“Peculiar” será talvez o adjectivo que mais frequentemente ocorre aos espectadores que assistem pela primeira vez à Perseguição e Assassinato de Jean-Paul Marat representados pelo grupo teatral do hospício de Charenton sob a direcção do Senhor de Sade.
(Pausa para respirar.)
Obra do alemão naturalizado sueco Peter Weiss, com um dos títulos mais longos da história do Teatro, mas simultaneamente (e não lhe tiremos esse pró) muito informativo, é hoje em dia amigavelmente alcunhada de Marat/Sade, criando a ingénua ilusão de que poderemos alguma vez tratar esta peça por “tu”.
Apontamento histórico
Como o título o indica, a acção tem lugar no hospício de Charenton, em 1808, onde os doentes mentais aí internados representam uma peça escrita pelo ex-marquês de Sade, retratando os últimos momentos em vida de Jean-Paul Marat, antes de seu assassinato em 1793. Sade o autor também entra na sua própria peça, representando-se a si mesmo.
Historicamente, Jean-Paul Marat, médico formado e politólogo, constituiu uma das vozes mais radicais da Revolução francesa, despertando tanto sentimentos de admiração como de horror no seio da população. Aos olhos deste jacobino, a Revolução justificava a repressão sangrenta daqueles que a poderiam perturbar ou entravar. Assim, vários foram os homens que, ordem dada por Marat, se viram forçados a entregar a cabeça à eficiente lâmina do Monsieur Guillotin. Mas ficou também conhecido pela dermatose vesiculosa que o confinou a uma banheira nos últimos três anos de existência, com uma bandana ensopada em vinagre em torno do crânio. É este Marat azedamente temperado e doente, símbolo da Revolução falhada (ou pelo menos inacabada), que ao longo da peça discute com Sade, apologista-mor da satisfação do desejo próprio.
Donatien Alphonse François, de título Marquês de Sade, era um aristrocrata, político revolucionário, filósofo e autor, mais conhecido pela sua sexualidade libertina e obras eróticas que casavam um discurso filosófico com pornografia escrita. Enfim, bastará dizer que, do mesmo modo que Machiavelli deu origem à palavra “maquiavélico”, de “Sade” nasceu “sadismo”.
Portanto, para além de terem sido contemporâneos e de Sade ter estado presente no funeral de Marat, poucos seriam os vínculos a unir estas duas personagens, não estivessem ambos convencidos da necessidade da Revolução. Contudo, defendiam formas diferentes de a operar e de instalar um novo regime.
Serão então estes dois, com as convicções que os separam, o eixo à volta do qual gira a acção da peça dentro da peça. Ao individualismo levado ao extremo de Sade opõe-se o pensamento de uma revolta política e social baseada na acção de grupo de Marat. Não nos esqueçamos todavia que Marat é ele próprio personagem criada por Sade (ele mesmo nascido de Weiss), e assim, até certo ponto, Marat/Sade poderia ser encarada como um diálogo solitário de Peter Weiss na voz do ex-marquês.
Mas, apesar desta trama tornada confusa pela presença de teatro dentro do teatro, Weiss nunca se afasta demasiado da realidade histórica: o hospício de Charenton existiu de facto e Sade esteve lá internado de 1801 até 1814, ano em que morreu. Era, aliás, um lugar conhecido pelos seus métodos de tratamento presumivelmente mais humanos e por isso controversos; um lugar onde a sociedade parisiense do tempo de Napoleão Bonaparte assistia com requintado deleite às peças de Sade, nas quais os ditos “alienados”, em boa verdade, raramente participavam enquanto actores.
Assim, Weiss atribui a uma figura histórica, num contexto físico e temporal bastante fiel, uma obra imaginária sobre acontecimentos factuais.
Um regresso ao passado para falar do presente e passado recente
Chegamos então à fase dos “porquês”. O que pretende um autor da segunda metade do século XX com a evocação e o retorno à era da Revolução francesa e do Império napoleónico?
SADE: […] Toda a morte, mesmo a mais cruel,
é afogada pela indiferença absoluta da Natureza […]
e a Natureza contemplaria silenciosa
o apodrecer de toda a nossa raça. […]
Nossa inquisição já não nos diverte […]
Nossos assassinatos não têm ardor
pois que pertencem ao quotidiano
Condenamos sem paixão
não há mais uma linda morte individual
diante de nós
somente uma morte anónima sem valor
para a qual podemos enviar povos inteiros
após frios cálculos
até o instante
de cessar
toda vida
Acto I, Cena 12
A referência à maquinaria genocida do século XX e à banalização da violência e do mal é clara e o pessimismo palpável.
Por outro lado, Marat é anacronicamente afiliado ao marxismo: detesta a corte, o clero, o exército, em suma, o Poder. Explica o terror pós-revolução como uma resposta natural à violência inicial dos governantes opressores. É contudo difícil entender a posição de Peter Weiss em relação a estas opiniões, sobretudo dado que a percepção que o dramaturgo teve das suas próprias personagens foi se alterando ao longo dos anos. É facto, no entanto, que Marat não responde concretamente a certas questões de Sade:
SADE Achas que vais fazê-los felizes
se puderem avançar apenas a metade de seus caminhos
impedidos pela igualdade a bater-lhes sobre os rostos
Achas que haveria algum progresso
Se cada um fosse apenas uma partícula
de uma grande corrente
Continuas achando que é possível
unir os homens
Acto I, Cena 24
O tema central é, como já se terá notado, política, mas não o único. A crítica do dito “ópio do povo” tinha de aparecer e será difícil não ouvir os apelos à liberdade dos actores à força como mais do que reivindicações ensaiadas de um princípio fundamental.
GRITOS Viva a liberdade
Abaixo as camisas de força
Abaixo as portas fechadas
Abaixo as grades
Acto II, Cena 27
Esta constatação é particularmente interessante se notarmos que a peça de Weiss surge em 1963, um ano após a publicação do romance One flew over the cuckoo’s nest de Ken Kesey, obra que alertava para o funcionamento pervertido de certos hospitais psiquiátricos, mais tarde amplamente aplaudida pelo público internacional quando foi passada para a grande tela do cinema, em 1975.
Marat/Sade é portanto uma peça completa e intrigante, uma meia tragicomédia musical de desfecho filosófico incerto (mas não feliz), uma narrativa em abismo que reforça a ilusão teatral, uma obra que pode ser interpretada e reinterpretada até não restar um único cabelo para arrancar, ou, plagiando a tradução inglesa, “till your eyes turn as red as rust”. Foi encenada pela primeira vez em 1964, no Schillertheater de Berlim. Das múltiplas montagens europeias, a mais famosa será talvez a inglesa, dirigida por Peter Brook que, em 1967, fez da peça um filme.
Marat/Sade continua a fascinar e a ser motivo de muitos trabalhos académicos ambiciosos. Mas, e talvez mais do que isso, consegue introduzir-se no nosso dia-a-dia e aparecer onde menos a esperamos: na voz de Judy Collins, recitada por um manifestante anónimo do Occupy Wall Street ou, mais recentemente, no final de um single dos Beady Eye.
Marat/Sade é, em resumo, expressão da própria dúvida humana.