O autismo é uma doença bastante prevalente na atualidade e, não raras vezes, mal interpretada. Recentemente, foi-lhe atribuída uma nova classificação pela American Psychiatric Association e proposto mais um dos possíveis mecanismos subjacentes à sua etiologia. Mas o mais impressionante foi o resultado de um estudo publicado a semana passada na revista Nature, que está a revolucionar por completo o conhecimento médico relativamente à idade a partir da qual se julgava ser possível detetar autismo nas crianças. Põe-te a par das novidades nesta vasta área de estudo!
1 | Uma doença complexa
O autismo é um distúrbio neurológico descrito pela primeira vez em 1943, pelo médico austríaco Leo Kanner, e que afeta as capacidades de aprendizagem e socialização de um indivíduo. É 4 vezes mais prevalente no sexo masculino do que no feminino, sendo a 3ª deficiência do desenvolvimento mais comum (a ONU estima que, em 2010, afetava cerca de 70 milhões de pessoas em todo o mundo), apenas ultrapassada pelo atraso mental e pela paralisia cerebral. Ao pensarmos numa criança autista, é frequente que a primeira imagem que nos venha à cabeça seja a de alguém absorvido em si mesmo, exibindo um comportamento que foge aos padrões da normalidade, como se vivesse num mundo à parte. No entanto, crianças com este distúrbio tanto podem ser praticamente indistinguíveis das crianças normais, chegando por vezes a ter um QI superior ao da média, como apresentar-se profundamente incapacitadas. Dada esta variabilidade de apresentação do quadro clínico de autismo, a última edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), publicada pela American Psychiatric Association, integrou o autismo num novo grupo de doenças designado de “Distúrbios do Espectro Autista” (DEA) – no qual se engloba ainda (mas não só) a conhecida Síndrome de Asperger -, o que significa que duas pessoas diagnosticadas com autismo poderão apresentar sintomas e/ou características bastante díspares.
2 | Porque surge, afinal, o autismo?
A etiologia do autismo continua a não estar totalmente esclarecida, porém admite-se que o mesmo seja causado por anormalidades na estrutura e função cerebrais. Estudos já publicados apontam para que uma região do cérebro denominada córtex pré-frontal dorsomedial – associada à compreensão dos pensamentos, crenças e intenções de outrem – esteja hipoativa em pessoas com autismo. Em muitas famílias, parece haver um padrão de autismo ou distúrbios semelhantes, o que sugere que a doença poderá ter uma base genética (apesar de nunca ter sido identificado nenhum gene como agente causador). Também se pensa que o autismo poderá afetar preferencialmente os indivíduos com suscetibilidade genética para certas patologias como a Síndrome do X Frágil ou a Síndrome da Rubéola Congénita, sendo que fatores ambientais – como a exposição às toxinas do mercúrio – parecem aumentar ainda mais este risco. A investigação em torno da etiologia desta doença não cessa: um estudo publicado no passado dia 7 de Novembro, na revista Nature, revela que a estimulação farmacológica dos recetores 5-HT2C da serotonina (neurotransmissor implicado na regulação do humor, do sono, do apetite, e ainda da memória e da aprendizagem) pode ajudar a melhorar a flexibilidade cognitiva e a perseverança de certos comportamentos, deficits condicionados por polimorfismos no TPH-2, gene codificador do enzima de síntese da serotonina, e que estão na base de várias doenças mentais, entre as quais o autismo.
3 | Uma revolução diagnóstica
Não há nenhum teste médico específico para detetar o autismo. O diagnóstico desta doença é feito por uma equipa de profissionais (neurologista, psicólogo, pediatra, patologista da fala, entre outros) através da observação e avaliação dos comportamentos e atitudes da criança, juntamente com uma entrevista com os pais ou outros familiares. Os achados desta equipa são então comparados com o protocolo estabelecido no DSM. Segundo a American Society of Autism (ASA), para que um indivíduo seja considerado autista terá de apresentar, pelo menos, metade das características da lista que se segue (disponível para consulta no website oficial da ASA: http://www.autism-society.org/), as quais se incluem em 3 grandes categorias: defeitos qualitativos da interação social, defeitos qualitativos da comunicação e padrões de comportamento, interesses e atividades restritivos, repetitivos e estereotipados.
A integração do autismo nos DEA tem tido repercussões controversas, incluindo alterações no financiamento do tratamento dos doentes a nível dos sistemas educacional e de saúde e um potencial aumento da estigmatização social para com os indivíduos com Síndrome de Asperger, os quais, de alguma forma, são agora vistos como portadores de autismo – não esqueçamos a frequente associação feita entre autismo e deficiência incapacitante. Esta medida tem chamado a atenção para o desenvolvimento de múltiplos instrumentos standardizados para o diagnóstico dos DEA. Para além disso, o reconhecimento das co-morbilidades, tanto neurocomportamentais como não-psiquiátricas (ex: convulsões e doenças auto-imunes), cujo diagnóstico pode ajudar a estabelecer a terapêutica aplicada, é cada vez mais visto como crucial. Todo este panorama tem levado a que haja cada vez mais investigação no sentido de se avaliar, a nível clínico, molecular e bioquímico, os DEA. Para tal, têm sido desenvolvidas técnicas de avaliação da variabilidade genómica, da expressão génica, da função imunológica, dos perfis metabólicos, de eletroencefalografia, de ressonância magnética funcional e de avaliação dos movimentos oculares. Esta última, particularmente, tem dado que falar.
4 | A maior descoberta dos últimos tempos
De facto, uma das grandes características do autismo é a dificuldade no contacto visual, citada desde a primeira vez que a doença foi descrita. Contudo, este deficit apenas era detetado em crianças a partir dos 3 anos, altura em que era dada a informação aos pais de que estavam perante um caso de autismo. Este facto deixou de ser verdade há dias, graças a um estudo realizado pelo Dr. Warren Jones (Diretor de Investigação no Marcus Autism Center, em Atlanta, Geórgia) e pelo seu colega Ami Klin, publicado na revista Nature a semana passada e divulgado pela CNN (vídeo mais abaixo). Eles estudaram 110 bebés desde o seu nascimento – 59 dos quais tinham um risco acrescido de ser diagnosticados com autismo devido ao facto de terem um parente com a doença, apresentando os restantes 51 menor risco. De notar que, segundo os US Centers for Disease Control and Prevention (Atlanta), uma em cada 88 crianças tem um DEA. Ao longo de dois anos, em dez intervalos regulares de tempo, estes investigadores submeteram os bebés à visualização, num ecrã, de imagens dos seus pais, utilizando equipamento e tecnologia de eye-tracking, de forma a perceberem em que é que os olhos dos bebés se fixavam. É sabido que, quando confrontados com o contacto com outra pessoa, os bebés fixam preferencialmente o seu olhar nos olhos dessa mesma pessoa. Tendo em conta este pressuposto, doze crianças (do sexo masculino) do grupo de alto risco e uma criança (também do sexo masculino) do grupo de baixo risco foram diagnosticadas com risco de desenvolvimento de DEA. Entre os 2 e os 6 meses de idade, estes bebés tinham tendência a fixar cada vez menos o seu olhar nos olhos dos pais, à medida que o tempo passava. Contudo, quando o estudo começou, eles apresentaram resultados idênticos aos das crianças que não foram diagnosticadas com risco de desenvolver DEA, isto é, eram igualmente capazes de fixar o seu olhar nos olhos dos seus pais, o que surpreendeu os investigadores, que pensavam que essa diferença seria visível logo desde o nascimento. No entanto, segundo Jones: “It does give us hope, because it suggests that, were we able to identify children at this early time point in life, there’s a bit of a foundation we could begin to build on with treatments”.
A verdade é que este estudo permitiu construir uma boa janela temporal para o possível início de desenvolvimento do autismo – nunca antes se haviam detetado sinais desta doença tão precocemente (primeiros meses de vida). Muito provavelmente, serão agora necessários estudos populacionais mais abrangentes, de modo a poder confirmar-se, com maior precisão, a altura de início das manifestações do autismo. Assim, os médicos poderão intervir, o quanto antes, no tratamento da doença, minimizando ao máximo, a longo prazo, o grau de limitação social e profissional dos indivíduos adultos afetados.