Uma reflexão sobre o Sistema Nacional de Saúde e o Sistema Privado de Saúde: o acesso a cuidados e a formação médica. Uma referência histórica para compreender o presente.
Eis o SNS
Estávamos em 1979. Três anos após a reposição da legalidade democrática, vendo promulgada a Constituição que até hoje o orienta, Portugal era então um país a várias velocidades. Nas cidades (essencialmente Lisboa, Coimbra e Porto) sentia-se o fervilhar do final de 500 anos de colonialismo, da transição brusca de regime político, do final de uma guerra, de uma abertura galopante ao estrangeiro…
No interior, em tantas vilas, aldeias e serras, viviam milhões de portugueses com um padrão de vida totalmente diferente, ligados na sua maioria ao sector primário e ao pequeno comércio, longe demais para se afectarem com o quotidiano acelerado das questões citadinas. Longe estavam, também, do padrão de saúde das cidades. De facto, como diz António Arnaut, o “Pai político” do Sistema – Nacional de Saúde (SNS) numa entrevista em 2009, “Há 30 anos, 90% das unidades e dos profissionais de saúde estavam no Litoral, 80% dos quais em Lisboa, Porto e Coimbra, e o resto do País era uma mancha negra que não tinha nada, a não ser as misericórdias e um ou outro médico, literariamente chamados de «João Semana», que deram um contributo inestimável para a saúde das populações.”
É este ambiente que vão encontrar os estudantes que terminam o curso na década de 70. Ao seu internato geral, previsto para dois anos (os anos policlínicos P1 e P2), é adicionado um terceiro ano (P3) do chamado “Serviço Médico à Periferia” (SMP), que têm de completar para serem admitidos às carreiras hospitalares e ao internato de especialidade. Era esta a fórmula encontrada para suprir as lacunas da assistência sanitária do interior. O Dr. João Paço, Director Clínico do Hospital Cuf Infante Santo, um dos “aventureiros” que trilhou o SMP em 1978, em Lagos, fala de “uma grande aventura, um tempo de riqueza humana inesquecível!”.
Assim, assumia-se o Estado como o garante da correcção de desigualdades no acesso à Saúde. Só este, considerou-se então, poderia ter a visão de conjunto necessária para planear uma rede nacional de cuidados, de forma a “preencher a quadrícula” do território com um número de médicos e profissionais de saúde adequado a cada população, sem excluir nenhuma.
Foram esses mesmos anos P3 que começaram esse trabalho, num movimento sem precedentes, a ponto de António Arnaut (ex-ministro dos assunto sociais) os ter baptizado “os bandeirantes da Medicina”. Viriam a ser substituídos no início da década de 80 pelos médicos da carreira de Clínica Geral, terminando assim o SMP (1975-1982).
O SNS assumia a seu cargo, de ora em diante, a saúde de todos os portugueses. Logo se tornou imperiosa a necessidade de aumentar os seus quadros, reformular as carreiras médicas e a política remuneratória. Com o Decreto-Lei nº310 de 1982 lançam-se as bases das carreiras médicas dentro do SNS, a promessa de estabilidade e formação permanente que o Estado faz aos médicos que se alistem ao seu serviço. Sobre estas, tanto se tem debatido recentemente, pois a sua administração deficiente tem levado a situações de ruptura e congelamento da progressão, pondo em risco a idoneidade científica e a estabilidade de quadros do SNS.
A Era pré-SNS
Mas, atentemos ainda na organização da Medicina em Portugal até 1971, para melhor compreender os tempos. De acordo com o “Relatório sobre as Carreiras Médicas” (RCM) de 1961, documento de excepcional valor histórico, com a redacção que lhe foi dada pelo Professor Miller Guerra, eminente Neurologista e Parlamentar, a Medicina em Portugal, antes das reformas de 1971, estava repartida, de forma prática, nas seguintes:
ASSISTENCIAL
Dos médicos municipais ou de partido. Sendo esta a Medicina a que, apesar de tudo, a maioria dos habitantes tinha acesso, era largamente insuficiente nos meios humanos e técnicos e de enorme disparidade entre o meio rural e o urbano. Diz-nos o RCM, sobre a assistência nas regiões mais isoladas, que: “mercê do isolamento, do baixo nível económico, da dificuldade das comunicações, da dispersão dos aglomerados populacionais, da falta de recursos técnicos, os serviços do médico chegam (quando chegam!) tarde e a más horas.”.
“MEDICINA ORGANIZADA”
Também chamada “Medicina das Previdências”, constituida por associações que contratavam os seus próprios médicos para assegurar cuidados a determinados grupos laborais, especialmente da indústria e comércio (menos de 20 % da população). Tinha nos seus quadros, no entanto, um quarto dos médicos do país, em 1961.
SAÚDE PÚBLICA
Próxima da actual área de Saúde Pública da Carreira Médica única (DL 177/2009).
HOSPITALAR
Essencialmente os grandes hospitais de Lisboa, Coimbra e Porto e poucos hospitais distritais, pobremente guarnecidos. Aqui se praticava o ensino da Medicina e se admitia, em muito pequeno número, os médicos “internos”, aqueles que conseguiam aceder à vida hospitalar para assim aprenderem com os mestres e se diferenciarem dentro de uma área médica.
CLÍNICA LIVRE
Assim, na arrumação de então, pertenciam à esfera da medicina privada (de iniciativa privada) a medicina organizada e a clínica livre. Praticamente todos os médicos exerciam o seu saber, em exclusivo ou em tempo parcial, numa das duas.
A primeira é, no fundo, a precursora dos grupos privados de saúde actuais entendidos enquanto grupos financeiros que se organizam para prestar serviços médicos a taxas rentáveis, contratando para tal o pessoal clínico e os meios necessários. Como a iniciativa é privada e livre, fazem-no nas áreas do País onde conseguem maior rentabilidade (a sua distribuição actual é inequivocamente litoral) e gerem o plano terapêutico e o seguimento do doente conforme a disponibilidade financeira do mesmo, contando sempre com os serviços do SNS como rectaguarda para o doente que excedeu as suas possibilidades. Actualmente em Portugal são estruturais no sector: a José de Mello Saúde, herdeira do antigo império industrial da familia Mello, a Companhia União Fabril (CUF); a HPP Saúde – Hospitais Privados de Portugal, fundada em 1998 por iniciativa da Caixa Geral de Depósitos e recentemente adquirida pela brasileira AMIL, a maior empresa de saúde brasileira; a Espírito Santo Saúde, fundada em 2000 por iniciativa do Banco Espírito Santo; a Trofa Saúde, criada há cerca de 10 anos e funcionando essencialmente no Norte do País; a Galilei Saúde, também de há cerca de 10 anos, detentora de algumas unidades em Lisboa, zona Oeste e Algarve.
A clínica livre, forma antiquíssima de exercício da Medicina e a mais individualizada, vai subsistindo, quase sempre como complemento dos rendimentos do médico noutra área. No entanto tem perdido preponderância, especialmente nas regiões de Lisboa e do Porto, num fenómeno semelhante ao dos centros comerciais e do pequeno comércio. De facto, é no grande grupo privado que o doente sabe tudo o que pode encontrar, onde, a que preço, e com extraordinárias facilidades ao nível de convenções com sistemas e seguros de saúde.
João Semana de Roque Gameiro
Internato no Privado
Recentemente, após vários anos de estudo, avaliação e negociação, foram abertas vagas para Internato dentro dos prestadores de saúde privados. Naturalmente, só os grandes grupos poderiam apresentar condições clínicas e técnicas (nº de doentes em enfermaria e consulta, nº de intervenções realizadas, nº de assistentes disponíveis e cientificamente preparados) para formar Especialistas. A autorização necessária, a idoneidade conferida pelos Colégios da Especialidade da Ordem, é fundamental para que o processo decorra.
O que representa, então, a entrada dos prestadores privados de Saúde na formação de especialistas? “Quem entrar para a CUF vai ter, ao fim de 5 anos, o nosso ADN”, diz o Dr. João Paço, acrescentando que “além da técnica, da grande exigência, também é uma questão de carácter, de perceber como nós funcionamos”.
O Dr. João Varandas Fernandes – Ortopedista, que desempenhou funções no SNS e no Hospital de Cascais, uma Parceria Público-Privada cuja gestão está a cargo do grupo HPP – diz que “os sistemas devem ser concorrenciais.” “Há três princípios que caracterizam o Sistema Público e que este deve salvaguardar: universalidade na cobertura, equidade no acesso e a formação de profissionais. Este último princípio”, afirma este especialista, “pode ser perfeitamente desempenhado na medicina privada, desde que sejam garantidas condições de idoneidade e a fundamental independência entre os sistemas”.
Da mesma opinião é o Dr. João Falcão Estrada, Director do Internato Médico no Centro Hospitalar de Lisboa Central (CHLC). Responsável pela formação de todos os internos (do Ano Comum e de Especialidade) dos antigos Hospitais Civis, ressalva que Portugal tem uma formação “muito considerada” a nível internacional e que os desafios que aguardam os novos internos não devem obscurecer esta realidade. Nomeadamente, avisa que cada interno terá que investir na sua valorização individual. “Os hospitais cada vez mais vão procurar alguém com um perfil que procuram. Especialistas com valências particulares, como transplantação hepática ou experiência em cuidados intensivos.” Assim, defende que “cada um deverá escolher o seu internato em função das suas perspectivas futuras. Se se vê a trabalhar primariamente na [medicina] privada, então esse é um internato a considerar. Depende muito do que se deseja. Nesse aspecto, o Ano Comum e os seus estágios opcionais são uma excelente ferramenta para conhecer os vários serviços e a sua filosofia”, remata.
Desafios Futuros ao SNS
Múltiplos desafios se colocam à comunidade estudantil médica. No passado dia 23 de Abril, assistimos a mais uma das sessões de discussão sobre o futuro do Internato Médico e dos estudantes de Medicina, num auditório da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, transmitido em directo online. Reunindo-se para o efeito uma alta responsável da Administração Central do Sistema de Saúde (organismo ministerial que tutela o SNS), o Bastonário da Ordem dos Médicos e o Director do Conselho Nacional do Internato Médico (órgão consultivo do Ministro da Saúde) pouco ou nada se adiantou ou esclareceu, fruto da vontade pouco transparente do Governo e do baixo escrutínio público a que as propostas de reforma têm sido submetidas. Nomeadamente, fala-se com a maior leviandade da hipótese de suprimir o Ano Comum deixando, como sempre, todos na incerteza.
Recusar-se-á cabalmente a especialidade a alguns? Voltaremos aos generalistas? Ou será a privada a tapar, num ou dois anos, a disparidade candidatos/vagas que se vai afirmando? Urge que os estudantes de Medicina e toda a comunidade médica segurem o seu destino nas suas próprias mãos, sob o risco de o verem fugir debaixo dos próprios pés.
O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.
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Duas entrevistas a duas internas da especialidade em hospitais de Lisboa. Um deles público, outro privado.
Tânia Moreira
Curso FCM-NOVA, 2005-2011
FRONTAL: Já tinha contactado com o serviço onde está?
TM: Quando entrei para Medicina manifestava interesse pela pediatria. No entanto, só no 5.º ano é que tive a cadeira de Pediatria no Hospital Dona Estefânia, instituição que escolhi para a minha formação no Internato. Não posso negar que, ao longo do curso, outras especialidades foram despertando o meu interesse. Porém, durante o Internato geral, a Pediatria tomou o lugar preferencial.
FRONTAL: Sente que tem boas oportunidades para crescer, em termos de carreira e conhecimento, no local onde trabalha?
TM: Na escolha de uma instituição para o Internato procurei dar importância à sua capacidade para uma sólida preparação técnico-científica, como também às oportunidades e incentivo dos seus profissionais para o enriquecimento curricular e produção científica. Em apenas 4 meses de especialidade tenho sentido esta realidade na Estefânia.
FRONTAL: Abriu este ano o Internato em Pediatria no Hospital da CUF Descobertas. Consideraste essa hipótese?
TM: Considerei todas as hipóteses, quer hospitais distritais, quer centrais, incluindo um hospital privado. Informei-me junto de colegas de anos mais avançados de diferentes instituições e também procurei conhecer o projecto da instituição privada para o Internato. Para mim foi importante coleccionar todas essas informações para tomar uma decisão que se aproximasse das minhas expectativas e que me satisfizesse pessoal e profissionalmente. Creio que cada vez mais devemos estar abertos a todas as oportunidades que nos colocam, porque o futuro reveste-se de incertezas, qualquer que seja a opção, pelo público ou privado.
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Paula Campelo
FMUP, 2005-2011
FRONTAL: Sente que tem boas oportunidades para crescer, em termos de carreira e conhecimento, no local onde trabalha? É apoiada, mostram-lhe novos horizontes?
PC: Sim, absolutamente. Sinto que aqui no serviço estão muito atentos ao meu percurso. Esse era um receio ao início: será que a privada tem patologia suficiente e variada? Tenho visto que sim. Tenho muita facilidade no acesso aos blocos e exames, que têm um alto índice de ocupação na CUF Infante Santo. Tenho também a oportunidade da ligação à FCM-NOVA. A passagem dos alunos por aqui (no estágio de otorrinolaringologia do 4º ano) é uma boa oportunidade de me ligar ao ensino. Quem sabe, talvez também prossiga os estudos na FCM.
FRONTAL: Como vês o teu contributo para a Saúde em Portugal? É diferente por estares numa unidade privada?
PC: Não, sinto que estou a servir os doentes da mesma comunidade. O universo de doentes com seguro de saúde já é bastante alargado em Portugal e, como tal, permite-me o acesso a um conjunto variado de patologias. Defendo a continuação e protecção do SNS, que considero fundamental, e sei que tenho de recorrer a ele para completar a minha formação. O meu internato inclui, por exemplo, 6 meses de rotação pelo IPO, para a formação na área oncológica. Vou precisar igualmente de fazer urgências em hospitais públicos para ter mais acesso a patologia aguda grave, como o grande trauma. É na complementaridade de serviços que a Saúde em Portugal deve estar estruturada.
FRONTAL: Imaginas-te a trabalhar exclusivamente na Medicina Privada, no futuro?
PC: Com aquilo que tenho vivido até agora, é uma ideia que não excluo. Há uma ideia geral, quando se coloca essa hipótese, de quebrar uma certa “rede de segurança”, como o público é tradicionalmente visto. No entanto, pela comparação que faço com colegas meus, vejo que a essa situação está a mudar. Na verdade, a formação que tenho cá é de muito boa qualidade, seguramente igual ou superior a qualquer internato no público. Por isso, tenho tudo em aberto, mas ficava perfeitamente cá.