O Círculo Cruel

O Círculo Cruel

Rutura e integração em representações contemporâneas da saúde mental
(uma análise inspirada em Adorno, Horkheimer, Deleuze, Guattari, Foucault)


SPOILER WARNING para Joker (2019), End of Evangelion (1997), Neon Genesis Evangelion (1996), A Piada Infinita (1996) e Altri libertini (1980).

Este artigo complementa o artigo “Desacorrentados”, a ser publicado na 53.ª Edição Impressa da Revista FRONTAL.

As visões representadas neste artigo constituem a opinião pessoal do autor, não refletindo posições oficiais da Revista FRONTAL.


Sofrósina, Húbris, Terceiro Impacto

Somos todos Chéri-Bibi no teatro, gritando diante de Édipo: eis um tipo como eu, eis um tipo como eu! Tudo é retomado, o mito da terra, a tragédia do déspota, como sombras projetadas num teatro. As grandes territorialidades desmoronaram-se, mas a estrutura procede a todas as reterritorializações subjetivas e privadas.”

  • Gilles Deleuze e Félix Guattari, Capitalismo e Esquizofrenia: O Anti-Édipo

Depois de Pinel, de Freud e da clorpromazina, a saúde mental escapou efetivamente dos limites confinantes aos quais se viu forçosamente retirada em sucessivos ciclos de racionalização-regressão. Sabemos hoje que a nossa Psiquiatria não é a Psiquiatria do tempo em que Foucault nos deu a sua investigação genealógica sobre a História da Loucura. Pode até argumentar-se, como nos descreve Ian Hacking, que a categorização prevalente nas estruturas académicas de produção científica levou ao que hoje pode ser descrito como o “boom da Saúde Mental”, conduzido por uma pressão disciplinar e francamente material de categorizar o diverso de acordo com estruturas pré-definidas, entidades nosológicas para as quais uma abordagem padronizada e algorítmica pode ser definida de forma eficaz para otimizar a prestação de cuidados. Por seu lado, a própria categorização tem um efeito sobre o sujeito categorizado, e daí em diante, num ciclo de feed-forward que Hacking denominou “efeito de looping”.

Podemos, pois, num espetro mais epistemológico, inquirir-nos sobre as consequências de um tal looping sobre as representações da Saúde Mental. Ou seja, estará a forma como nós vemos, abordamos e/ou experienciamos o estado de doença relacionada com a nossa própria informação sobre o mesmo? Mais geralmente, como é que a proliferação da psicologia, da farmacologia e, mais contemporaneamente, das neurociências e da psiquiatria funcional e de sistemas modelaram e influenciaram a nossa visão cultural sobre a perturbação mental? Mais concretamente, de que forma pode esta informação afetar a nossa prática? Abordemos o tópico de forma prática, recorrendo a exemplos da literatura, do teatro e do cinema para ilustrar perspectivas sobre o tema. Um jogo de sombras com as Luzes da Razão estabelecer-se-á e seremos visitados pelos fantasmas justapostos de Rousseau e Nietzsche, Hegel e Freud, Kant e Marx.

Comecemos a nossa análise do ponto de vista melancólico. De que forma encara a cultura contemporânea a depressão? A resposta está ao nosso alcance porque é ubíqua e frequente mas ironicamente personalizante. Caso concreto primeiro: o filme Joker, de 2019. Para Adorno, o “riso é o instrumento da fraude praticada sobre a felicidade” [1] na indústria cultural, perdendo a sua função conciliatória e assumindo uma dimensão individualizante e pejorativa do seu objeto. O filme lida com Arthur Dent, um sujeito com uma condição psiquiátrica que o leva a irromper em ataques de riso incontroláveis. Atravessando, à semelhança de American Psycho (2000), um universo semi-onírico onde atos reais e imaginados são constantemente justapostos, a narrativa culmina num movimento popular enragé simbolicamente liderado pela figura do Joker, que, identificando o desenvolvimento da sua depressão em causas sociais (“cross a mentally ill loner with a society that abandons him and treats him like trash!?”) , assassina um apresentador de talk-show em direto.

O Joker não é o sujeito ridens adorniano para o qual o riso se transformou em Schadenfreude (alegria com a tragédia), embora no-lo possa parecer à vista desarmada; nem é, naturalmente, uma figura redentora, identificada pelos sans-culottes de Gotham City, que veria lucidamente na sua tragédia o reflexo de uma sociedade doentia. A narrativa imposta pelo filme é clara: aqui, a melancolia é apresentada como uma condição que necessita de apoio e acompanhamento, mas fundamentalmente como uma patologia solitária, do indivíduo, cuja responsabilidade é inescapável. Joker é, afinal, um vilão. Leitmotiv encontrado: Joker podia ser salvo por instituições mais responsáveis, a sua tragédia pessoal poderia ter sido evitada, mas os males sociais são inevitáveis e a revolta é uma doença infantil. O riso passa a compaixão identicamente alienante e a indústria cultural inverte a fórmula adorniana: não é o riso a fonte de prazer industrial socialmente aceite, mas sim o choro e a compaixão do espectador que passa a encarar a depressão com olhos mais “humanizados”, questionando os sistemas sem nunca os criticar. O contrato social psiquiátrico permanece, pois, possível.

Caso concreto segundo, e envolvendo também a ansiedade e o stress pós-traumático: a lente pouco convencional de End of Evangelion (1997), o filme anime que oferece um dos finais possíveis para a história de Neon Genesis Evangelion, a saga de desenvolvimento pessoal do adolescente Shinji Ikari quando, desprovido de uma vida familiar convencional, é chamado pelo seu distante pai a integrar uma força de combate a misteriosos invasores de uma natureza mística e paranormal. A ação da série culmina neste filme: após ver-se forçado, pelas ordens às quais foi obrigado a obedecer pelo seu pai, a assassinar Kaworu Nagisa, anjo pelo qual se apaixonara, Shinji é tomado por pensamentos de culpa e torturado por flashbacks frequentes a situações nas quais o seu medo e ansiedade paralisante levaram a erros que culminaram na morte dos seus amigos. Perante uma situação apocalíptica, na qual a vida humana é ameaçada com a extinção, o seu medo de falhar ou de magoar quem mais ama apodera-se de si e recusa-se a voltar ao campo de batalha.

Hideaki Anno, criador da série, declarou que muitas das temáticas abordadas são uma alegoria para a sua experiência com a depressão e a contemplação do suicídio. Com efeito, a própria série, que principia dentro dos moldes do anime shounen, isto é, para rapazes jovens, com cenas de ação e um enredo simples envolvendo temáticas de honra e amizade, rapidamente resvala para o campo do psicanalítico, com uma análise detalhada da psique e do inconsciente de todas as personagens principais. Percebemos porque é que Asuka sente a necessidade de mostrar que tem maior valor que os seus colegas; porque é que Misato se agarra desesperadamente ao adolescente de quem toma conta; porque é que Gendo, o pai de Shinji, cria Rei à imagem da sua falecida esposa para lutar contra as forças místicas que despertou; porque é que Shinji não consegue viver com os sentimentos de culpa e de abandono que lhe torturam a mente desde que entra no robô pela primeira vez.

Esta representação popular do inconsciente culmina, pois, na figura do Projeto da Instrumentalidade Humana, engendrado por Gendo para dissolver todas as almas humanas e, assim, ultrapassar a alienação fundamental que separa todos os sujeitos psíquicos e lhes provoca solidão. É a luta de Shinji com os seus medos que determina finais diferentes para a série e para o filme. Neste último, pela linearidade e centralidade da narrativa, depreende-se que Shinji resiste à Instrumentalidade, declarando que a vida é composta de dor, mas também de alegria. No truísmo esconde-se, contudo, o néctar da representação da vivência interna e fundamentalmente intransmissível da depressão (neste caso, comórbida com ansiedade e PTSD, sugere-se). A depressão é vista como separação, como alienação. Todas as personagens sofrem uma rutura fundamental: Shinji perde a mãe e é abandonado pelo pai; Asuka perde a mãe para o suicídio; Rei adquire a noção da sua inumanidade e descartabilidade. No espaço entre as margens do corte, ora, prolifera a melancolia que, como um buraco negro, impele o sujeito à implosão em si mesmo. O corte aumenta de dimensões, as tentativas de o superar pela ligação ao Outro apenas provocam a sua proliferação. Para Anno, na sociedade contemporânea, não há ligação de forma simples ou atalhada, embora a mensagem de End of Evangelion mostre a sua possibilidade, em todo o belo e hediondo: como quando Asuka repele Shinji com nojo na cena final do filme. Seria quase desejável uma Instrumentalidade Humana que voltasse a facilitar a superação dessa alienação no cerne da vida social sob o modo de reprodução atomizante que exalta o indivíduo em detrimento do coletivo?

Figura 1A Morte de Marat, Jacques-Louis David. Óleo sobre tela, 1793.

Tentemos interpretar estas questões socorrendo-nos de algumas ferramentas rudimentares da esquizoanálise deleuziana. Longe de discorrer em longas explicações sobre conceitos que podem parecer áridos à vista desarmada (como “produção-desejante”, “desterritorialização” ou “o socius”), foquemo-nos num conceito em particular: o corpo sem órgãos. Embora Deleuze e Guattari o apliquem rotineiramente na sua análise materialista da psicanálise e da psiquiatria em Capitalismo e Esquizofrenia (tanto em O Anti-Édipo como em Os Mil Planaltos), nunca o definem claramente e restritamente. O termo, no seu uso original, advém de uma peça radiofónica do dramaturgo francês Antonin Artaud, ele próprio tendo-se debatido com a sua saúde mental durante toda a sua vida:

“Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos,
então tê-lo-ão libertado dos seus automatismos
e devolvido a sua verdadeira liberdade.

Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas
como no delírio dos bailes populares
e esse avesso será
o seu verdadeiro lugar.” [2]

O corpo sem órgãos assume, contudo, na filosofia dos pensadores d’O Anti-Édipo, um papel de espaço-limite, no qual se somam todos os desejos e afetos do ser pensante, sobre o qual pode discorrer a atividade afetiva e a atividade produtiva do ser humano. Mais do que uma “libertação final”, como o seria para Artaud, é um campo vago e desorganizado no qual todos os processos mentais do indivíduo e, por extensão, da sociedade, são potenciais, e através dos quais são organizados em hierarquias e prioridades. A análise deleuzo-guattariana, pela tarefa da esquizoanálise e da psiquiatria materialista, estende a metáfora do corpo sem órgãos ao modo de produção capitalista, como sendo o capital que permite, ao rebater-se sobre a totalidade da produção humana, a organização dos processos produtivos e comerciais da sociedade em modos de produção específicos e historicamente determinados, ou seja, imanentes à realidade social contemporânea. [3]

Deste modo, o capital assume um papel quase transcendental, liminal, sobre o qual todos os desejos são estratificados: para Deleuze e Guattari, a esta hierarquização escapam apenas, pela negativa, os esquizofrénicos (com particular tónica no caso do esquizofrénico Juíz Schreber, cujas memórias foram interpretadas por Freud [4]), pelo que a análise que tenta descortinar os vetores subjacentes às ações e pensamentos dos indivíduos em sociedade foi batizada por estes filósofos como esquizoanálise.

Que efeitos tem isto no indivíduo? Ou seja, postulando, como os autores, que a totalidade dos afetos e motivações, desejos e ações do indivíduo apenas se podem conceber e hierarquizar sobre um fundo social subjacente, o que acontece quando este fundo social ameaça, como no Terceiro Impacto, tornar-se o próprio indivíduo (e vice-versa)? 

“A fantasia de grupo inclui as disjunções [entre o indivíduo e o grupo], no sentido em que cada sujeito, descarregado da sua identidade pessoal mas não das suas singularidades, entra em relações com outros seguindo a comunicação própria aos objetos parciais: todos passam para o corpo do outro no corpo sem órgãos.” [5]

O corpo sem órgãos é final e putativamente materializado artisticamente no LCL, substância alaranjada licorosa onde decorre o espectáculo da dissolução total da espécie humana ficcionada do filme. Como explicar, então, o final agridoce da série anime original, em que vinhetas de análise psicológica intimista entrecortam momentos pontuados de paródia-desconstrução do género e das personagens? O espaço-limite do desejo, sempre tentativamente presente e terrivelmente sedutor ao longo da narrativa, esse Outro imponente que provoca em Shinji angústia depressiva e ansiedade paralisante, é subitamente realizado e os seres humanos reúnem-se a si mesmos, “no amor e não no ódio” [6], numa irmandade interpretada ora como paradisíaca, ora como infernal: a mente sã não consegue conceber um estado de final desorganização e comunidade superlativa como o proposto. Apenas ao insano, aquele capaz de caminhar em ambas as superfícies, de pilotar o EVA, é possível a escolha, inescapavelmente individual, falaciosa e injusta, de se deixar ir pela corrente de miasma cor-de-laranja ou de se puxar a si mesmo, e, em si e consigo, a todos os restantes, para fora e de volta à vivência e experiência individual e individuada. Porque é que Shinji decide destruir Kaworu, evitando o Terceiro Impacto, na série anime? Porque é que os eventos do filme são recontextualizados com base em decisões diferentes? Que narrativa podemos, assim, inferir sobre o livre-arbítrio na tomada de decisões e a sua natureza coletiva e social?

Figura 2 – Diagrama da dimensão social do corpo sem órgãos [7]

Caso concreto terceiro: a insanidade como eixo fulcral na relação anormal-doente, como ilustrada em duas obras de literatura: A Piada Infinita, de David Foster Wallace; e Altri libertini, de Pier Vittorio Tondelli. [8] Abordando a relação dialética por polos diferentes, estas obras partilham a descrição de uma sociedade higienizada, dotada de morais higienizantes, encontrada nas perspectivas das obras escondida em becos, vielas, casas de chuto, lavabos de estação e de academia, depois da sua pretensa “libertação” às mãos da Psicologia e da Farmacologia. 

N’A Piada Infinita, no seu estilo narrativo fragmentário e descontínuo, uma fatia da sociedade bostoniana é o alvo de uma exegese psicológica. A novela, sem princípio aparente nem final evidente, desloca-se de personagem em personagem, dentro e fora da família Incandenza – o seu falecido patriarca fora um homem de muitas paixões mas pouco talento, tendo, contudo e alegadamente, legado ao mundo um filme cuja visualização deixaria o espetador totalmente catatónico, conduzido à sua morte. Rapidamente, contudo, num frenesi de estilos e modos narrativos, o leitor é introduzido a inúmeras personagens marginalizadas da lixeira-Boston do futuro indefinidamente próximo. A esmagadora maioria partilha de perturbações de abuso de substâncias (álcool, opiáceos, estimulantes), bem como um leque diverso de psicopatologia. 

Se, inicialmente, a parelha “falência social-falência moral” é familiar ao leitor, rapidamente esta díade é quebrada: é-nos revelado que as personagens principais, membros par excellence de uma classe média-alta com posses suficientes para apoiar estudos privados, também abusam de substâncias, também sofrem de perturbações da saúde mental, também cometem crimes e frequentam os espaços e as companhias demarcadas como malsãs pela sociedade no sentido mais lato. A obsessão do futuro Presidente norte-americano superstar com a limpeza e a sua germofobia poderão ser interpretadas como a expressão mais óbvia da contradição fundamental desta perspetiva higienizante imposta pela moralidade liberal-iluminista à abordagem à psicopatologia. Tratar é limpar, o doente está sujo – se não fisicamente, porque não infetado nem canceroso, está-lo-á moralmente. “Agora, a loucura pertencia à falência social, que aparecia sem distinção como a sua causa, modelo e limite.” [9] A presença desta falência no coração da imagem do sucesso social é a contradição que dissolve a imagem pré-concebida e excludente do “louco como abandonado pela sociedade” e que coloca a tónica numa interpretação mais humanizante da saúde mental. A loucura não será representada como estado passivo de alienação e auto-exclusão suprema da res pública, inescapável resvalamento para a podridão que exige o apoio familiar e social, mas sim, n’A Piada Infinita, como elemento ativo de constituição da individualidade e da agência das personagens, que comunicam com o leitor numa linguagem do irracional, como em Nietzsche ou Artaud. Em suma, constituem-se não como loucos mas neurodivergentes, não como viciados mas como consumidores e auto-medicadores, independentemente do julgamento moral do leitor.

Figura 3 – Chez la souris, Tal R, 2016.
(Outsider art, autorização fair-use de wikiart.org)

Em Altri libertini, conjunto de histórias curtas temporalmente situadas no ocaso da contracultura italiana e europeia da década de 1970, as temáticas do abuso de substâncias e da psicopatologia regressam: depressão, esquizofrenia, mania e, de forma que atualmente nos possa parecer anacrónica, homossexualidade. [10] Descritas como libertinas, à semelhança de Sade, as personagens deste livro vivem nas margens da sociedade de consumo contínua com o momento atual, sem nunca assumir de forma duradoura um elo de ligação com o ideal imaginado do “novo sujeito libertado” do pós-’68. Não são modelos reprodutíveis: são desviantes, degenerados, figuras grotescas e assustadoras sobre as quais o consumo de álcool, de cocaína e de opiáceos, as infeções sexualmente transmissíveis, a fome e o sonambulismo constante da vida noctívaga operam mutações desagradáveis aos olhos limpos da sociedade do marketing. Habitam espaços esconsos, entre cafés de estação de serviço e tendas em jardins públicos, lupanares e apartamentos ocupados. Definem-se a si mesmos pelo próprio desprezo que manifestam à vida comum, vivendo fora dela porque excluídos a priori e assim sucessivamente: efeito de looping em ação, a crueza das estruturas de poder-disciplina psiquiátricas em pleno retrato.


Leitura Dramatizada do DSM por Antonin Artaud para os Pacientes em Ivry

Antonin Artaud, Pour en finir avec le jugement de dieu

Talvez, no meio de todo o fermento histórico que teima em “oprimir como um pesadelo o cérebro dos vivos” [11], já tenhamos descortinado a principal pergunta que assola a prática contemporânea da Saúde Mental – que projeto social é possível para uma Psiquiatria ética? Ou, inversamente, que ética é possível para uma Psiquiatria socialmente consciente e progressista? No fundo, para que nos serve o conhecimento derivado do corpo sem órgãos? Queremos mesmo tornar-nos um corpo sem órgãos como Shinji Ikari?

Antes de elaborar algumas declarações finais, convém porventura salientar que este ensaio se limita a uma análise forçosamente centrada em perspectivas ditas “ocidentais” sobre a loucura. Se, historicamente, pode ser considerado injusto resumir, subsumir e forçosamente omitir as tecnologias e as práticas não-europeias face à saúde mental, a ação de mais de três séculos do desenvolvimento do modo capitalista de produção, às costas de navios, pólvora, fábricas, congressos académicos e meios de comunicação em massa resultou na subsunção total da realidade ao domínio das suas tecnologias de reprodução social e poder-conhecimento. De resto, creio que os exemplos contemporâneos apresentados permitem a ilustração eloquente deste ponto pela sua diversidade.

Não pretendemos, contudo, recair na arrogância do prescritivismo e receitar princípios deontológicos gerais, como se a nossa parca experiência no-lo permitisse. Preferimos resumir as nossas observações num conjunto de argumentos e, rematando em forma de diálogo, lançar questões que consideramos pertinentes para que o próprio leitor reflita sobre as suas próprias ideias e a origem das mesmas, para a sua própria autocrítica.

Assim, em suma, entrevê-se a atual perspetiva institucional e, portanto, das estruturas de poder-conhecimento prestigiadas e vigentes, perante a saúde mental. Não sendo já vista como o trágico sinónimo de falência moral ou com os olhos (des)iluminados do medo, a insanidade, mutante, desenvolve-se, a par dos desenvolvimentos na Psicologia, na Farmacologia e nas Neurociências, na insanidade-como-psicopatologia, ou seja, numa perspectiva integrativa, multidisciplinar, positivista e medicalizante (cientifizante) da saúde mental e da sua perturbação. No regresso do sujeito à vida social, acolhido pelos braços dos psicofármacos e das estruturas de apoio, o patológico reúne-se no normal, isto é, é normalizado e, como tal, passa também a ser submetido às exigências e pressões de produção e reprodução social. 

O melancólico, o hipocondríaco, o esquizofrénico, o autista veem na sua “libertação” a crua realidade dúplice e hipócrita da vida para lá das paredes do asilo. É deles esperada a integração e a normatividade; nos melhores casos, são-lhes providenciadas amplas oportunidades para tal, através de acompanhamento personalizado, estruturas de reinserção social, novas tecnologias farmacêuticas. A insanidade passa a neurodivergência e os braços e mentes dos anteriormente considerados inaptos até para a mais bruta das lavouras entram na livre-concorrência do mercado de trabalho. 

No entanto, a mão invisível do livre mercado também é cega. Os handicaps servidos pela lotaria psicológica de pouco servem ao recrutador de RH ou ao patrão. Perspetiva higienizante pela negativa: não é responsabilidade da livre-iniciativa individual e privada a limpeza do indivíduo com patologia mental, esse ato contínuo que envolve compreensão empática, paciência e diálogo. Uma Empresa não é uma Caridade. Exclusão, discriminação, precariedade: as grandes problemáticas que assolam o sujeito com perturbação da saúde mental aquando de uma tentativa de estabilização da sua situação social. Rutura com a sociedade, rutura com o normal: a Era da Integração revela a trágica verdade da sua pretensa Liberdade, Igualdade e Fraternidade, como Pinel deixara entrever na Salpêtrière pouco após a sua Revolução.

« MARAT: (…) Se eu sou extremo, não sou extremo do mesmo modo que vós
Contra o silêncio da Natureza uso a ação
Na vasta indiferença invento um significado
Não assisto impassível intervenho
e digo que isto e isto está errado
e trabalho para os alterar e os melhorar
A coisa importante
é puxar-se para cima pelo próprio cabelo
virar-se a si próprio do avesso
e ver o mundo inteiro com olhos frescos. » [12]

De que nos serve, então, saber isto, se somos ultimamente, enquanto indivíduos isolados e desorganizados, incapazes de o mudar? Qual é o consolo possível? Existe uma Psiquiatria eticamente possível no atual período histórico?

Não sou pessimista. Não me fico pelo nec plus ultra do consultório, da venlafaxina e dos vieses cognitivos. Nem creio, felizmente, que esse seja o estado atual da investigação e do discurso científico em Psiquiatria. Já ultrapassámos a era dos desequilíbrios químicos, já ultrapassámos a era edipiana; o nosso inimigo atual é a Instrumentalidade Humana, c’est-à-dire a instrumentalização do indivíduo e da sua saúde mental como “requisito para um trabalho eficaz”. A saúde está instrumentalizada? Quelle surprise! “Desde que a “saúde” foi pela primeira vez descrita como pertencente ao Homem como participante numa comunidade social ou profissional que o seu significado existencial foi oculto pelas exigências da contabilidade.” [13] (Canguilhem), postulado ao qual a saúde mental não escapa. 

Também isto passará. A Medicina, no seu cômputo geral, tal como as restantes Ciências da Saúde, sobeja de mentes extraordinárias, motivadas, inquisidoras, capazes do questionamento sem escrúpulos de tudo o que existe. Não querendo exceder as minhas competências míseras, gostaria de terminar esta peça expondo alguns princípios éticos segundo os quais gostaria de organizar a minha experiência com a minha própria saúde mental.

Onde a psicanálise diz, “Para, encontra o teu Eu de novo”, deveríamos dizer em vez disso, “Vamos ainda mais além, ainda não encontrámos o seu CsO [corpo sem órgãos], ainda não desmantelámos suficientemente o nosso Eu”. Substitui o esquecimento pela anamnese, a experimentação pela interpretação. Encontra o teu corpo sem órgãos. Encontra como fazê-lo. É uma questão de vida ou morte, juventude ou velhice, tristeza ou felicidade. É onde tudo tem lugar.” [14]

Figura 4 –Mikeze” e “Jakeze”, autómatos do velho relógio da Câmara Municipal de Trieste, em exposição no Castelo de S. Justo, Trieste, Itália

Il faut devenir un corps sans organes, pois, para embarcar na assustadora tarefa da remodelação e re-enquadramento do Eu no Nós: o mundo ao nosso redor influencia-nos a tal ponto que se torna parte de nós, e vice-versa. Tornar-me um corpo sem órgãos, num movimento no sentido oposto ao da psicanálise tradicionalista e paternalista, é tornar-me no que me rodeia, interessar-me, ligar-me, querer saber, perguntar, indagar, abrir-me às emoções e aos desejos do Outro, porque nos influenciamos reciprocamente. A culpa não está na mamã nem no papá, a culpa não está, a culpa pode simplesmente nem existir. E, mesmo quando de facto existe, não existe isolada – é enquadrada no grande e riquíssimo contexto da totalidade da experiência vivida.

Não, portanto, a vida não são só bué de cenas e não, tipo, não temos de ir só navegando na maionese: o que se trata é de uma contextualização social do desejo e dos afetos. É esta política do desejo e dos afetos que temos de defender aguerridamente se queremos praticar eticamente a Saúde Mental: defender a riqueza e a complexidade profunda e intrincadamente interligada das experiências humanas, que não pode ser redutível a uma baixa laboral, a um diagnóstico de perturbação da saúde mental, ou, pior, a um rótulo que continua a carregar estigma. Não queremos mental health breaks, queremos agir para que a necessidade destas seja ultrapassada.

Então, o que fica por resolver? Se compreendemos agora melhor a perturbação da saúde mental no seu contexto social, como podemos agir para mitigar o profundo impacto deste nesta? Nunca haverá uma sociedade Utópica, livre de tudo o que é patológico – podemos propor, contudo, uma sociedade Científica, na qual o patológico é integrado e contínuo com a experiência do normal, uma aproximação coletiva ao corpo sem órgãos. Se isso passa pelo investimento na abolição do normal (ou, no mínimo, pelo ataque crítico sem misericórdia à normalidade), ou pelo investimento na integração do patológico, será a questão-chave do debate que virá nas gerações vindouras. É sequer possível a ligação significativa ao Outro, que torna possível a análise psicológica e psicodinâmica, quando toda a sua experiência pessoal e social é marcada pela rutura? E até que ponto é que o diagnóstico da diferença é desejável ou necessário para a vivência da plenitude dos desejos e oportunidades do sujeito, ou seja, a Saúde, sem o rotular com uma marca indelével que, vimos, afeta a sua própria perceção do Eu?

“No instante em que, juntas, nascem e se realizam a obra e a loucura, tem-se o começo do tempo em que o mundo se vê determinado por essa obra e responsável por aquilo que existe diante dela.”

  • Michel Foucault, História da Loucura na Era da Razão

Referências e notas

[1] – Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialética do Esclarecimento
[2] – Antonin Artaud, Pour en finir avec le jugement de dieu
[3] – Embora, pela própria natureza de espaço-limite do capital como corpo sem órgãos, este coloque toda a produção possível nos seus termos, com vista à sua circulação e valorização, assumindo por isso características aparentemente transcendentes e trans-históricas. Não existe, pois, uma “falsa consciência” (como argumentaram Marx e Lukács) do trabalhador explorado como capitalista, mas sim uma cruel e tácita aceitação das regras do jogo do capital como forma de adaptação às regras e normas sociais.
[4] – Em Sigmund Freud, O Caso Schreber: Notas Psicanalíticas Sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranóia (Dementia Paranoides), 1911.
[5] –
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Capitalismo e Esquizofrenia: O Anti-Édipo.
[6] – Sófocles, Antígona.
[7] – Gilles Deleuze e Félix Guattari, op. cit.
[8] – Este último, na medida do meu conhecimento, ainda não traduzido para português.
[9] – Michel Foucault, História da Loucura na Era da Razão
[10] – Como é do nosso conhecimento, a homossexualidade foi considerada pela Associação Americana de Psiquiatria como uma perturbação da orientação sexual até ao DSM-II (1968) e permaneceu no DSM-III (1980) como “homossexualidade egodistónica”. Apenas no DSM-V (2013) foram retiradas todas as referências às orientações não-heterossexuais como perturbações mentais. No ICD-9 (1977), da OMS, permanecia como patologia, sendo retirada na edição de 1990 do ICD-10, onde permanece ainda a “homossexualidade egodistónica”. Prevê-se a remoção desta categoria na sua totalidade para a edição do ICD-11, cf. Reed GM, Drescher J, Krueger RB, et al. Disorders related to sexuality(…). World Psychiatry. 2016;15(3):205-221.
[11] – Karl Marx, O 18 de Brumário de Luís Napoleão Bonaparte.
[12] – Peter Weiss, Marat/Sade.
[13] –
Georges Canguilhem, Escritos sobre a Medicina.
[14] – Gilles Deleuze e Félix Guattari, Capitalismo e Esquizofrenia: Os Mil Planaltos.

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