O Triunfo da Bata Branca

Ao longo da História, o Médico – aquele sujeito que enverga uma bata branca e traz o estetoscópio a baloiçar nervosamente ao pescoço – foi conhecido por demasiados nomes: santo, curandeiro, demónio, físico, bárbaro, cientista, humanista… até ao despersonalizado e actual “prestador de serviços públicos”. Os nomes representam a mutação perante a sociedade que a nossa profissão foi sofrendo, não tendo nunca perdido, contudo, o seu pilar ideológico principal: – o de “fazer bem às gentes”.
 O nome da profissão foi mudando, mas não foi só ele – também a indumentária se metamorfoseou. Nem sempre fomos reconhecidos por uma bata imaculadamente branca. O que sempre nos distinguiu da multidão foi a capacidade de ditar o destino de um homem.

As Cores dos Médicos da Antiguidade

Desenho de uma pintura numa tumba, em Ankhmahor, no Egipto, representando médicos a realizar circuncisões a escravos.
Desenho de uma pintura numa tumba, em Ankhmahor, no Egipto, representando médicos a realizar circuncisões a escravos.

Um início nas margens do Nilo

Que se desengane quem pensa que os médicos eram imunes às modas e costumes que os rodeavam. O armário de roupas do médico dependia do seu ambiente civilizacional e do período histórico em questão, não sendo consensual sequer de região para região. Os sacerdotes egípcios, por exemplo, vestiam-se de um modo diferente do dos seus contemporâneos gregos e romanos. Se, por um lado, as vestes de um médico egípcio eram coloridas, por outro, os médicos gregos e romanos envergavam vestes claras, constituindo, porventura, a primeira associação da prática médica com a cor branca.

A cor branca, como é fácil de supor, poderia pretender que a noção de pureza e imparcialidade fosse gravada na figura do médico. No entanto, é importante realçar que a associação das vestes coloridas com os médicos egípcios e de vestes claras com os médicos gregos e romanos advém das várias representações artísticas das suas respectivas épocas que sobreviveram até aos nossos dias – a arte é, portanto, tanto uma fonte como um viés de conhecimento.

A brancura das togas

Aríbalo grego de 480–470 a. C., que representa um médico a curar o braço de um paciente.

Há que ter em conta, todavia, que as togas (toga alba), as conhecidas túnicas romanas, sendo habitualmente brancas, eram usadas como símbolo de cidadania e de paz pelos cidadãos romanos, não sendo ostentadas nem por soldados, escravos, mulheres, criminosos ou menores de idade (Romanos, rerum dominos, gentemque togatam – romanos, senhores do Mundo, e povo que usa togas). Parece então lógico que um médico romano vestisse orgulhosamente uma túnica branca e que, mais tarde, pela sua simplicidade, a mesma pudesse vir a ser adaptada para a prática médica.

A diversidade do vestuário dos médicos representava também a diversidade dos conhecimentos e tratamentos em voga nas várias civilizações ao longo do tempo e do espaço. Estes conhecimentos eram também partilhados entre civilizações, não obstante a sua roupa. Assim, não é de estranhar, portanto, que um médico árabe no século XIII d. C. pudesse contestar Galeno, afirmando que o septo ventricular era impenetrável (como fez Ibn al-Nafis, médico da época na Síria) ou desenvolver hospitais, os bimaristanos; isto enquanto médicos europeus, seus contemporâneos, começavam nesse mesmo período a aperfeiçoar uma medicina muitíssimo atrasada, com base nos livros de medicina antigos dos vizinhos islâmicos e nos manuscritos sobreviventes da cultura greco-romana.

Uma Estranha Farda

Gravura de Gerhart Altzenbach – Kleidung widder den Todt: Anno 1656, representando médico romano especialista em “Peste Negra”.

No meio da pestilência

A primeira farda médica foi descrita por Charles de Lorme, um médico francês, em 1619, que se baseou nas armaduras dos soldados para elaborar uma vestimenta que protegesse os médicos dos frequentes e mortíferos surtos epidémicos. Esta tornou-se, assim, característica dos médicos especialistas em “Peste”, verdadeiros infecciologistas doutros tempos.

Esta farda era composta por uma máscara com um enorme bico, semelhante ao de um pássaro, um chapéu, um manto (quiçá escuro) e um bastão. A máscara tinha duas lentes, no local dos olhos, que permitiam ao médico ver o paciente. O gigantesco bico era, na verdade, um filtro com plantas aromáticas (âmbar cinza, folhas de menta, cânfora, láudano, mirra, pétalas de rosa, entre outras). Tanto o manto, que cobria o médico por inteiro, como as luvas, o chapéu e as calças eram feitas de cabedal. Para tornar este traje ainda mais sinistro, os médicos faziam-se acompanhar de um bastão que lhes permitia tocar no paciente, apontar lesões, remover roupa ou afastar curiosos ou infectados que se aproximassem demais.

A obrigatoriedade do sinistro

No entanto, só no século XVII é que este traje passou a ser de uso obrigatório para estes médicos, conforme disposto no seu contracto de trabalho. Assim, conforme um poema do século XVII, traduzido por John Nohl em The Black Death, de 1926,

As may be seen on picture here,

In Rome the doctors do appear,

When to their patients they are called,

In places by the plague appalled,

Their hats and cloaks, of fashion new,

Are made of oilcloth, dark of hue,

Their caps with glasses are designed,

Their bills with antidotes all lined,

That foulsome air may do no harm,

Nor cause the doctor man alarm,

The staff in hand must serve to show

Their noble trade where’er they go

Numa nota mais “alegre”, a máscara de pássaro usada pelos médicos da Peste foi associada à comédia Il Medico della Peste e imortalizada no Carnaval Veneziano.

Apesar do seu propósito nobre, esta figura revestia-se de um misticismo mórbido. O “passarão” assustador, pretendendo ser a figura de um médico que cura e acalma, era de facto um prenúncio de uma morte anunciada. Contudo, o conceito de “médico especialista em Peste Negra” é bastante anterior à criação deste traje. Sabe-se que nos vários surtos de peste bubónica na Europa foram contratados médicos que se especializavam no diagnóstico e “tratamento” desta maleita. O próprio papa Clemente VI (1291 – 1352) contratou vários médicos para tratar a peste que então deflagrara em Avignon. Pelo perigo de contágio, estes médicos eram muito melhor remunerados que os demais e eram-lhes concedidos privilégios, como os de poder realizar autópsias em busca de uma possível cura para a peste.

Um Tom Uniformizador – o Negro

Igreja – adversária ou aliada?

Em toda a Idade Média e até durante o Renascimento, a Medicina era chicoteada e abençoada pela Igreja em alternâncias ditadas pelas correntes ideológicas e pelas necessidades práticas. A cura vinha, na maioria das vezes, associada ao poder da oração e à penitência, através da intercepção pelas mãos de um pio agente da Santa Madre Igreja. A doença era mística e cabia a Deus decidir se o pecador morria ou vivia; não fazia parte da competência humana intervir na vontade divina. No entanto, constatações simples e naturais sobre a doença e formas de a combater prevaleceram ao longo dos tempos, aliadas à curiosidade insaciável dos que pensam. Dentro e fora das ordens religiosas, a Medicina começou a ganhar forma. E, com essa forma, veio o estilo.

O traje negro

Em algum momento na História se terá tornado consensual a utilização de um traje formal para a prestação de cuidados médicos, não sendo este necessariamente preto. Isso é visível através de várias pinturas. A mais célebre será a famigerada Lição de Anatomia do Doutor Nicolaes Tulp, criada por Rembrandt em 1632 e na qual o médico-anatomista enverga uma veste distinta dos demais e ensina anatomia recorrendo a um cadáver. Todos os presentes naquela sala usam golas pomposas e o conceito de asseio é completamente ignorado, como era costume da época.

Lição de Anatomia do Doutor Nicolaes Tulp, pintada por Rembrandt Harmenszoon van Rijn em 1632

Em 1728, o alemão Cornelis Troost pintou a Lição de Anatomia do Professor Willem Röell. Trata-se de um olhar para uma situação análoga à do quadro de Rembrandt, mas cem anos mais tarde. Constatamos que, mantendo-se o cadáver, as golas pomposas deram lugar a cabeleiras vistosas. A ausência da noção de higiene é visível pela proximidade quase íntima e corriqueira ao cadáver da parte do cavalheiro da direita. Pela análise destas pinturas, poderemos concluir que a regra de se usar um traje formal na prática médica era, de facto, cumprida. No entanto, há um pormenor que não deve ser esquecido: os pintores raramente pintavam os seus modelos “malvestidos”! Consequentemente apenas nos podemos interrogar se realmente os nossos antecessores médicos faziam cirurgias e autópsias de botinhas altas e com casacos elegantes. Seja em termos de estilo, seja em aspectos históricos, a arte tanto consegue ser um precioso aliado da Medicina como uma importante fonte de enviesamento.

Lição de Anatomia do Professor Willem Röell, por Cornelis Troost (1728)

Negro de médico, ou de clérigo?

A moda foi, então, o ditador máximo da farda de um médico, tornando-se consensual, tanto na Europa como na América, que o médico que visita os seus pacientes se deve vestir de forma formal, traduzindo também a ascensão social da profissão. Assim, até ao final do século XIX, o médico é representado trajando negro, formalmente, semelhante a um clérigo. Quão irónico!

Novamente, simbolismo e prática médica caminham de mãos dadas: o negro, cor de luto, é também a cor que se aproxima do paciente nas horas de maior sofrimento. O negro revela a aproximação possível da morte e da quebra do conforto familiar. Os médicos trajavam fatos formais negros até ao executar cirurgias ou autopsiar. Como seria de esperar, todo o ambiente adquiria contornos muitíssimo mais sinistros e pesados – sem nunca esquecer a falta de assepsia e higiene que era premente nas cirurgias e bem patente nas pinturas da época. Na verdade, o cheiro nauseabundo das cirurgias na chafurdice de roupas, sangue e vísceras quase que é perceptível ao contemplador das pinturas da época.

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A Lição de Anatomia do Dr. Joan Deyman, de Rembrandt (1656)

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O Dia do Éter, de William T. G. Morton (1846)
O Dia do Éter, de William T. G. Morton (1846)

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O Anatomista, de Gabriel von Max (1869)

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Antes da Operação, de Henri Gervex (1887)

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Por detrás da Bata Branca

Quem inventou a bata branca?

Não é clara a verdadeira origem da bata branca. Se algum médico mais niquento se lembrou de pegar numa bata e constatou que ela, de facto, era bastante útil para o livrar de nódoas indesejáveis, nunca o saberemos. A constatação da necessidade de uma farda protectora pode ter sido óbvia e múltipla em vários locais.

O que se sabe é que a verdadeira revolução na moda dos trajes médicos teve origem na Velha Europa, com os artigos de Joseph Lister – cirurgião britânico do século XIX, que em 1867 defendeu as primeiras teses sobre a contaminação bacteriana em ambiente hospitalar. Lister não era, contudo, livre de culpa. Os seus contemporâneos criticaram-no quando ele apresentou as suas ideias ao público e até o seu cirurgião-chefe o humilhou, denunciando que mesmo ele operava com as suas roupas de civil, inclusivamente com o fraque azul que usava nas suas dissecções, já ressequido com sangue seco. De facto, os cirurgiões daquela época tinham orgulho no “bom cheiro cirúrgico” e consideravam que as nódoas nos seus fatos eram proporcionais às suas capacidades cirúrgicas.

Não obstante, como idiotas são apenas aqueles que não mudam de opinião, Lister revolucionou o seu modo de operar, obrigando os seus assistentes a lavar as mãos, a usar luvas nas cirurgias e, sobretudo, a usar um fato próprio para cirurgia, branco. O seu trabalho baseou-se nas descobertas de Louis Pasteur que, curiosamente, é representado em pinturas envergando sempre o formal traje negro. Todavia, os registos fotográficos revelam que, nas suas experiências, usava uma simples bata branca.

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Retrato de Louis Pasteur, por Albert Edelfelt (1885)

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Fotografia tirada a Louis Pasteur no seu laboratório (data incerta)

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A bata branca à conquista do Mundo

O grande quadro representativo desta viragem de comportamentos (e de moda) é The Agnew Clinic, de Thomas Eakins, de 1889. O mesmo pintor tinha pintado The Gross Clinic em 1875. As diferenças entre os dois quadros reflectem esta mudança de comportamentos. O Dr. Samuel Gross – do Thomas Jefferson Medical College – foi eternizado, em 1875, num quadro funesto e sanguinolento, a executar uma cirurgia a um fémur com osteomielite, vestido com um traje formal, que qualquer um levaria a um jantar de gala. Catorze anos depois, Eakins pinta o Dr. Agnew a conduzir uma mastectomia para os seus alunos: toda a sua equipa usa fardas brancas e limpas e utiliza instrumentos esterilizados, com o auxílio de uma enfermeira instrumentista. Já dizia Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.

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A Clínica Gross, por Thomas Eakins (1875)

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A Clínica Agnew, por Thomas Eakins (1889)

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Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos da América, tanto médicos como auxiliares começavam a envergar o branco, como é demonstrado pela fotografia de 1889 da equipa do Hospital Geral de Massachusetts, onde, pela primeira vez, os cirurgiões surgem de manga-curta. Novamente, é curioso constatar a mudança de hábitos dentro da mesma instituição – uma fotografia de 1846 tirada à sala de operações do mesmo hospital revela o uso de fatos formais durante a realização de cirurgias.

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Fotografia tirada no dia 16 de Outubro de 1846, na sala de operações do Hospital Geral de Massachusetts, a uma cirurgia realizada com anestesia.

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Fotografia de uma cirurgia asséptica na Ala Bradlee do Teatro Cirúrgico do Hospital Geral de Massachusetts em 1888.
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Com o virar das cores e da mentalidade, seguiu-se uma rigorosa revisão das condições dos estabelecimentos hospitalares, baseada nos avanços da microbiologia. Tal requereu uma completa reestruturação tanto dos hábitos de higiene e do ensino médico, como também das infra-estruturas associadas aos cuidados médicos. O relatório de Flexner (1910) e investigações jornalísticas como as de Walter Reed e William Gorgas (1904) – que denunciavam a disseminação da malária e febre-amarela entre os construtores do Canal do Panamá – foram a força motriz que originou o encerramento de diversos edifícios hospitalares. Chegara-se à Era da Bacteriologia, da Higiene e da Anti-sepsia e as doenças do foro infeccioso pareciam agora um inimigo passível de ser derrotado pelas mãos do médico.

O bom exemplo português – fotografia presente num suplemento do jornal O Século de 1910, retratando os novos cirurgiões do banco do Hospital de São José de Lisboa.

Branco – a cor da salvação?

Considerando a evolução do nosso vestuário, tal como numa gesta de cavaleiros medievais, poderíamos ingenuamente pensar que se tratava do triunfar da luz sobre as trevas. E, de certa maneira, até foi! O culminar na bata branca é consequente de uma longa evolução da completa ignorância, desconhecimento e arrogância perante o corpo humano até ao escrutínio minucioso de tudo o que o envolve. A bata branca reflecte a sujidade e impureza de um trabalho que sonha com o puro, o correcto, o bom; com o saudável e o inteiro. Assim, em pleno século XX, a bata branca generalizar-se-ia por quase todo o mundo e os médicos tornaram-se facilmente reconhecíveis na multidão de ofícios. Nem em teatro de guerra os médicos usam outras cores, pois não estariam completos sem a veste que melhor anunciava o seu propósito quasidivino – a salvação.

No entanto, continuamos a ser o prenúncio de uma morte anunciada, que já não surge só pela acção das bactérias. Continuamos a ser temidos e amaldiçoados pelos nossos veredictos, horários insanos e tempo escasso. Mas mesmo assim, a nossa bata continua a ser a tábua de salvação para todos os que padecem.

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Joana Moniz Dionísio é uma aluna do 5º ano de Medicina na FCM-NOVA. Apesar de ter nascido em Lisboa, viveu durante toda a sua vida em Alcobaça, até regressar novamente à capital para ingressar no ensino superior. Vem de uma zona conhecida pela sua doçaria conventual, mas as suas paixões e hobbies ignoram por completo a culinária, indo desde a Medicina, Literatura e História Universal até temas como a Cultura Oriental e Música Clássica. É colaboradora da revista FRONTAL desde Março de 2013 e foi no também nos idos de Março do ano seguinte que se tornou editora da secção Cultura. Desde Novembro de 2014 que assegura a função de Editora-Geral da FRONTAL. A autora opta pelo Antigo Acordo Ortográfico.

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