto porque já fiz esta pergunta a centenas de voluntários, e, por vezes, havia respostas um pouco estranhas. E a motivação depois reflete-se no terreno.

É necessário ter noção de que não se vai salvar vidas (a não ser que a função seja literalmente salvar vidas). Vai-se para contribuir, mas o impacto desse contributo não será visível e, especialmente se o trabalhar for em backstage. Requer preparação de saber ficar em segundo plano e não ser a estrela de ação. O quer que seja que for feito, será melhor do que não fazer nada. Contudo, não se pode ir à espera de gratidão profunda. É um trabalho humilde e duro. 

Fazer pesquisa sobre as populações com que se vai trabalhar, falar com outras pessoas que já tiveram no terreno. Se já se souber para que campo ou organização se vai trabalhar, tentar procurar quem esteve lá – hoje em dia existem tantas plataformas que permitem este contacto (LinkedIn, Facebook, ect.). Quanto mais preparado se for melhor, porque toda a preparação que faltar será realizada no terreno e requererá tempo que seria preciso para outras coisas.

É necessário perceber para onde vão e compreender a sensibilidade cultural. Se se permanecer muito tempo, procurar fazer uma gestão emocional. Aconselho a seguir os passos para uma saúde mental equilibrada: manter as relações em casa, permitir tempo para comer, beber água, dormir, falar, dizer o que se está a sentir, fazer desporto, escrever, meditar, …. Além disso, não deixar que os consumos disparem, e estar atento a isso para perceber os padrões. Porque é que está a fumar mais? Porque é que está a beber mais? É uma questão social ou estou a sentir algo que quero que desapareça? É importante pedir ajuda se acontecer alguma coisa que passe os limites. Um bom coordenador vai tomar essa responsabilidade de arranjar uma resposta. É sempre importante cuidar da própria saúde. 

Resumindo, tentar ter preparação, manter a mente aberta e trabalhar com humildade (muita, muita humildade).

——

1 Emoções em segundo grau, também definida como emoção vicária, são emoções causadas pela expressão de emoções de outra pessoa. Ou seja, a experiência emocional vicária manifesta-se quando a emoção não surge numa experiência em primeira pessoa. (Brunsteins, 2018)

2 Grassroots são organizações, normalmente de pequenas dimensões, criadas pela sociedade civil para criar mudança a nível local, nacional ou internacional. (UNHCR’s Website, consultado 2023

3 Welfare Coordinator é um coordenador responsável pelo bem-estar físico e psicológico da sua equipa.

 

Agradecimentos

À Cláudia Sabença pelo seu tempo, disponibilidade e partilha da sua experiência.

À Equipa da Revista Frontal pela revisão, atenção prestada e fornecimento de uma plataforma de divulgação.

Aos amigos e família pelo apoio, orientação e paciência no percurso do desenvolvimento da entrevista.



DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.