TransHEALTH – Acesso a Cuidados de Saúde em Pessoas Trans

O acesso a cuidados de saúde adequados e de qualidade é um direito fundamental de todas as pessoas.

Segundo o Artigo 64º da Constituição Portuguesa, “todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover” e segundo o Artigo 6º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, “o médico deve prestar a sua atividade profissional sem qualquer forma de discriminação”.

É indubitável que fazer parte da comunidade LGBTQI+ não pode ser uma barreira no acesso à saúde, no entanto, a literatura mostra-nos que na prática isto não ocorre [3][4].

É fulcral analisar a evidência que há e refletir sobre os avanços que já foram feitos e também acerca daquilo que ainda está por fazer.

O que é ser trans?

A palavra trans engloba uma variedade de vivências de género que não correspondem ao atribuído à nascença. Identidades trans podem ser binárias (homem/mulher) ou não binárias e as pessoas trans podem escolher ou não fazer uma transição social, legal e/ou médica.

As pessoas trans podem ou não sofrer de disforia de género, que é considerada uma condição sexual pelo CID-11, e não uma perturbação mental como previamente se considerava. Esta mudança foi importante na despatologização oficial da condição trans como doença mental.

Situação social e saúde

Nem todas as pessoas trans necessitam de ou desejam apoio médico e psicológico.

A comunidade médica é um sistema de apoio basilar para as pessoas trans

[1] sendo que, para a maioria das pessoas com dúvidas sobre a identidade de género, o primeiro passo parece ser a procura de um profissional de saúde, como o médico de família [2]. É, assim, essencial que a classe médica esteja informada acerca de questões trans de modo a cumprir a sua obrigação deontológica.

Os profissionais de saúde podem desempenhar um importante papel na promoção de bem-estar psicológico e na qualidade de vida da população sendo que as pessoas referem como mais essenciais no desenvolvimento de relações terapêuticas a “empatia” e “suporte” [13].

Em contexto nacional, em termos de investigação, os estudos relativamente à comunidade trans são muito escassos. Em Portugal, os dados disponíveis sobre a prevalência, o acompanhamento clínico, as experiências, e as falhas do sistema da saúde são escassos, havendo também carência de produção de recomendação de boas práticas.

De um modo geral, há uma tendência nos discursos e na prática médica de intolerância a questões de identidade de género e de pressupostos heteronormativos [5][7][8]. Tal reflete-se nas ações de transfobia clínica que os profissionais de saúde manifestam, como a tendência para patologizar em excesso utentes trans ou a perpetuação de mitos acerca das pessoas transgénero. Isto está associado aos próprios preconceitos da comunidade médica, à falta de formação específica relativa à comunidade trans e também pelo facto dos próprios profissionais de saúde serem um produto da sua própria socialização [1][6].

Recomendações e diretrizes internacionais

A WPATH é uma associação internacional constituída por profissionais de diferentes areas, que tem como missão promover cuidados de saúde adequados e baseados na evidência, fornecer formação, investigação, políticas públicas e fomentar respeito pelas pessoas trans. Publica também recomendações relativamente ao acompanhamento clínico de pessoas transgénero, os chamados Standards of Care (SOC).

As recomendações e diretrizes internacionais indicam que qualquer profissional de saúde que acompanhe pessoas trans deve respeitar os/as pacientes e não patologizar diferentes expressões e identidades de género, deve prestar cuidados de saúde ou encaminhar para colegas melhor preparados e orientados para a diminuição da disforia do género, deve manter-se informado/a acerca das necessidades de saúde das pessoas trans, fazer corresponder o tratamento às necessidades e aos desejos específicos de cada paciente e facilitar o acesso a cuidados de saúde adequados.

Teoria do stress minoritário

As pessoas trans apresentam maior prevalência de patologia do foro mental, o que pode ser em parte explicado pela Minority Stress Theory, que evidencia que, as minorias, ao serem sujeitas a estigma, preconceito e discriminação acabam por estar inseridas num ambiente hostil e stressante, o que contribui para o aparecimento de problemas mentais, como a depressão e ansiedade, e pode levar ao aumento de prevalência de atividades de risco.

De acordo com o Centro Americano para o Progresso, 2 em cada 3 pessoas trans experienciaram algum tipo de discriminação no ano anterior à recolha de dados.

O 2015 U.S Transgender Survey revelou que cerca de metade dos indivíduos trans reportam sofrer de discriminação verbal devido à sua identidade de género e que quase 1 em cada 10 sofreu violência física.

Já dados do The Trevor Project revelam que em 2019, 54% da população trans americana consideraram seriamente o suicídio.

Em Portugal, há dados que indicam que mais de metade das pessoas trans que recorreram ao SNS sofreram discriminação por um profissional de saúde sendo que o uso de linguagem preconceituosa foi mais frequente e o serviço de urgência o local onde foram referidos mais episódios de discriminação [9].

As experiências de discriminação estão associadas a desregulações do cortisol e a maiores taxas de PTSD, menor autoestima, depressão, ansiedade e sofrimento psicológico, bem como a comportamentos auto-lesivos e tentativas de suicídio. (10)

Para além disto, a experiência de discriminação está ligada a maiores consumos de substâncias, sendo que indivíduos trans que reportaram sofrer de maior discriminação apresentaram maior probabilidade de se envolver em abuso de substâncias. [11][12].

Que avanços legais ocorreram em Portugal ?

A Lei nº38/2018 de 7 de Agosto assegurou o direito à autodeterminação da identidade de género e o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa.

Com esta lei, cidadãos maiores de idade passaram a poder alterar o nome e o marcador de sexo no registo civil. Anteriormente a esta lei era necessária a apresentação de um relatório médico. Deste modo, houve uma separação da esfera legal da médica, permitindo uma maior liberdade de escolha.

No caso de menores, dos 16 aos 18, há possibilidade da autodeterminação de género sendo necessário um relatório de consciência que declara a capacidade de decisão e vontade informada, que qualquer médico pode passar e, também, a autorização dos tutores legais.

Todas as pessoas podem usar oficialmente um nome social que corresponde à sua identidade de género, mesmo que esta não corresponde ao registo civil. Para menores, é necessária autorização parental para o seu uso em contexto escolar.

Esta lei trouxe, ademais, proteção das características sexuais com a proibição da realização de cirurgias ou outros procedimentos medicamente desnecessários a bebés intersexo.

No orçamento de estado de 2020 foi eliminada a taxa administrativa de 200 euros para alterar o marcador de sexo e o nome, tal como acontecia para mudanças de nome sem mudança de género. Atualmente, os custos são os custos normais de renovação do CC e restantes documentos.

Foi também aprovada, recentemente, uma proposta de Lei que visa a formação de profissionais de saúde em questões relacionadas com a orientação sexual, identidade de género, expressão de género e características sexuais, de modo a melhorar o atendimento e acompanhamento clínico de pessoas da comunidade LGBTQI e têm surgido associações como a Anémona, que lutam para diminuir as barreiras de acesso à saúde desta comunidade.

Apesar de já se terem sido feitos bastantes avanços relativamente à reivindicação de direitos da comunidade trans, ainda há vários pontos em que há espaço para progresso e batalhas a ser travadas.

Em Portugal ainda não são reconhecidas identidades não binárias, não existe nenhum marcador de género neutro nem são permitidos nomes próprios neutros.

Para a realização de cirurgias de reafirmação de género é necessário o aval da Ordem dos Médicos, que consiste numa autorização para a sua realização e requer dois relatórios médicos por equipas multidisciplinares para a obtenção de um parecer positivo. Estas cirurgias são os únicos procedimentos médicos em Portugal que necessitam de aprovação da ordem profissional de médicos.

Para além disto, existe uma marcante falta de cadeiras que abordem a sexologia no currículo obrigatório das escolas médicas, o que se traduz em profissionais de saúde pouco equipados e formados em questões LGBTQI+, afetando o acesso igualitário desta comunidade à saúde. [15][16][17][18][19]

É importante realçar que as pessoas trans também procuram ajuda médica por diversas razões que não estão relacionadas com a sua identidade de género. Como futuros profissionais de saúde, temos o dever de estar informados, ter empatia e vontade de ajudar e cuidar dos utentes, prezando pela saúde e garantindo um bom cuidado a todos, sem discriminação. Também na saúde, a igualdade tem de ser a regra.

 

BIBLIOGRAFIA

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[19] Arthur, S., Jamieson, A., Cross, H. et al.Medical students’ awareness of health issues, attitudes, and confidence about caring for lesbian, gay, bisexual and transgender patients: a cross-sectional survey. BMC Med Educ 2156 (2021).

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