O Deus e o Perseguidor

Light Yagami é um adolescente normal até ao dia em que encontra um caderno preto perdido no chão da sua escola e pode, finalmente, livrar-se do aborrecimento que o persegue e libertar a loucura que há em si. Cabe a ele, acredita, julgar o mundo e livrá-lo de todos os que praticam o mal. L é o detetive que o vai tentar travar. Mas algo de peculiar afeta cada um destes génios, tão semelhantes e, no entanto, com ideais tão diferentes.

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Death Note é um popular mangá escrito por Tsugumi Ohba e ilustrado por Takeshi Obata. Publicado entre Dezembro de 2003 e Maio de 2006 na revista Weekly Shonen Jump no Japão, foi adaptado a versão animada pelo estúdio de animação Madhouse em 37 episódios entre Outubro de 2006 e Junho de 2007.

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O shinigami Ryuk. Ele gosta mesmo de maçãs.

A série conta a história de Light Yagami, um genial estudante japonês de 17 anos que encontra um Death Note, um caderno sobrenatural pertencente a um Deus da Morte – o shinigami Ryuk – e que provoca a morte da pessoa cujo nome lá seja escrito, desde que a pessoa que o escreva conheça a sua face. No seu aborrecimento, Light usa o caderno para livrar o mundo daqueles que considera criminosos e malvados, tornando-se no “deus do novo mundo”: Kira. Não é preciso muito para que as mortes causadas por Kira cheguem à atenção de L, um famoso detective que se alia à Interpol e à polícia japonesa, desencadeando um verdadeiro “jogo de mentes” entre Light e L.

Light Yagami – “To win, you have to attack.”

Estudante brilhante, atleta talentoso, filho e irmão exemplar, Light é o arquétipo do jovem impecável admirado por todos. Dotado de grande inteligência e de um forte sentido de responsabilidade e justiça, ninguém suspeitou do seu interesse em ajudar o pai, Soichiro Yagami, chefe da polícia japonesa, integrando o grupo de investigação do caso Kira. No entanto, por detrás da imagem do aluno aplicado e sorridente esconde-se um indivíduo frio, cínico, atormentado por um tédio sombrio que veio a curar com o Death Note.

Light Yagami – Kira: o “escolhido” para renovar o mundo.

Frustrado com a sociedade que considera “podre” e repleta de injustiças, Light fez do Death Note um instrumento para cumprir a sua visão idealista extrema de um mundo só com pessoas perfeitas, eliminando todos os que considera prejudiciais para a Humanidade – começa pelos assassinos, passa para os ladrões e suspeitos de crimes menores e finalmente para as pessoas desonestas. Se no princípio estas ideias podiam ser atribuídas a um excesso de idealismo ou talvez apenas a imaturidade, rapidamente se tornou evidente a sua visão a preto e branco: Kira é a Justiça; quem não está do lado do Kira está contra o Kira, e quem está contra a Justiça deve ser eliminado. Assim, toda a gente com uma cara e um nome passou a ser um possível alvo de Light, e se alguns receberam Kira como um vetor de justiça divina, outros consideraram-no apenas um psicopata.

I was chosen to renew this rotten world, to bring about true peace – a utopia.

O lado oculto de Light Yagami.

De facto, Light parece partilhar muitos traços com o que na cultura popular se denomina de psicopata: frieza de pensamento, calculismo, manipulação emocional, mentira patológica e falta de escrúpulos. Embora a psicopatia não seja reconhecida como uma doença mental e, como tal, é impossível diagnosticar um psicopata, existem várias escalas para avaliar estas tendências. Se observarmos a escala PCL-R, podemos perceber que muitas das caraterísticas presentes nesta se adequam ao protagonista da série, nomeadamente o poder de sedução e charme superficial, a manipulação emocional, a mentira frequente, a falta de remorso e empatia, as emoções limitadas e a necessidade de estimulação constante para fugir ao tédio.

Light também apresenta delírios de grandeza, um complexo de Messias no qual ele se assume como o deus de um novo mundo, mundo esse que tem Kira como juiz único e infalível. A racionalidade de Light e a sua capacidade de calcular vários cenários possíveis para elaborar planos meticulosos escondem um lado mais impulsivo também presente, que se torna mais óbvio quando Kira é diretamente desafiado por L e o seu poder é posto em causa, levando-o a tomar decisões precipitadas com excesso de confiança em si mesmo.

“Just according to keikaku.” Translator’s note: Keikaku means plan.

Embora não se possa diagnosticar a psicopatia, esta relaciona-se com um distúrbio de personalidade descrito no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-5): distúrbio de personalidade anti-social. O anti-herói da série cumpre vários dos critérios descritos no manual.

Psicopata ou não, tem sem dúvida o riso mais épico da história da animação.

L e Near – “The good guys always win.”

A "pose natural" de L.
A “pose natural” de Ryuzaki.

O mais famoso detetive do mundo, L, é na realidade um jovem com problemas de interação social, escondendo-se atrás de um ecrã marcado apenas com a letra gótica correspondente ao seu “nome” e comunicando principalmente através de Watari, o seu assistente. Quando finalmente surge em pessoa, mostra falta de empatia, incapacidade de compreensão das emoções dos outros, uma memória excelente para detalhes, uma inteligência brilhante e uma obsessão pelo problema que estiver a tentar resolver. Ryuzaki, como também é conhecido, é visto em posições estranhas quando está sentado, em pé ou em movimento, frequentemente apresenta-se descalço e usa sempre a mesma roupa, mesmo durante o jogo de ténis que disputa com Light, que por sua vez se apresentou corretamente equipado para o desafio.

I don’t sit like this because I want to. I have to sit like this. If I were to sit normally, my deductive skills would immediately be reduced by roughly 40%.

O seu sucessor, Near, tem 18 anos e no entanto é visto com o pijama vestido e a brincar com jogos enquanto trabalha, e raramente faz contato visual, sendo que a sua inaptidão social é mesmo superior à de L.

Near e os seus jogos de dados.
Near e os seus jogos de dados.

Ambos têm caraterísticas de uma perturbação do espetro do autismo, mais precisamente de Síndrome de Asperger. Esta doença caracteriza-se pela presença de dificuldades de comunicação verbal e não verbal, bem como padrões repetitivos de comportamento e interesses e uma aderência a uma rotina inflexível.

Ao contrário das restantes perturbações do espetro do autismo, há alguma preservação do desenvolvimento cognitivo e linguístico, podendo ter mesmo uma inteligência acima da média. Também está associado a esta doença o uso de linguagem atípica ou excêntrica, bem como alguma “falta de jeito” física. Os portadores desta doença têm ainda propensão ao aparecimento de problemas nos ritmos de sono, que é algo que podemos observar em Ryuzaki. Por outro lado, o consumo exagerado de açúcar por L está de acordo com a tendência dos portadores desta síndrome de limitarem a sua dieta a um grupo restrito de alimentos.

Síndrome de Asperger... ou estudante de medicina em época de exames?

Light e L podem parecer opostos completos, no entanto um olhar mais atento revela que na verdade são muito semelhantes. Sem o Death Note, Light Yagami poderia ter sucumbido ao tédio e à frustração de qualquer outra maneira ou poderia ter seguido o seu caminho de excelência e ter-se tornado num respeitado chefe da polícia como o seu pai – é impossível de prever mas a verdade é que o Death Note corrompeu todos os que o utilizaram. Quanto ao super detetive, embora à primeira vista pareça estar a cumprir um serviço nobre ao perseguir Kira, cedo se percebe que na realidade é apenas mais uma obsessão, mais um puzzle que tem de resolver mesmo que para isso tenha de sacrificar vidas e quebrar leis. Ambos brilhantes, ambos calculistas, ambos incapazes de perder.

[toggle title=”Fontes Bibliográficas”]
  • Ohba T. Death Note. VIZ Media LLC; 2005.
  • Death Note. Dir. Tetsurō Araki. VIZ Media LLC; 2006.
  • Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Dsm-5. American Psychiatric Publishing, Incorporated; 2013.
  • Amini M, Pourshahbaz A, Mohammadkhani P, Khodaie ardakani MR, Lotfi M. The DSM-5 Levels of Personality Functioning and Severity of Iranian Patients With Antisocial and Borderline Personality Disorders. Iran Red Crescent Med J. 2015;17(8):e19885.
  • Khouzam HR, El-gabalawi F, Pirwani N, Priest F. Asperger’s disorder: a review of its diagnosis and treatment. Compr Psychiatry. 2004;45(3):184-91.
  • Robertson AE, David R Simmons R. The sensory experiences of adults with autism spectrum disorder: A qualitative analysis. Perception. 2015;44(5):569-86.
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