Este ano decidi trocar a monotonia confortável do verão à portuguesa por algo um pouco mais radical: um mochilão de 2 meses à volta da Índia. Porquê a Índia? Foi uma questão com a qual me deparei várias vezes. Suponho que procurava algo que já não conseguia encontrar nas praias do Algarve: intensidade, desconforto, novidade. Queria sentir mais, sair um pouco da minha posição privilegiada e enfrentar os meus desafios, ter as minhas próprias aventuras. Como seria de esperar, a Índia deu-me tudo isso e muito mais. Deu-me o caos hiperestimulante e sempre desconfortável das grandes metrópoles, assim como a sua pobreza esmagadora; o ar frio e traiçoeiro das montanhas; as praias idílicas, mas sobrepopuladas do Índico; as viagens intermináveis de comboio; a intensidade da comida e as inevitáveis indisposições (fiquemos pelo eufemismo) que causava; o calor pesado e húmido apenas aliviado pelas chuvas torrenciais da época das monções, que em tudo se intrometiam; e uma cultura milenar que em praticamente tudo difere da nossa. São todas partes da viagem que deixaram a sua marca inapagável na minha memória e identidade. Mas afastando-me de tudo isso, vim aqui elogiar o tédio.
Algo difícil de encontrar num país como a Índia, fui experienciar o tédio numa parte muito especial da viagem, já há muito planeada: um retiro de meditação Vipassana. Em poucas palavras (porque isto não é um folheto informativo), são cursos de dez dias totalmente grátis, num centro específico, onde é ensinada a técnica original de meditação tradicionalmente introduzida por Buda há mais de dois milénios e ensinada aos seus discípulos. Aos participantes, é apenas exigida total dedicação e resignação aos ensinamentos que lhes são propostos. Na realidade, isto implica, durante a inscrição, a entrega de qualquer bem material em nossa posse, exceto a roupa e produtos de higiene. Durante dez dias, não temos telemóvel, computador, livros, cadernos, ou qualquer outra fonte de distração, e temos de permanecer em completo silêncio. A ausência quase total de estímulos externos, assim como a técnica, que ensina a focar a mente, tornam o retiro num mergulho profundo em nós mesmos, que temos de fazer sozinhos, do início ao fim.
O nosso dia a dia envolvia dez horas de meditações vagamente guiadas, a começarem às quatro e meia da manhã, intercaladas com refeições e períodos de descanso. E é tudo. Durante a meditação estávamos sentados num salão, de olhos fechados, concentrados no exercício, e durante os intervalos só tínhamos a paisagem muito pouco impressionante à nossa volta, ou o enclausuramento do quarto que eles, muito apropriadamente, chamam de “cela”. Acabado de passar pela sobrecarga dos cinco sentidos que é a Índia, não é difícil compreender o choque que se abateu sobre a minha mente durante esses dias. Pela primeira vez na minha vida repleta de estímulo e emoção, senti o nada. O retiro, fazendo jus ao nome, retirou-me tudo e deixou-me sozinho, a ver. Habituado a viver o mundo de fora, vi-me atirado de cabeça para o de dentro, e sofri.
O primeiro sofrimento foi físico (se algum o pode ser), e começou logo no primeiro dia. Previsivelmente, após uma vida de sofá e secretária, para as minhas costas as dez horas de meditação diárias rapidamente se tornaram uma tortura. De início um ardor vago, a dor que sentia durante as sessões acabou por fazer casa no meu torso, perfurando-o como uma pequena agulha ao ritmo da respiração, sempre no mesmo sítio. Comecei por tratar a dor como qualquer futuro médico que se preze, como um problema a solucionar, como algo a resolver. Dessa forma, passei os primeiros dias a afinar o meu diagnóstico e a usar todos os tratamentos que tinha ao meu dispor sem chegar a qualquer resultado. Um dia, depois de um renhidíssimo jogo do sério com as borboletas do jardim, claramente já em desespero, tive uma pequena importante epifania: se eu não lutar, se eu tratar a dor como uma parte do momento que não consigo controlar, como uma parte de mim, ela perde a sua razão de ser, e desvanece-se. O próprio conceito de dor só existe para se referir à reação que temos a algo. Dor como uma sensação má, que não gostamos, algo desagradável que queremos que desapareça. O problema está em assumirmos esta coisa horrível que nos aparece na consciência como externa a nós. Isolamo-nos dela e depositamos a nossa frustração na sua presença. “Ao menos se não me doessem as costas, iria ser tudo mais fácil.” Tratamos a situação como um confronto entre nós e a dor. A verdade é que a dor, tal como o cheiro a suor do vizinho na meditação ou o sabor francamente enjoativo do caril do almoço, não passam de sensações que nos aparecem, criadas pela nossa mente para fazer sentido do mundo. Apesar de ter origem no exterior, tudo o que sentimos é só nosso. A minha dor faz parte da experiência de ser eu, faz parte da minha identidade, não é algo objetivamente mau que o mundo cruel decide abater sobre mim. O valor de uma sensação não lhe é inerente, somos nós que o atribuímos. O cheiro da gasolina não é bom ou mau por si, daí haver tanta diferença de opinião no assunto. Durante a meditação, torna-se muito clara a separação entre sensação e reação. A primeira é neutra, existe e exibe-se na nossa consciência de uma determinada maneira, a segunda é a posição que nós, enquanto acumulado de experiências passadas, tomamos em relação a essa sensação. É impossível prever ou impedir que sensações nos apareçam, mas podemos mudar a nossa relação com elas. Assim, ao parar de tratar a minha dor de costas como algo malévolo que me andava a perseguir e que tinha de eliminar, aceitei-a como parte de mim. Ao parar de tentar resolver o problema, ele desapareceu. A dor nunca foi o que me causou sofrimento, mas sim a minha relação com ela.
Curiosamente, o segundo sofrimento foi criado pela resolução do primeiro. Vitorioso, em posse de uma revelação, achava-me em controlo. O desafio estava superado e a partir desse momento podia aproveitar tudo o que o retiro me dava. Mas não tive em conta algo muito importante, uma característica fundamental que domina a mente ocidental do Séc. XXI: a nossa dependência por tarefas, por objetivos. Vivemos os nossos dias acoplados a vários pequenos futuros, desejos, medos: tenho de ter o 17, devia ler mais, preciso de entregar aquele trabalho, não posso faltar a esta festa. Sentimo-nos sufocados pelos deveres que temos e sonhamos com dias de liberdade em que podemos fazer o que queremos. Mas a verdade é que, se os tivermos, não sabemos o que havemos de fazer com tanto tempo. Não conseguimos apreciar o presente pelo presente e na ausência de tarefas a nossa mente cria-as espontaneamente. Eu vivi os primeiros quatro dias do retiro mergulhado no problema da dor e, quando me vi livre dele, em vez da tranquilidade tão prometida, vivi algo inédito na minha vida: o tédio absoluto. De repente, perdi toda a vontade de me sentar e meditar, os ensinamentos começaram a assemelhar-se a conversa de charlatão e esqueci-me da razão pela qual me enfiei voluntariamente naquele inferno. A minha mente implorava por outra tarefa, outro estímulo, mas implorava em vão. Ao contrário da vida real, ali não havia nada com que me distrair, com que me consolar. Não podia ligar a um amigo, ir ao cinema, sair à noite, o que seja que for que fazemos quando não queremos enfrentar este ruído interior. No retiro essas escapatórias estavam-me vedadas. Estava preso com a minha infelicidade, e vivi-a do início ao fim. Dessa forma, não tive alternativa senão enfrentar o tédio de frente, reconhecê-lo na minha identidade e cavar fundo à procura de uma razão, à procura de uma consciência mais profunda de mim próprio. As conclusões que tirei sobre mim são irrelevantes neste contexto, cada um tem a sua viagem, mas o tédio tomou aqui um papel fundamental.
O tédio, mais uma vez, não deixa de ser uma reação que temos ao momento em que vivemos. É uma inquietação que sentimos porque não estamos a ser estimulados como poderíamos. No nosso dia a dia, deparamo-nos com uma sociedade que, utilizando o conhecimento que tem da nossa biopsicologia, procura captar a nossa atenção o melhor que consegue. Algumas das maiores empresas do mundo trabalham precisamente com esse objetivo: utilizam algoritmos desenvolvidos para agarrar a nossa atenção e vendem-na a anunciantes como um produto. O que resulta são mentes divididas, que saltam de estímulo em estímulo, interrompendo um para retomar outro. Dificilmente nos comprometemos a um evento ou a uma emoção do início ao fim porque, quando se torna difícil, podemos sempre redirecionar a nossa atenção para algo mais agradável, mais confortável. E, infelizmente, andamos com um porta-estímulos no bolso para nos facilitar essa fuga. Estamos numa festa, o único amigo que conhecemos afasta-se, sentimos o desconforto a vir e fugimos para o alívio do telemóvel. Chegamos ao metro, faltam 8 minutos para o próximo e, sem darmos por isso, já nos colámos ao ecrã. Estamos num ponto em que já nem temos consciência das nossas fugas, já não damos pela mão a chegar ao bolso. Não temos consciência das nossas reações e vivemos sobrelotados, sem espaço para os nossos pensamentos respirarem. Mas quem somos nós senão os nossos pensamentos? De início achei que o retirarem-me todas as posses era um ato de humildade, em que entregávamos a nossa identidade para nos resignarmos à prática. Agora, acho precisamente o contrário. Sem os objetos que me rodeiam, só resto eu. Quando abdicamos do que vem de fora, apenas sobra o que vem de dentro. Quando perdemos as sensações, damos o espaço necessário para as nossas reações se mostrarem. A nossa identidade não é formada pelas nossas dores, prazeres, desconfortos, mas sim pela forma como reagimos a eles e é só ao retirar-nos um pouco da confusão sensorial do mundo em que vivemos que temos a oportunidade de ver exatamente quem somos. Regressamos com um profundo auto-conhecimento e uma atenção inestimável às nossas emoções e ao mundo que nos rodeia. Só assim conseguimos ter a coragem e a liberdade para viver como queremos.
No retiro aprendi que é importante termos momentos em que nos retiramos para dentro de nós e processamos o que recebemos de fora. Se escolhermos o tédio ao conforto do estímulo, a nossa identidade revela-se. Tudo se torna mais claro quando damos o espaço para os nossos pensamentos se desenrolarem. Tornam-se sólidos, cristalinos, quase palpáveis. Nesses últimos dias do retiro senti como se estivesse a ver-me nu pela primeira vez, e os frutos que recebi dessa experiência são inquestionáveis.