Por ocasião do 7º aniversário do MarcaMundos, a FRONTAL juntou-se a este projeto da AEFCM para assinalar este marco com uma entrevista à sua criadora, a Dr.ª Inês Ferreira, antiga aluna da NMS | FCM. Nesta entrevista, abordámos aprofundadamente a história do MarcaMundos, a inspiração por trás da sua criação e a experiência de voluntariado da Dr.ª Inês Ferreira.
Conhece mais sobre o MarcaMundos nas suas redes sociais.
FRONTAL (F): Já tinha feito algum tipo de voluntariado antes de criar o MarcaMundos (MM)?
Dr.ª Inês Ferreira (IF): Sim, já tinha. Na verdade, foi por isso que depois tive vontade de, juntamente com outros colegas, criar o MarcaMundos. Estive dois anos num grupo de ação social chamado GASTagus, que trabalhava em Educação para o Desenvolvimento, realizando ações de formação em várias áreas. O primeiro ano culminou numa missão de um mês em Cabo Verde como voluntária. Gostei tanto que fiquei como orientadora no segundo ano, acabando por ir como coordenadora a outra missão, de um mês. Depois disto, surgiu a vontade de ter um projeto de voluntariado destes que estivesse associado à nossa faculdade porque, ao contrário de outras faculdades de Medicina, não havia nenhum.
F: Qual foi a história do início do MarcaMundos?
IF: Na altura, existia um projeto do departamento de Ação Social da faculdade chamado Despertar Sorrisos. Consistia em voluntariado hospitalar no Hospital Dona Estefânia, num protocolo com a Liga de Amigos do Hospital Dona Estefânia, mas não tinha muitos voluntários nem durou muito tempo. A responsável pelo projeto era a Kelly Lopes, que era responsável pelo departamento de Ação Social. Eu envolvi-me mais com este projeto, começando a reunir com as representantes da Liga de Amigos, que me relataram voluntariado que faziam, a título individual, em Angola. Este relato, em conjunto com a minha experiência no GASTagus e a perceção de que não havia nenhum projeto deste género na faculdade, foi o “clique” que faltava. Falei com a Kelly e isso foi o ponto de partida para criarmos um projeto deste género. Falámos com a Teresa Nóbrega, na altura Presidente da Associação de Estudantes e envolvida com projetos semelhantes e fomos dando passinhos pequenos para o criar.
Eu, a Kelly e a Teresa falámos com um amigo, o João Lopes, que também tinha feito GASTagus e com a Inês Machado, que veio a ser presidente da 1.ª Edição. Entrámos em contacto ainda com outra pessoa e, tendo a CO quase formada, sentimos que precisávamos de alguém de fora, que não fosse nosso conhecido. Abrimos inscrições para mais um membro e a Marta Monteiro juntou-se à equipa, vindo depois a ser a presidente da 2.ª Edição. Depois da CO formada, começámos a estruturar o projeto.
F: Quais eram os principais objetivos iniciais do projeto?
IF: Nós queríamos sensibilizar os estudantes para a questão do voluntariado e para contextos diferentes dos nossos, não tão privilegiados, assim como dar-lhes oportunidade para conhecer esses contextos e outras culturas. Mas, mais do que isso, queríamos também promover a educação e a promoção para a saúde, tanto dentro como fora de Portugal.
F: Durante o ano também tinham formações com os próprios alunos da faculdade ou eram apenas com voluntários?
IF: A Kelly acabou por não integrar a CO da primeira organização, mas foi ela que nos deu o contacto do nosso primeiro parceiro (que se mantém como parceiro até hoje), a Helpo. Contactámos muitas outras organizações mas ficámos apenas com duas vagas disponíveis para voluntariado internacional. No início não tínhamos muitas vagas para voluntários, porque estávamos a lançar o projeto como projeto-piloto. Tínhamos formações essencialmente para os voluntários, apesar de algumas serem abertas a outras pessoas.
F: Tinham algum tipo de outras atividades, como os rastreios?
IF: Sim, fizemos rastreios. Infelizmente, no ano em que o projeto arrancou, fiz Erasmus no 2.º semestre e acompanhei o projeto mais à distância (reuníamos por Skype). Tentávamos fazer angariação de fundos com vários eventos, incluindo rastreios.
F: Houve muitas pessoas a ajudá-la, inicialmente, na Comissão Organizadora? Eram maioritariamente amigos?
IF: Inicialmente, eu, a Kelly e o João estávamos envolvidos no projeto. Depois, juntou-se a Inês Machado. Éramos os quatro do mesmo círculo e três de nós tinham feito GASTagus, por isso tinham alguma experiência em voluntariado, em dar algum tipo de formação e com conhecimento destes temas, porque queríamos debater com e informar os nossos voluntários antes de partirem em missão. Como queríamos fugir à “bolha” de pessoas conhecidas, juntou-se a Rita Neto, que não conhecíamos tão bem mas que também tinha interesse por estes programas e, no final, abrimos uma vaga para outra pessoa, que pudesse ter ideias diferentes e viesse de fora. Como a Kelly não ingressou na primeira CO, ficámos cinco, inicialmente. Éramos todos de Medicina e de anos diferentes, o que, na nossa ótica, era importante para dar continuidade ao projeto. Três de nós já estavam no quinto ano, a presidente estava no terceiro ano e a Marta, quando entrou, era do primeiro ou do segundo ano.
F: Como surgiu o nome e o logotipo?
IF: O nome foi ideia da Teresa Nóbrega, mas não me lembro como surgiu! O logotipo foi feito por alguém da área de marketing da Associação de Estudantes e nós gostámos muito – é ainda o atual logotipo.
F: Como conseguiram apelar às pessoas para que se juntassem ao projeto?
IF: Inicialmente, não tivemos muitas inscrições. Divulgávamos essencialmente através de publicações no Facebook e através do passa-palavra. Havia algumas pessoas na faculdade a interessarem-se pelo tema, mas nunca eram muitas. Hoje em dia talvez tenham mais pessoas a interessarem-se pelo tema do que nós!
F: Notou alguma evolução do interesse ao longo do tempo por parte das pessoas?
IF: Acompanhei o projeto mais de perto apenas durante os primeiros dois anos. O primeiro ano correu mesmo muito bem, talvez até contra todas as expectativas. Nós inicialmente estávamos algo afastados da AE, porque queríamos que fosse um projeto separado, como era o Grupo de Teatro Miguel Torga ou a Tuna Médica de Lisboa, mas depois percebemos que tanto o MarcaMundos como a Associação de Estudantes beneficiariam mais se existisse algum tipo de relação, salvaguardando a independência do projeto. No final do primeiro ano de atividade, houve excelente feedback face ao balanço de atividades, o que também ajudou a chamar mais pessoas nos anos seguintes.
F: Quantos voluntários eram inicialmente?
IF: Cerca de 10, não muito mais do que isso. Havia 20 vagas, mas não foram todas preenchidas. Precisávamos de voluntários suficientes para fazer a angariação de fundos mas não queríamos deixar muitas pessoas frustradas por não irem em missões internacionais, porque as pessoas envolvem-se e todas têm interesse.
F: Olhando para trás, teria feito algo de diferente?
IF: Gostava de ter estado cá, para estar mais envolvida no projeto, e eventualmente que tivesse acontecido um ano mais cedo. Apesar disso, senti que aconteceu quando tinha que acontecer. Gostava que tivéssemos tido mais parcerias com associações para dar oportunidade a mais pessoas de ir em missão.
F: Relativamente a perspetivas futuras, como se sente com a evolução do projeto de ano para ano?
IF: Tenho acompanhado à distância, vejo que o projeto cresceu muito e fico mesmo muito contente que tenha continuado e que tenham pegado nele, aumentado as parcerias e o número de voluntários. Nós dizíamos que era o “nosso bebé” e vê-lo a crescer e a tornar-se “adulto” é mesmo muito bom. O tipo de partilhas que [os elementos atuais do MarcaMundos] fazem nas páginas das redes sociais são muito maduras e sensibilizam as pessoas para vários temas. Na altura, não investíamos nisso e estávamos mais focados no projeto em si e em que corresse bem, mas, daquilo que tenho visto, vocês estão virados para o que é o mundo, as principais desigualdades e problemas que existem. Ver que o sonho “de criança” que eu tinha de que o projeto continuasse e tivesse várias edições se concretizou é mesmo muito bom.
F: Pode contar alguma história engraçada que tenha acontecido?
IF: Ora, não é bem uma história engraçada, mas lembro-me que, quando enviamos as voluntárias em missão pela primeira vez, o nervosismo era bastante para ver se [a missão] corria bem. Algo que achámos importante era haver sempre uma pessoa em Portugal que fosse mantendo o contacto com elas – na altura duas colegas tinham esse cargo. Como eu tinha estado um bocado mais fora durante o ano, durante o verão voluntariei-me para esse papel: ia falando com elas regularmente, sabendo como as coisas estavam a correr… e lembro-me que da primeira vez que falámos, elas tinham sido assaltadas! Fiquei chocada: uma pessoa não está à espera, mas é normal, em Moçambique, acontece! E nada foi violento.
F: À semelhança de quando surgiu a ideia de criar o projeto, houve mais algum momento “de transição” especial para a evolução do MarcaMundos?
IF: Quando tivemos a nossa primeira confirmação com a Helpo foi um clique muito grande, uma felicidade muito grande! Desde o início que as coisas corriam bem, e estávamos convencidos que íamos conseguir atingir os nossos objetivos. Por seu lado, houve momentos mais difíceis em que não conseguimos fazer parcerias com organizações das quais imaginávamos garantidamente um sim. De repente, imaginámos: Ok, isto é real, vai mesmo acontecer. Tínhamos um protocolo com a Helpo e um sonho a tornar-se realidade. Foi um momento importante.
F: O que é que a experiência de voluntariado – no Marca Mundos e não só – deu como mais-valia em termos pessoais e a nível da prática clínica?
IF: O MarcaMundos, em concreto, além de ter sido um sonho, ofereceu-me muito em termos organizacionais. O voluntariado é uma grande escola. Inicialmente, o GASTagus veio tornar-me, sobretudo, uma pessoa mais desperta para alguns temas sobre os quais eu podia já pensar mas talvez não debatesse tanto, ao ouvir pessoas diferentes a falarem sobre os mesmos tópicos com opiniões diferentes. Também o facto de me ter exposto a coisas que podem ser não ser tão confortáveis ao início me fez crescer muito. Foi isso que me permitiu depois criar, juntamente com os meus colegas, o MarcaMundos. Tocando talvez no cliché, acho mesmo que o voluntariado e qualquer tipo de ajuda, nos acaba sempre por tornar, não necessariamente pessoas melhores, mas pelo menos pessoas mais atentas. É muito importante estarmos mais atentos para aquilo que se passa à nossa volta, e o voluntariado ajuda-me mesmo a fazer isso: sair da bolha onde vivo e dos problemas que tenho, como qualquer pessoa, para contactar com problemas bem mais reais.
F: O que são essas tais situações “desconfortáveis ao início” com as quais o voluntariado a ensinou a lidar?
IF: Refiro-me sobretudo ao embate com realidades muito distantes do privilégio a que estamos habituados. Fazer voluntariado permitiu-me já estar muito mais preparada para isso quando criámos o MarcaMundos.
F: Viu essa aprendizagem/evolução nos voluntários com que contactou?
IF: Infelizmente, contactei pouco com eles. Mas sim, via-se que sim.
F: Diria algo em específico aos novos voluntários do MM?
IF: Não diria que é algo para toda a gente, mas sim para toda a gente que tenha um bocadinho de vontade de o fazer. Se as pessoas sentem pelo menos a curiosidade de saber o que é o projeto e de fazer voluntariado, de fazer algo diferente, acho que se devem inscrever e participar no projeto. Mesmo que até nem tenham muita vontade do voluntariado internacional propriamente dito, agora têm muitas opções de voluntariado nacional. Se nem isso vos interessar, as próprias formações dão ferramentas importantes para o futuro. Aprende-se muito, às vezes muito mais do que nas aulas da faculdade. Aprende-se a colocar em prática muitas capacidades sociais e de comunicação que não nos são ensinadas na faculdade e somos expostos a muitas situações diferentes e difíceis. E nós acabamos por nos “desenrascar” e ultrapassá-las. Recomendo muito.
F: Hoje exerce Medicina? Em que especialidade?
IF: Sim. Estou no 3º ano da especialidade de Pediatria em Setúbal.
F: De que forma é que o voluntariado continua (ou não) presente na sua vida? Está envolvida em algum projeto atualmente?
IF: Continuo a fazer, talvez não tanto como gostava. Tento continuar a fazer com alguma regularidade. Ultimamente, a minha área de maior interesse tem a ver com os refugiados, com a questão da crise migratória. Já estive duas vezes em Lesbos, no campo de refugiados de Moria. No mês passado, aliás, estive em Tessalónica, no norte da Grécia. Estive um ano inteiro sem fazer voluntariado, por causa da covid. Pelas restrições que existiam em termos de quarentena, tornava-se difícil e senti mesmo falta.
F: O que é que contactar com uma realidade dessas lhe trouxe? O que acha que seria útil transmitir às pessoas que não tiveram essa experiência, em termos de insights e para ter noção de o que realmente se passa?
IF: Põe-se as coisas em perspetiva. Todos os nossos problemas… Enfim, são histórias de vida muito difíceis, poder-se-ia dizer horríveis. E não dá para as conhecer todas (nem é esse o propósito) mas algumas delas nós vamos sabendo. Esse é o grande ensinamento: pensar o que pode ser tão grave para eu deixar toda a minha vida para trás, todos os meus amigos e minha família e sair daqui. Eu não consigo imaginar o que me faria fazer isso. Não consigo, por mais empatia que tenha, colocar-me no lugar daquelas pessoas com as quais trabalhei e a quem prestava cuidados de saúde. Acho mesmo que isto me torna uma pessoa mais tolerante, no dia-a-dia. Para além do óbvio, que é ajudar por prestar cuidados de saúde a pessoas que poderiam não os ter ou esperar mais tempo para serem atendidas….
Mesmo clinicamente, aprende-se muito. Cada vez mais me afasto mais da saúde de adultos e me aproximo mais da saúde das crianças, mas há coisas que não se esquecem e continuam a ser úteis.
F: Por vezes, a medicina é vista como uma área aparentada do trabalho humanitário e do voluntariado. O que acha desta perspetiva?
IF: De facto a medicina é a ajuda ao outro, sempre. Mas é ajuda ao outro que é paga, ou seja, estás das 9h às 18h, ou estás na urgência, e estás a ser paga, tal como em qualquer profissão. Depois, tens tipos de médicos diferentes e tipos de pessoas diferentes. Acho que é muito difícil fazer isto, mas tens, por um lado, efetivamente, pessoas que saem do hospital ou do centro de saúde ou de onde quer que estejam e apagam o registo e vão à sua vida, e, por outro lado, tens pessoas que não conseguem desligar nunca. Mas também o nosso trabalho nunca acaba quando sais do hospital, porque se acontece um acidente qualquer a qualquer hora, és obrigada a prestar auxílio.
No entanto, não diria que medicina e voluntariado estão assim tão próximos. Percebo o que essas pessoas querem dizer, comparando a medicina com o voluntariado no sentido de ser ajuda ao próximo, ao contrário de outras profissões que por muito importantes que sejam, funcionam de outra forma. Contudo, para mim, não é a mesma coisa estar a trabalhar no hospital e estar a fazer voluntariado. Estar no hospital é trabalho, que eu adoro, e é o que me dá o meu ordenado no final de todos os meses. O voluntariado é outra coisa, faz-me sentir bem e julgo que me dá muita coisa em troca. Claro que na pediatria recebo imenso todos os dias, recebo os sorrisos dos miúdos… Mas isso, tal como um cirurgião opera alguém quase a morrer e a pessoa sobrevive recebe muito em troca também, faz também parte da nossa profissão. Mesmo um médico de família que consegue acompanhar uma família inteira: vê os bebés a nascer e crescer, vê as pessoas a engravidar, a ficar doentes…
F: Aproveitando o que mencionou, acha que o voluntariado a ajudou a ter o equilíbrio entre levar tudo para casa e bloquear tudo de forma insensível?
IF: Depende das pessoas. Tenho colegas que dizem que não percebem como é que consigo ir e expor-me a situações de vida tão difíceis, mas cada pessoa tem os seus mecanismos de defesa. Na minha profissão do dia-a-dia, já tendo visto coisas graves, não me lembro de ter visto situações extremamente graves, pelo menos durante a especialidade. Nos estágios, no quarto ou no quinto ano, lembro-me de ter visto coisas talvez mais difíceis, porque lidava com adultos, e as crianças, apesar de tudo, morrem menos, felizmente. Seja como for, acho que tenho bons mecanismos de defesa. Converso muito, falo muito com as pessoas que me são próximas – é uma coisa importante, e claro que depende dos mecanismos de cada pessoa – há quem guarde tudo para si, o que também pode ou não ser bom.
Acho que sou uma pessoa mais paciente clinicamente a fazer voluntariado do que cá. Os problemas de saúde podem ser exatamente os mesmos: imaginem que vejo uma pessoa que tem tosse há dois dias. Isto acontece muitas vezes, crianças com tosse estão sempre a ir à urgência, sem qualquer critério para serem observadas no serviço de urgência, só têm tosse há dois dias e estão bem. Se isto acontecer nos sítios onde eu faço voluntariado, eu sou mais tolerante, porque essas pessoas estão à procura também de outras coisas – estão à procura de um bocadinho de conforto. Posso também estar a analisar isto de forma egoísta e na verdade as pessoas mesmo aqui também só estarem à procura de um bocadinho de conforto.
A FRONTAL agradece à Dr.ª Inês Ferreira a amabilidade e disponibilidade ao conceder esta entrevista, e à Telma Cabral e à Carolina Mota, da Comissão Organizadora do MarcaMundos, pela organização e estabelecimento de contactos.
A entrevista foi realizada pelos elementos da Redação da FRONTAL Ana Sofia Faria e Teresa Núncio, tendo ainda ajudado na condução da entrevista os colaboradores do MarcaMundos Afonso Mendes Borges e Margarida Cordeiro.
