Trepanação, ou a arte de fazer buracos na cabeça das pessoas

À primeira vista, fazer buracos na cabeça das pessoas pode parecer algo abominável e desumano. Refletindo um pouco sobre o assunto, é fácil perceber que, no contexto certo, se trata de um procedimento imprescindível para a abordagem de muitos distúrbios com resolução neurocirúrgica, sendo atualmente praticado com frequência e sucesso graças aos avanços na área da Medicina. Contudo, não era essa a realidade vigente nos milénios que nos antecederam, pelo que é imperativo colocar a questão: qual o motivo para, há tantos anos, o Homem proceder já à perfuração do crânio humano? Mais: quais as crenças que o motivavam?

Numa tentativa de obter respostas a estas questões, a FRONTAL faz uma curta viagem pela história da trepanação – desde rituais e demónios às convulsões infantis, passando pelos valiosos contributos de Paul Broca.

A trepanação (palavra derivada do grego trypanon, que significa “furar”) é um procedimento cirúrgico que consiste na perfuração do crânio, até atingir a dura-máter, e consequente remoção de um pedaço do osso – essencialmente, furar a cabeça de uma pessoa –, recorrendo-se atualmente a este tipo de procedimento para descompressão, bem como para ganhar acesso ao conteúdo craniano. É um termo que hoje caiu praticamente em desuso, em detrimento de craniotomia, na qual se retira temporariamente um pedaço de osso do crânio para aceder aos seus conteúdos, e de craniectomia, na qual o pedaço ósseo não é imediatamente reposto, possibilitando a descompressão do conteúdo cerebral. Trata-se de um procedimento praticado pelo Homem há longos milénios: é, na realidade, o mais antigo procedimento neurocirúrgico, havendo evidência da sua prática pelo menos desde o Neolítico (por volta de 5 000 a.C.). Contudo, apesar de praticado desde a pré-história, foi apenas no século XIX que se começou de facto a refletir acerca da trepanação, procurando a razão por que os nossos antepassados abriam buracos na cabeça uns dos outros.

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The operation of Trepan, de “Illustrations of the Great Operations of Surgery: Trepan, Hernia, Amputation, Aneurism and Lithotomy” (Charles Bell, 1815).

Estávamos em pleno século XIX, mais especificamente em 1867, quando o americano Ephraim George Squier (1821-1888), arqueologista, escritor e jornalista, durante uma das suas viagens diplomáticas à América do Sul, se viu perante um achado que o deixou particularmente fascinado: um crânio peruano incompleto, com uma abertura retangular com cerca de 15x17mm no topo, datado de 1 400 – 1 530 a.C., com origem na cidade de Cuzco, no Perú. Esta peça fazia parte da coleção de uma peruana abastada que, gentilmente, a concedeu a Squier para subsequente investigação. Regressado a casa com esse seu novo achado, Squier levou-o até Nova Iorque e o médico August K. Gardner (1821-1876) expô-lo na New York Academy of Medicine. Aí, gerou algum conflito de opiniões, mas não o suficiente para que se promovesse uma investigação mais aprofundada acerca do procedimento que teria culminado naquela peculiar abertura craniana.

O grande impulsionador do debate em torno da trepanação foi Paul Broca (sim, o mesmo da área de Broca da linguagem), a quem o arqueologista americano levou de seguida o crânio trepanado.

Pierre Paul Broca (1824-1880), cientista, médico, anatomista e arqueologista francês, não era – já nessa altura – um estranho para ninguém, tendo dado cartas não só na área da neuroanatomia, como também na arqueologia, pelo que desenvolveu desde logo um interesse muito particular pelo exemplar recolhido por Squier.

Para Broca, não havia sombra de dúvidas de que aquele buraco, a julgar pela sua forma retangular quase perfeita, teria sido deliberadamente executado por mão humana.

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Exemplar encontrado por Squier (atualmente no Museu Americano de História Natural, em Nova Iorque).

Mais impressionante do que isso, Broca acreditava plenamente que o procedimento em causa teria sido realizado no indivíduo ainda em vida (1 a 2 semanas antes da sua morte), já que o buraco revelava sinais de inflamação. Concomitantemente, o facto de o crânio em questão não apresentar quaisquer sinais de fratura (a razão mais óbvia para a realização do procedimento) fez Broca concluir que o ato de trepanação teria sido praticado por outro motivo, menos evidente – algum tipo de “mal interno” –, pressupondo um diagnóstico prévio. Atenção que o que surpreendeu Broca não foi a técnica cirúrgica em si, já que a trepanação, apesar de se encontrar na altura em desuso, era ainda praticada (e sabia-se sê-lo desde, pelo menos, a Grécia de Hipócrates). O que verdadeiramente o impressionou foi a evidência de que, há tantos séculos, os seres humanos já seriam perspicazes e “avançados” o suficiente para trepanar um crânio de forma planeada e deliberada, desde logo com um “diagnóstico” em mente.

Apesar de estas observações terem sido fortemente contestadas por alguns dos seus contemporâneos, o que é certo é que colocaram em movimento uma acesa discussão. Estava assim aberta a “porta” para a investigação deste tão peculiar procedimento, levando, não só à descoberta, como também à própria reavaliação de muitos outros crânios trepanados por todo o mundo, permitindo teorizar acerca da intervenção em si e, acima de tudo, acerca do porquê de os homens pré-históricos furarem os crânios uns dos outros.

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Rondelle da coleção de Prunières.

Nesta viagem ao passado, assumiram um papel preponderante Broca e o seu colega P. Barthélemy Prunières (1800-1893), os quais examinaram e teorizaram acerca de múltiplos exemplares de crânios trepanados. Ora, para Prunières, as aberturas teriam sido realizadas nalguns crânios já após a morte dos seus “hospedeiros”, com o propósito de servirem como cálices em rituais. Esta sua hipótese terá sido reforçada pelas próprias rondelles – ou “anilhas”, pequenos pedaços de osso, arredondados e polidos, muitas vezes encontrados junto dos próprios crânios –, colocando-se a possibilidade de esses achados apresentarem também alguma propriedade mística, provavelmente como amuletos. Já para Broca, as aberturas teriam sido realizadas ainda em vida, mas em idades muito precoces, provavelmente como parte de um ritual de iniciação, pressupondo também uma perspetiva religiosa: os crânios dos indivíduos que efetivamente sobreviviam ao procedimento deveriam possuir propriedades particulares que os tornavam especiais, pelo que os remanescentes dos seus crânios passariam a ser utilizados como amuletos (as tais “anilhas”).

Mas tendo-se estabelecido, após cuidada análise, que os buracos observados teriam sido efetivamente realizados em indivíduos vivos, Prunières e Broca propuseram hipóteses divergentes.

Para o primeiro, o procedimento seria realizado subsequentemente a uma fratura – responsável, por si mesma, por outras manifestações, tais como convulsões –, de tal modo que a remoção do retalho ósseo em questão culminaria num alívio sintomático. Prunières atribuía, assim, ao Homem do passado a prática de uma Medicina já bastante racional, baseada na observação.

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Um dos crânios analisados por Prunières e Broca.

Por oposição, Broca estava convicto de que o Homem pré-histórico assumiria uma visão mais mística da Medicina. Uma das suas grandes convicções era a de que a trepanação teria sido realizada de forma deliberada com um objetivo que não seria aparentemente discernível, subsequentemente a um diagnóstico prévio de um “mal interno”. Ao contrário do que a maioria pensava na altura, Broca não achava que o procedimento se restringisse apenas a lesões externas e fraturas, nem que todas as aberturas encontradas fossem resultantes de acidentes ou malformações congénitas. Para sustentar este seu ponto de vista, Broca argumentava que a abertura raramente se encontrava num local esteticamente inviável, como as regiões facial e frontal (o que não se verificaria se se tratassem de lesões/fraturas acidentais), e ainda com o facto de não se evidenciar uma prevalência de crânios trepanados do sexo masculino (o que seria de esperar em caso de lesões decorrentes de conflitos bélicos), nem de aberturas realizadas à esquerda (o que faria sentido se tivessem sido infligidas propositadamente, por indivíduos maioritariamente destros). Mais: Broca sugeria que o procedimento deveria ter sido principalmente praticado em crianças, já que teria providenciado tempo suficiente para o osso cicatrizar até ao estado por ele observado. Mais ainda, e tendo-o comprovado por experiência própria – quer testando em crânios de cadáveres de crianças e adultos, quer pela experiência adquirida ao trepanar cães –, o procedimento era muitíssimo mais fácil de executar em crânios de crianças (por oposição a crânios adultos, já calcificados).

Para Broca, a razão que teria motivado este procedimento tão atroz em crianças (lembremo-nos de que começara por volta do ano 5 000 a. C., em más condições e com o doente completamente consciente) seria pôr fim às convulsões infantis, supostamente provocadas por demónios encurralados dentro do crânio que, ao tentarem sair, seriam os responsáveis pelos movimentos inconscientes e violentos, observados aquando dos episódios convulsivos.

Ao abrir-se uma “porta de saída”, esses demónios seriam exorcizados e as convulsões cessariam (e, como muitos destes episódios resolviam espontaneamente, a ilusão de sucesso deixava as pessoas convencidas da veracidade do procedimento).

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Estas ideias verdadeiramente demoníacas terão sido inspiradas por Jean Taxil (1564-1618), o qual acreditava que os ossos cranianos humanos possuíam poderes curativos especiais, recomendando a sua utilização de todas as formas possíveis: desde aparas, pós ou cinzas, aplicados sobre as suturas, tomados sob a forma de xaropes/comprimidos ou ainda carregados em torno do pescoço num pequeno saco… à vontade do freguês, literalmente (já que as farmácias da altura estavam carregadas de diferentes preparações de ossos cranianos humanos, designadas de Ossa Wormiana, para dar vazão aos mais diversos males).

Mas não foram só Broca e seus amigos que se dedicaram à teorização acerca desta técnica. Victor Horsley (1857-1916), por exemplo, conhecido especialmente pelos seus avanços neurocirúrgicos na área da epilepsia, adotou parte das ideias de Prunière acerca do uso da trepanação em casos de fraturas e aplicou-lhes a sua experiência pessoal com a epilepsia, concluindo, assim, que a trepanação teria sido praticada como abordagem de fraturas cranianas ao nível da área motora (que, na altura, se pensava corresponder a uma maior área cerebral do que se sabe, hoje em dia, corresponder verdadeiramente).

Outro exemplo é o de William Osler (1849-1919) que, contrariamente a Horsley, adotou essencialmente a visão de Paul Broca, concluindo que a trepanação teria sido realizada para “epilepsia, convulsões infantis, cefaleias e várias doenças cerebrais que se acreditava serem causadas por demónios confinados, aos quais o buraco providenciaria um método para escaparem”.

A verdade é que, teorias e teorias depois, nunca se chegou a uma conclusão acerca do motivo pelo qual, há tanto milénios, o Homem executava já a trepanação – e provavelmente nunca se chegará, mas pode-se continuar a pensar sobre o assunto, especular, teorizar…

O que também se pode continuar a fazer, além das craniotomias e craniectomias que ficam a cargo dos neurocirurgiões, é realizar buracos na cabeça uns aos outros para se atingir um estado aumentado de consciência…

Sentem-se cansados? Stressados com a quantidade de matéria em atraso? Tristes e confusos? Desabafar com um amigo não resulta? Nem fazer um pouco de exercício? Yoga? Por que não fazer um buraco na cabeça? Mesmo que nenhum neurocirurgião aceda ao vosso desejo, fear not, podem fazê-lo vocês mesmos!

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É verdade: ainda hoje existem grupos defensores da trepanação como forma de atingir um estado aumentado de consciência – basicamente, furarem o crânio para ficarem num estado permanentemente high. Com base em conhecimentos atribuíveis à pseudociência, estes grupos advogam que será possível atingir um estado aumentado de consciência manipulando o conceito que designam por brain-blood-volume, de forma a aumentar o fluxo sanguíneo cerebral, exequível através da trepanação…

cartazes A3 (37)
Toma nota: a FRONTAL não aconselha ninguém a fazer um buraco na cabeça, mas sugere-vos, na bibliografia abaixo, um conjunto de recursos úteis caso queiram saber mais sobre o assunto.

DOCUMENTÁRIO

A Hole in the Head (1998), Eli Kabillio

BIBLIOGRAFIA

– CLOWER, William T.; FINGER, Stanley. Discovering Trepanation: The Contribution of Paul Broca. Neurosurgery, Vol. 49, No. 6, December 2001

– FERNANDO, Hiran R.; FINGER, Stanley. Ephraim George Squier’s Peruvian Skull and the Discovery of Cranial Trepanation. Trepanation: History, Discovery, Theory. Swets & Zeitlinger Publishers. 2003. Chapter 1.

– FINGER, Stanley; CLOWER, William T. On the Birth of Trepanation: the Thoughts of Paul Broca and Victor Horsley. Trepanation: History, Discovery, Theory. Swets & Zeitlinger Publishers. 2003. Chapter 1.

– COSTANDI, Mo. An Illustrated History of Trepanation. June 13, 2017. <https://neurophilosophy.wordpress.com/2007/06/13/an-illustrated-history-of-trepanation/>, acedido a 30 de março de 2018.

History of neuroscience: The mystery of trepanation. November 22, 2015. <https://www.neuroscientificallychallenged.com/blog//history-of-neuroscience-the-mystery-of-trepanation>, acedido a 30 de março de 2018.

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