[Crónica]
[dropcap]A [/dropcap]vida universtária é um sopro; para o estudante de medicina, um sopro prolongado. Num momento estamos nas matrículas, no outro a fazer contas a sua vida futura e preparadíssimo para trabalhar oito horas diárias, cinco dias por semana, sem direito à gazeta, a atrasos de duas horas e a sair à quinta-feira para o Urban (ou será para o Main? – há dias em que acho que a Faculdade tem mais relações públicas que alunos…).
Quando um gajo chega ao sexto ano de medicina – ainda para mais ao sexto ano de medicina em Santana – tem sobre si o peso dos anos. Pior do que se sentir velho, sente-se antigo. Depois de cinco anos a galgar, de um lado, a Rua das Pretas, e, do outro, a de São Lázaro, nada no topo desta colina a que chamam “da Saúde” parece manter-se constante. Uma Universidade pressupõe-se organização pouco mutável no tempo: a pais sucedem-se filhos nas matrículas e nas cátedras, e quase obrigatório é manter-se uma ou outra figura emblemática percorrendo os seus corredores – professor ou segurança, pouco interessa – neste salto geracional. A Faculdade de Ciências Médicas, porém, é daquelas instituições que, ao invés de pouco ou nada mudar no espaço de vinte anos, sofreu uma revolução autêntica em cinco.
Depois de cinco anos a galgar, de um lado, a Rua das Pretas, e, do outro, a de São Lázaro, nada no topo desta colina a que chamam da Saúde parece manter-se constante
A cada vez que os recém finalistas e outras quase relíquias arcanas regressam ao Campo dos Mártires da Pátria, é impossível não sentirem uma estranha comichão na ponta da alma. A questão é que tudo está igual mas tudo está diferente e uma pessoa consegue perceber isso ainda antes de passar o Aquário. Quando chega ao bar, esta dreamlike sensation chega aos píncaros: onde antes se sentavam caras conhecidas, jogando cartas durante horas a fio em substituição de aulas faltadas sete dias por semana, na esplanada encontramos faces imberbes que fazem surgir num recanto oculto da mente uma questão irrespondível: Epá, será que nós parecíamos assim tão putos no primeiro ano da faculdade?
A verdade é que ninguém que entrará este ano se lembrará de ter tido a servir no bar a Mãe do Stifler e o mais provável mesmo é que todos eles desconheçam por completo quem é, sequer, o Stifler. Lá está, somos nós que pertencemos a uma página da História antes de termos oportunidade de acabar a nossa. É uma sensação incómoda, semelhante à da aristocracia caída em desgraçada depois da implementação da República, em que insistimos em viver numa época que já não é a nossa. Ainda não está o corpo frio – que é que como quem diz, ainda nem da Faculdade saímos – e já podemos utilizar a gloriosa expressão «no meu tempo…» para iniciar cada uma das nossas histórias universitárias. Não me interpretem mal, no entanto: não existe mais bonito conjunto de palavras para iniciar narrativa do que estas; apenas, a surgirem precocemente na existência de um individuo, tal como a gravidez, em vez de bênção, maldição de fazer contas à vida são.
Mas nós havemos de contar – oh se havemos de o fazer! – a esses, os mais novos, os caloiros, histórias bestiais sobre o que por aqui se passou, mesmo que eles não se interessem por estas, principalmente se não se interessarem.
Boatos sobre baratas no meio da comida? Dinheiro a chover sobre as travessas de crepes de vegetais? A queda da Carla do parapeito do bar que a enviou para o hospital durante umas semanas e lhe roubou o último travo de clarividência que lhe restava? Ou os ataques alucinogénicos da Miriam, como daquela vez em que entrou no bar dentro de um carrinho de compras? Quem é que se vai por aqui ficar para se lembrar destas merdas?
Faltam personagens pitorescas a Santana, escola que, de ano para ano, parece estar a entrar no caminho de se transformar em alguma coisa séria
De uma maneira geral, a Faculdade é hoje um espaço mais cinzento do que era há uns anos. Faltam-lhe estas personagens pitorescas para lhe dar uma cor. Shôr Ângelo do teatro anatómico – vestindo nos dias quentes de verão apenas uma bata aberta nas costas reveladora de muito mais do que a maioria desejaria – é do que carece esta escola que, de ano para ano, parece estar a entrar no caminho de se transformar em alguma coisa a sério. Sim, porque agora tem-se o CEDOC com um site xpto e bué cenas giras; instalações novíssimas; salas, entre tantas outras que continuam interditas a alunos, abertas noite fora; ou uma biblioteca digna do ensino superior (em termos de espaço, não tanto de número de publicações), com um sistema de ar condicionado que funciona, em vez de deixar a mesa abaixo de si num inverno glaciar envolvido em ventos do norte e todas as outras num equatorial e tórrido inferno. Até “as anuais”, cadeirões ultrapassáveis quase apenas através de uma jiga-joga de directas regadas a Red Bull (ou de estudo contínuo ao longo dos semestres, mas quem faz isso na realidade quando os exames estão lá longe?) e a maioria das orais – fobia para muitos, bênção para poucos – são coisas de um passado que ficou p’ra trás.
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O problema não são os anos; é a quilometragem.
Novo ano lectivo, nova fornada de caloiros, ostentando na placona no lugar da data de nascimento o plácido ano de 1996. A maior parte deles terá nascido já depois do Poborski ter morto o sonho de Portugal no Euro 96 e nenhum deles se lembrará de tal fatídico momento.(Informação para as gerações vindouras: corre pelo meio campo em passo de mágico, finta dois dos nossos – mais mecos que jogadores, diga-se de passagem – e chapela Vítor Baía, que, colado ao chão, mais não pode fazer do que chorar a sua sorte). Eles não sabem e não podem saber, e por mais que um gajo corra para a linha final nunca lhes conseguirá explicar o significado deste momento, que uma criança viu sem saber o que via ao certo e se recorda – memória real ou ficcionada – durante tantos anos.
Quem agora entra pela primeira vez pelas portas da Faculdade, não encontrará certamente a mesma que os que neste verão finalistas se tornam descobriram lá para 2009. O Senhor Matos, sim senhor, por lá continua guardando com o seu faustoso bigode os portões da faculdade, mas tudo o resto não mais é do que uma imitação detalhada embora desfigurada do que foi o passado.
Quem agora entra pela primeira vez pelas portas da Faculdade, não encontrará certamente a mesma que os que neste verão finalistas se tornam descobriram lá para 2009.
Em conversa futura, durante o jantar do Leitão dos Caloiros, com uma qualquer novata destas lides académicas, os recém-finalistas nenhuma lição substancial sobre o funcionamento da Faculdade poderão transmitir. Mais uma vez a noção de se pertencer a outro tempo está lá: que raio de cadeiras esta gente tem nos dias que correm? Acabou-se o curso intensivo de dois anos de Anatomia e em sua substituição temos nomes pomposos para disciplinas antigas. Biocel? Tangas: Célula! Infecciologia? Tão démodé: Infecção! Há quem diga que eles agora podem escolher – escolher! Quando, nós, tudo que podíamos fazer era calar e comer – opcionais: fotografia nos anos 30! Artes circenses! Fundamentação metafísica da arte de comer gelatina! E pelo meio ninguém percebe a intenção da frase olhem que Julho é já amanhã…
(Será que o Professor O’Neill continua a mostrar imagens cataclísmicas no final de cada teórica? Quem serão os monitores e assistentes de anatomia temidos e amados? E o que será feito das épicas orais dos alunos de 19, combates assistidos por uma audiência de alunos emocionados com as respostas sempre certeiras dos colegas?)
E as noites em Santana? Quantas vezes não as maldissemos e, no futuro, como morreremos de saudades destas… Os mais novos já não sabem o que são, isso têm que perceber como se de “A+B” se tratasse.
Conhecerão eles o nome de Dj Boni, esse mago das pistas de dança, agora que ele é Dr. Boni? Troca-se o erre pelo jota, nunca tão pequena alteração ditou tamanha revolução, e o sentido da vida já não é o mesmo – as brasileiradas tocadas às quatro da manhã converteram-se em brasileiras atendidas no consultório às quatro da tarde e a Faculdade de Ciências Médicas vê-se um bocadinho mais vazia.
Existe um conforto, porém, onde todos nos podemos recolher e essa é a esperança de existirem realidades que não mudarão dê por onde der, aconteça o que acontecer. Em dez anos ou coisa do género, ainda teremos um misterioso corredor intermédio onde, vai-não-vai, se encontram cadáveres, ou assim dita a lenda; um Mascarenhas na Anatomia, mesmo que reduzida a um semestre, o eterno aluno então professor, certamente fazendo exames de fazer tremer os incautos (e a memória de ver uma rapariguinha a dizer-lhe quase face a face, lágrima a espreitar pelo canto do olhito, logo após a chamada para o exame, «Com ele não faço Oral!»); a Senhora Fary (como se soletrará o seu nome?!) impondo centenas de páginas de apontamentos desnecessários e exames de 1998 aos mais ingénuos com a subtil premonição de males a haver: «Olhe que os seus colegas têm levado muito…» ; a Noite de Santana, demasiado longa, demasiado repetitiva, com as suas voltas intermináveis à estátua do Sousa, sempre mais divertida para doutores que para caloiros; o senhor Matos, ele mesmo, imortal, se não algum filho que continue a tradição familiar, hão-de por cá manter-se para tutelar a tradição e a linhagem de Santana.
E neste futuro estranho que na realidade já é presente, a Faculdade corre pelo melhor dos mundos possíveis. A nós, os mais velhos, cabemo-nos a tarefa de nos recolhermos no nosso exotismo e limitarmo-nos a contar à caloirada essas lendas macabras de um tempo que não volta atrás: melhor assim, venha o Harrisson que Santana já não é o que era antes – e ainda bem.