Confidentes de uma vida

“The Doctor”, Sir Luke Fildes (1843-1927).

Chegamos ao hospital cheios de curiosidade para ver os doentes e a pensar que vamos salvar vidas e tratar toda a gente. Pouco tempo basta para percebermos que a realidade é muito diferente. Mas uma coisa de cada vez. Primeiro objetivo enquanto iniciantes da prática clínica: saber fazer uma boa história clínica. Uma por mês, uma por semana, uma por dia, primeiro em grupo, depois individualmente, até já estarmos fartos e sem paciência para escrever mais uma “história da doença atual”. 

“Façam história clínica à doente da cama 11”. Um suspiro. Já a meio do corredor lembra “E o nome da doente?”. Volta para trás. Ver no processo, ver no sistema, perguntar ao interno…entretanto lá descobrimos. De volta ao corredor. Terceira porta à direita. Cama 11. Uma senhora já com bastante idade, com um sorriso doce, mas um olhar triste, a escrever junto à janela. Apresentamo-nos, confirmamos o nome da doente e preparamo-nos mentalmente para mais 7 páginas de história clínica. Lentamente e algo contrariados, tiramos o bloco de notas do bolso da bata, preparamos a caneta e começamos a “entrevista”. “Que idade tem?”…”O que é que fazia antes de ser reformada?”…”É casada?”…”Então e porque é que veio aqui parar?”…”E que outras doenças é que tem?”… Dezenas de perguntas até esmiuçarmos tudo, muitas vezes sem grande interesse em mais de metade das respostas. No que demorávamos uma hora e meia a fazer inicialmente, vamos batendo recordes pessoais a cada doente até conseguirmos colher uma história em 20 minutos! E a doente? Olha para nós com esperança que a possamos ajudar e à procura do conforto que muitas vezes não chega, enquanto nos conta a sua história. Mantemo-nos indiferentes. “Então e filhos, tem?” O sorriso doce desaparece, os cantos da boca olham para o chão e cai uma lágrima. Prevemos o pior. Olhamos para a doente e esperamos. “Será que vai desenvolver o assunto?” – pensamos. A boca da doente abre para falar, mas as palavras não querem sair. Damos conta de um engolir em seco e percebemos a dor num olhar tão triste que é quase insuportável. Nem pensamos – agarramos instintivamente a mão da senhora e tentamos confortar o que é inconfortável. “Calma”, dizemos, algo estupidamente. Apertamos aquela mãozinha frágil, fazemos uma festinha. A doente fecha os olhos por momentos, engole outra vez preparando a voz, deixa escapar mais uma lágrima e finalmente começa a contar a história mais triste da vida dela, enquanto olha para nós, com um olhar tão distante que nos perguntamos a nós próprios se ela nos estará a ver mesmo. Um filho que tinha a nossa idade quando morreu. Atordoa-nos. Faz-nos pensar. O mais importante da vida dela, o que lhe era mais querido, que nunca prevíramos ou sequer imagináramos por detrás daquele sorriso doce que encontrámos à entrada do quarto, é-nos confidenciado. Não sabemos o que fazer. Não há palavras que confortem, não há nada que ajude, senão ouvir. Sentimos o peso que a doente carrega e percebemos aquele olhar triste. Sentimo-nos inúteis. “Era suposto salvarmos vidas e ajudarmos os doentes! Como é que não há nada que consigamos fazer por esta senhora?” – pensamos. E de repente, toda a pressa com que chegáramos desaparece e só fica o sentimento que, embora não fazendo ou dizendo nada, o ouvir ajuda. Algum tempo depois, continuamos a entrevista que então começáramos, até obtermos toda a informação de que vínhamos à procura. Preparamos a despedida, damos um aperto de mão e agradecemos, como manda o hábito, mas sentimos a necessidade de dar uma palavra de força e sorte antes de sairmos, desejando senão felicidade a uma pessoa que já sofreu tanto. Vamos abandonando o quarto com dúvidas sobre a nossa postura com a doente, naquele momento tão íntimo. Olhamos uma última vez. Ela voltou à escrita, de novo com o sorriso doce e, apesar de tudo, sentimos que deixámos a doente mais leve, enquanto nós regressamos mais pesados, com mais uma história para carregar. 

Enquanto estudantes de Medicina e sobretudo nos primeiros anos, não há muito que consigamos fazer pelos doentes. Vamos treinando as nossas histórias clínicas, vamos fazendo gasimetrias, mas a verdade é que, desde o início, nos ensinam o que é o sigilo profissional e, mesmo não conseguindo fazer grande coisa, nos põem a falar com doentes. Somos confidentes. Faz parte da profissão e, infelizmente, é fácil esquecermo-nos que lidamos com pessoas com sentimentos. A coleção de histórias clínicas que vamos fazendo é uma coleção de histórias de vida. Cada anamnese é um momento íntimo, no qual o doente nos conta tudo sobre ele, quando não nos conhece de lado nenhum. Assim, é importante não esquecer o ouvir, porque, independentemente da razão porque nos procura, o doente chega sempre preparado para nos contar a sua história.

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