Virar do avesso com Luís Palha – Histórias de voluntários no sector dos refugiados e o seu caminho pelo bem-estar mental

Luís Palha trabalha atualmente para o JRS – Serviço Jesuíta aos Refugiados – e esteve durante 3 meses a prestar serviços numa casa de acolhimento em Atenas. Nesta entrevista, conta-nos a sua experiência na Grécia e no acolhimento de pessoas refugiadas em Portugal, olhando para os desafios que enfrentou no seu percurso.

Entrevista conduzida em Abril de 2022

Carolina Veloso (CV) – Em primeiro lugar, pedia que me descrevesse o seu percurso na área do apoio a pessoas refugiadas, desde o seu primeiro contacto com a temática até ao trabalho que desenvolveu na PAR – Plataforma de Apoio aos Refugiados e, atualmente, no JRS.

Luís Palha (LP) – Em 2013, iniciei a licenciatura de Filosofia em Braga e um dos temas no qual me foquei foi o tema dos refugiados, aprofundando-o mais no último ano, em 2015, quando houve um grande fluxo migratório de refugiados sírios para a Europa. Eventualmente, em 2016, propus-me como voluntário para o programa PAR – linha da frente na Grécia, no qual fui aceite. 

Estive 3 meses em Atenas no primeiro grupo enviado para esta cidade pelo programa. O JRS em Atenas tinha aberto um centro de acolhimento de emergência. Enquanto as fronteiras da Europa ainda estavam abertas, este centro era onde os refugiados passavam uma noite com uma refeição quente e seguiam o caminho pela Europa. Depois, houve o fecho das fronteiras e um centro de 10/12 quartos com o objetivo de ser apenas um ponto de passagem passou a ser um lugar de acolhimento de famílias inteiras, em que uma equipa de voluntários, à qual pertencia, geria o centro. 

O nosso trabalho era cuidar da espera. Os refugiados que chegavam à Grécia, nesta altura, estavam todos à espera de uma entrevista com a entidade grega análoga aos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) português, em filas intermináveis. Eram processos que demoravam muito tempo em que no desespero, havia quem mentisse sobre a sua origem ou o número de filhos que tinham, pensando poder ter algum benefício. Essencialmente, neste voluntariado em Atenas o nosso trabalho era dar aulas de Grego e Inglês às crianças, arranjar atividades para os adultos e cuidar do dia a dia das pessoas ali acolhidas, que não podiam trabalhar sem a documentação necessária. Tentávamos arranjar uma razão para que as pessoas se levantassem de manhã e saíssem dos quartos.

Só passado 5 anos, em 2021, é que voltei a ligar-me à área dos refugiados e comecei a trabalhar com o JRS. Trabalhei primeiro como técnico superior na PAR, que é formada por um conjunto de instituições. Desde 2018, o JRS tem sido eleito coordenador dessas várias instituições. Como técnico superior, o meu objetivo era dinamizar e apoiar a rede com acompanhamento técnico das instituições da PAR que acolhem famílias. 

 

CV – O que o motivou a envergar pela área das migrações forçadas e das pessoas refugiadas tanto ao nível da licenciatura em Filosofia como a nível profissional?

LP – Muito se deveu à maneira de viver dos meus pais e da educação católica que me foi dada. Desde pequenino, esteve sempre muito presente a premissa da “ajuda ao outro que precisa”, e acho que muito da minha inclinação para área dos refugiados vem daí.

O trabalho com, propriamente, a população refugiada tem a ver com a minha ligação à companhia de Jesus, aos jesuítas e a ligação à instituição que é o Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS – Jesuit Refugee Service). Esta ligação facilitou o contacto com o trabalho nesta área. 

“Angels Unaware” de Timothy P. Schmalz em honra de migrantes e refugiados. Vaticano (2022). Fotografia de Shadi em Unsplash.

As problemáticas que envolvem os refugiados são de resolução extremamente complexa. Numa conferência em Braga, ouvi António Guterres a dizer que não via uma solução para a crise [humanitária] dos refugiados nos próximos 50 anos. Se alguém tem inclinação para prestar serviço social e se pergunta onde fará mais falta, a área dos refugiados [e das migrações forçadas] é uma resposta quase óbvia por haver tanto trabalho por fazer. 

 

CV – Como diria que lhe afetaram os 3 meses de voluntariado em Atenas e como se refletiu numa mudança de motivações e/ou comportamento diário?

LP – Foram meses muito duros. Eu estive em Atenas 3 meses e depois estive 5 anos sem poder ouvir falar de refugiados. A angústia das pessoas… A vivência num estado de apatia e de tédio total é algo avassalador. São pessoas que chegam a um país que sentem que não lhes pertence, em fuga da sua casa que conheceram desde sempre e da qual foram obrigadas a sair. Pessoas que se vêm completamente travadas por um sistema burocrático que não as deixa avançar. Na chegada a um novo país vêm-se presas nele, à espera que lhes seja dado um documento, que demora muito tempo a ser processado, e só com esse documento é que lhes é permitido trabalhar de uma forma legal. Entram num ciclo em que chegam a um país onde, muitas vezes, não querem estar, pois procuram o país onde a família que veio antes está. Como não pretendem ficar, não têm motivação para aprender a língua. Não aprendendo a língua, não conversam com pessoas, se não falam com pessoas, não precisam de sair do quarto, se não precisam de sair do quarto, não precisam de atender às necessidades básicas diárias – lavar os dentes, tomar banho, entre outras. A partir deste lugar a pessoa entra num estado de apatia e espiral descendente do qual é muito difícil sair. 

Comparo a sensação que tive nesta experiência de voluntariado, a uma que senti quando prestei apoio social num lar de idosos, em que o trabalho era o de “cuidar da espera”, pois as pessoas no lar estavam à espera que chegasse o fim. Esse “cuidar da espera” é um trabalho muito difícil porque tem de se conseguir incentivar as pessoas a serem ativas de alguma maneira, tentando dar-lhes algum sentido. 

Neste cuidado diário dos refugiados existe sempre algo que se pode fazer e o dia tem apenas 24 horas. A nossa energia também se esgota. Se o voluntário não for bem acompanhado pode entrar num estado de sofrimento ético com o qual é difícil de lidar sozinho. O sofrimento derivado do saber que “Eu posso estar a fazer mais”, mas também saber que “Eu não consigo mais”. Se se dá cada vez mais o que se pode dar, entra-se em burnout muito rapidamente.

 

CV – Como caracterizaria o “cuidar da espera” no acolhimento de pessoas refugiadas ao nível do seu bem-estar mental?

LP – Em qualquer trabalho na área social existe um retorno que não é financeiro. Existe um sentimento muito palpável das mudanças positivas na vida daqueles que se apoia e que essas mudanças, em parte, são fruto do nosso trabalho. Dá um lucro moral.

Quando voltei da Grécia, a sensação com que fiquei é que não tinha mudado nada. Sim, estive 3 meses diariamente a alegrar estas crianças e a dar algum sentido diário a estes adultos, mas eu saí da Grécia e as pessoas a quem dei assistência ficaram exatamente na mesma situação de quando as conheci. Penso que grande parte da mágoa foi o desligar do projeto. Não tinha ideia de qual era o desenvolvimento do centro. 

Por acaso, conheci uma voluntária que foi em missão um mês depois de eu ter regressado e contou-me do desenvolvimento do centro da JRS. Acontece que a última coisa que nós fizemos antes de regressar foi nomear um refugiado afegão como gerente da cozinha. Ela contou-me que quando esteve lá, já tinham a cozinha aberta, que era esse refugiado que geria a cozinha e que tinham equipas para cozinhar. Já tinham tudo a funcionar. Foi um trabalho que nós iniciamos lá e que eu não vi a dar frutos, mas que deu frutos. Eu só não conhecia os frutos.

 

CV – Em Atenas, havia algum tipo de sistema de suporte com que podia contar? Qual a importância que dava e dá a este apoio psicológico? 

LP – Durante o voluntariado, tínhamos a equipa da PAR em Portugal, com quem falávamos pontualmente. No entanto, eram conversas mais sobre a logística e o trabalho desenvolvido, não tanto num foro psicológico. Porém, o diretor do JRS em Atenas era um padre que nos acompanhava espiritualmente, que apesar de não ser acompanhamento psicológico tem muitos aspetos em comum, e foi importante. É realmente relevante ter este apoio com regularidade e é importante ser a longo prazo e, de facto, na altura, isso não aconteceu. O JRS em Portugal, neste momento, tem um gabinete de saúde mental que apoia a saúde mental dos refugiados e que também tem supervisão e intervisão para os próprios técnicos. 

A missão em Atenas foi um ponto de viragem. Depois de muitos anos de trabalho na área social, olhando para o outro, o fim de Atenas marcou uma fase de virar para mim. E só mais tarde, pensei em talvez, outra vez, olhar para outro, mas desta vez de uma maneira nova e sustentável.

 

CV – Neste último ano, como tem lidado com os desafios emocionais/carga emocional inerentes ao seu trabalho em acolhimento de pessoas refugiadas? Ainda surge a necessidade de um trabalho na gestão de emoções e de um cuidado do bem-estar mental?

LP – Claro que sim. No princípio, quando se entra num trabalho como este, sonhamos com sermos a solução para os problemas da vida destas pessoas.  “Vou salvar o mundo inteiro”. Mas não é possível salvar o mundo inteiro. O primeiro agente da integração é o próprio refugiado e existe um grande caminho até o próprio refugiado se aperceber disso. O refugiado tem de fazer os seus lutos, ou seja, aceitar a realidade de que a sua casa e o seu país já não são uma opção, que está num país novo e que é nesse que tem de começar a construir a sua vida. E nada será igual. Provavelmente o refugiado não vai conseguir o que quer, provavelmente os seus filhos com muita dificuldade vão conseguir o que querem, provavelmente os seus netos já estarão integrados. É um processo que demora tempo e em que o próprio refugiado é o principal agente da sua integração e da sua autonomia. Eu demorei algum tempo até perceber isto, porque achava que, como o meu trabalho é de acompanhar, servir e defender os refugiados, apoiando na sua integração e autonomização, se ele não estava autónomo era porque eu tinha falhado. Este pensamento está errado. Tive de me aproximar da ideia de que a responsabilidade não é minha e de que fiz o que podia. O que foi importante para ter evoluído desta maneira foi a conversa com pessoas, ou seja, falar com os outros – voluntários, trabalhadores do JRS e pessoas da área social dos refugiados – e, ainda, ter acompanhamento psicológico.

 

CV – Em retrospetiva o que é que acha que faltou na preparação da ida para a Grécia? Acha que estava preparado a nível psicológico e de gestão de expectativas? 

LP – Não estava minimamente preparado, mas ninguém estava. A questão dos refugiados põe-se desde 2015 na Europa mais concretamente, ou seja, é uma problemática relativamente nova. O estado em que um refugiado chega a Portugal é psicologicamente muito difícil de acompanhar. Existem muito poucos psicólogos em Portugal capazes de acompanhar refugiados. É necessário ter formação em intervenção em crise, formação em trauma, formação em luto migratório, …. É necessária muita experiência. O simples facto destas pessoas não comerem a comida da sua casa, não ouvirem falar a sua língua ou dos filhos começarem a falar português é um sofrimento psicológico enorme. Estes são problemas novos e, na minha opinião, havia poucas pessoas em Portugal capazes de dar uma formação completa aos voluntários que iam para a Grécia. Hoje, a PAR recruta voluntários para trabalhar em Portugal e mesmo sendo para trabalhar com uma família pequena em vez de em campos de refugiados e com muitas pessoas, é-lhes sempre dada formação e tenta-se sempre gerir as expectativas dos voluntários. 

 

CV – O facto deste problema ainda ser muito recente e haver pouca informação torna a preparação mental e este trabalho ainda mais difícil emocionalmente. Como se difere de outras áreas da ação social?

LP – Já trabalhei com idosos e populações ciganas e é completamente diferente. Não podemos pensar que estamos preparados para trabalhar com refugiados quando já temos experiência noutras áreas da intervenção social. As reivindicações e as urgências são outras. É necessário avaliar diariamente, caso a caso. Existem formações que são dadas só depois de surgir o problema. A aprendizagem é à medida que se faz e, por mais que se saiba que em teoria o que é preciso é “dar a cana, não o peixe”, a partir do momento que se vê uma cara desesperada, cheia de olheiras sem saber para onde se virar à nossa frente a pedir, o instinto é ajudar e não se consegue dormir enquanto não se der o que foi pedido, mas, ao ceder, vai-se contra a autonomização da pessoa. 

Demos como exemplo uma família acolhida em Portugal e que tem um apoio financeiro para um ano e meio, passado esse tempo se, por acaso, não estiverem a trabalhar, vão ficar a viver do RSI – rendimento social de inserção – que são 150€ por pessoa por mês.  A pessoa está a receber um apoio financeiro durante um ano e meio de reinstalação, ou seja, não tem necessidade real de procurar trabalho. Por isso, é necessário incentivar a procura de trabalho. Numa situação hipotética em que uma pessoa está empregada e um voluntário novo surge e essa pessoa diz ao voluntário que “tenho pouco dinheiro, estou aflito…”, o voluntário arranja-lhe dinheiro e a pessoa despede-se do seu emprego. O plano de integração fica comprometido por uma resposta a alguma urgência. O acolhimento tem de ser um processo integrado.

 

CV – Qual foi a evolução que viu no seu autocuidado pessoal comparando os dois períodos que trabalhou e trabalha com pessoas refugiadas? 

LP – Em Atenas, estava num modo de “dar tudo” 24 horas por dia, 7 dias por semana, sem ter qualquer tipo de cuidado comigo próprio. Existia uma sensação de urgência, de incerteza, de instabilidade, em que não sabíamos que problemas ou solicitações iam surgir no dia seguinte. Não sabíamos o que esperar de manhã quando chegássemos ao centro. Dei tudo para resolver tudo. Por fim, levou-me a um estado de burnout de não querer ver mais este assunto à minha frente. Do ano passado até agora, tem existido a mesma sensação de urgência, ou seja, temos problemas, contactos, solicitações constantes, mas da minha parte, tem havido um enorme trabalho de me proteger. Não é um sprint, é uma maratona, é necessário desacelerar o passo. Eu preciso de ir a um ritmo que me permita aguentar durante muito tempo. Foi um trabalho que requereu muito de mim e que me valeu muitas insónias. Levou-me a reavaliar o que são urgências e a utilizar a flexibilidade de horário para manter uma carga de trabalho sustentável. A verdade é que há sempre algo para fazer. O trabalho não acaba. Quanto mais se pode dar, mais há para fazer e, então, para me proteger foi necessária essa atenção.

Além disso, na minha opinião, este tema não é agradável de falar com outros. Num jantar de amigos, quando estão todos a falar sobre o trabalho, se eu começar a falar do meu, o ambiente torna-se pesado. Por isso, não costumo falar do meu trabalho com pessoas que não sejam da área. Por vezes, falo para dizer o que a maioria das pessoas já ouviu nas notícias, quase como uma cassete já montada. Falo das informações gerais, mas não dos temas que a mim me preocupam.

 

CV – Que conselhos daria a futuros voluntários ou trabalhadores interessados na área das migrações forçadas e pessoas refugiadas?

L.P – O mais importante que podemos fazer por esta população é aproximarmo-nos dela. As pessoas de quem falo não têm rede de suporte absolutamente nenhuma. O simples gesto de fazer parte de um grupo do WhatsApp muda muito a vida destas pessoas. Passam a ter alguém a quem mandar mensagens, alguém com quem conversar. 

Também é importante saber que não vamos salvar o mundo. A única coisa que nós podemos fazer é ajudar a encaminhar e ajudar as pessoas a conhecerem a realidade do nosso país. Se querem começar a trabalhar nesta área, a melhor maneira é começar por se aproximarem de refugiados que estejam em Portugal, tentando perceber quais são as suas dificuldades, identificando os seus problemas às autoridades competentes para os resolver de maneira sustentável e a longo prazo – as autoridades do Estado como Segurança Social, Sistema Nacional de Saúde (SNS), escolas, instituto de emprego e formação profissional (IEFP). Ajudar Portugal a acolher estas pessoas. 

Se eu, sozinho, tentar resolver os problemas destas pessoas num curto espaço de tempo, vou ficar esgotado, e é “pior a emenda que o soneto”. Portanto, este é um trabalho que nunca acaba e a quem aconselho, especialmente, se estão à procura de dar um sentido aos vossos dias e ao vosso tempo.

 

Agradecimentos

Ao Luís Palha pelo seu tempo, disponibilidade e partilha da sua experiência.

À Equipa da Revista Frontal pela revisão, atenção prestada e fornecimento de uma plataforma de divulgação.

Aos amigos e família pelo apoio, orientação e paciência no percurso do desenvolvimento da entrevista.

 

Sobre a palavra intervisão. 

https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/o-termo-intervisao/33483

https://www.ordemdospsicologos.pt/pt/noticia/3107



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