Leite, o “inocente” sob suspeita

Recentemente, a Harvard School of Public Health reformulou a sua roda dos alimentos, e uma das novidades é a recomendação para a restrição do consumo de leite. “Calcium is important. But milk isn’t the only, or even best, source”. Estamos sintonizados com as investigações que, um pouco por todo o mundo científico, alastram dúvidas em relação ao mais inocente dos alimentos?


JW-Got-Milk

“Beba leite todos os dias, toda a vida”; “tenha ossos fortes”; “a mais simples das escolhas: o que há de melhor”; “missão crescer saudável”; “produzido com o leite de vacas felizes”; …

À semelhança destas frases, outros slogans apologéticos do leite e derivados deixaram de ser permitidos em países como os EUA, onde a FDA (Food and Drug Aministration), que regula o labelling dos produtos, proibiu as empresas produtoras de lacticínios de colocarem nas embalagens qualquer publicidade referente às vantagens destes alimentos. De acordo com as suas guidelines, é obrigatório corroborar as frases publicitárias com factos concretos e credíveis – nem todos os indivíduos estão em risco de desenvolver osteoporose, e não está provado que a deficiente ingestão de cálcio seja o único ou principal móbil epidemiológico da doença. The “Milk Mustache” Ads Are All Wet.

Não abordando aqui, evidentemente, o natural aleitamento materno, a “filia” do leite vem desde longe. Ocorre-nos lembrar as famílias criadoras de gado, para quem o leite e a carne representavam um dos poucos recursos alimentares, passando pela troca e venda locais. A própria imagem que temos do leite parece estar em continuidade com a vinculação materno-infantil, de tal modo que não nos ocorre em primeira instância duvidar ou repudiar o “líquido branco” (pelo contrário, o copo de leite ao deitar soa-nos a confortante). Daqui à explosão industrial na produção de lacticínios vai um passo, e o elemento-chave nesta transição é, como sabemos, o conhecimento de que o leite tem um elevado teor em cálcio. Eureka!

[hr]

Agora algum pensamento paralelo. Somos os mamíferos que prolongam o consumo lácteo até mais tarde (“toda a vida”), e seguramente os únicos que consomem avidamente leite de outros mamíferos. O leite bovino é 3 a 4 vezes mais rico em proteínas do que o humano, e 6 a 10 vezes mais pobre em ácidos gordos essenciais (sobretudo ácido linoleico). Esta diferença justifica-se pela necessidade de um bezerro em aumentar a sua massa muscular (em média 37 Kg nas primeiras semanas, por oposição aos 1 a 2 Kg no bebé humano, no mesmo período), enquanto que no ser humano é essencialmente necessário assegurar o desenvolvimento neurológico. Aquilo a que chamamos de intolerância à lactose (dissacárido presente no leite), e que ocorre de forma mais ou menos marcada em diferentes grupos étnicos (de ascendência asiática – 90 a 100%, de ascendência africana – 65 a 70%, de ascendência hispânica ou italiana – 50 a 70%, de ascendência caucasiana – 10%.), decorre de um decréscimo natural da enzima digestiva lactase na infância. O consumo mantido após este período estimula uma produção da enzima até fases mais tardias, esbatendo o seu natural decrescimento, se o organismo tiver essa capacidade. Pensando deste modo, talvez não nos ocorra categorizar o síndrome de intolerância à lactose como uma deficiência enzimática, mas como uma inevitabilidade.

Recentemente, a Harvard School of Public Health reformulou a sua roda dos alimentos, e uma das novidades é a recomendação para a restrição do consumo de leite. “Calcium is important. But milk isn’t the only, or even best, source”. As razões apresentadas são diversas, e decorrem de estudos que relacionam o consumo de leite com cancro da próstata (“Health Professionals Follow-up Study”, segundo o qual homens que consumam 2 ou mais copos de leite por dia têm o dobro do risco de desenvolver este tipo de cancro) ou cancro do ovário.

healthy-eating-plate-700

São também referidos o elevado teor em gorduras saturadas e em vitamina A (que em níveis elevados pode paradoxalmente promover a osteoporose). As recomendações sublinham, assim, o consumo de fontes alternativas de cálcio (vegetais de folha verde como bróculos, couve, excepção feita aos espinafres, que apesar do teor significativo em cálcio cursam com uma absorção deste mineral inibida pela grande concentração de oxalatos), a prática de exercício físico, a manutenção de níveis adequados de vitaminas D e K (melhorando a absorção e fixação de cálcio nos ossos).

Um dos argumentos que é geralmente apontado quanto às fontes naturais de cálcio, é que apesar de se encontrar em teor idêntico ao do leite, a sua absorção não é óptima, logo a sua biodisponibilidade é insuficiente. Dados avançados pelo American Journal of Clinical Nutrition parecem, contudo, contradizer este argumento (como lembra Francisco Varatojo, do Instituto Macrobiótico Português) com dados da absorção de cálcio segundo o tipo de alimento:

  • Couve de Bruxelas – 63.8%
  • Brócolos – 52.6%
  • Rama de nabo – 51.6%
  • Couve – 50%
  • Leite de vaca – 32%

[hr]

Uma abordagem ao consumo de leite não poderá deixar de considerar ainda outros aspectos. Sabe-se que 50% do uso de antibióticos é agro-pecuário. Destes, apenas 20% servem para tratamento efectivo de doenças dos animais, e os esmagadores 80% restantes para profilaxia e promoção do crescimento. Daí se deduz o impacte tremendo no desenvolvimento de multirresistências a antibióticos, com efeitos que ultrapassam o ser humano (antibióticos com excreção no leite) e contaminam os ecossistemas. A montante disto, e para que a produção seja suficiente (leia-se excedentária) e rentável, as rações destinadas aos animais são iminentemente químicas, com recurso a agrotóxicos, que como sabemos permanecem no ciclo e têm taxas apreciáveis de acumulação (sobretudo no tecido adiposo – que dizer do consumo de carne?).

Passemos também pela imuno-alergologia. Têm sido realizados vários estudos no sentido de esclarecer um possível papel em processos inflamatórios (colites, sinusites), eventualmente por reacções cruzadas, dada a presença de alergénios no leite. Sabe-se que alguns médicos vêm recomendando a evicção de lacticínios como forma de prevenir e até abolir agudizações – com sucesso. Outros estudos investigam ainda uma possível relação entre o consumo de leite de vaca na infância e o desenvolvimento de diabetes mellitus tipo 1, possivelmente por produção de anticorpos contra a caseína (proteína presente no leite) no primeiro ano de vida, a que se segue uma reacção auto-imune contra o pâncreas. Deixamos as questões no ar.

[hr]

Contudo, a relação mais consistente e conhecida do leite parece mesmo ser com a osteoporose. Algumas correntes sugerem que dietas ricas em proteína animal (como é a dieta moderna ocidental) favorecem a osteoporose, ao contrário da proteína vegetal, visto serem acidificadoras do meio interno, interferindo no metabolismo do cálcio via aumento da sua excreção renal. A controvérsia está instalada há muito, e não há como seguir o rasto das investigações que se vão empreendendo. O estudo mais ambicioso e conhecido na área é provavelmente o The China Study, conduzido pelos cientistas norte-americanos T. Colin Campbell, PhD e Thomas M. Campbell II, MD, tendo avaliado nichos da população chinesa em larga escala, comparando o seu tipo de dieta com o tipo de doenças crónicas que desenvolviam. É, por isso, o maior estudo que se propôs a relacionar o consumo de produtos de origem animal com várias doenças crónicas. As conclusões são várias, foram publicadas em livro e a leitura crítica recomenda-se. Por agora, alguns dados provocatórios:

  • Países do Mundo com maior consumo de lacticínios per capita: Finlândia, Suécia, Estados Unidos da América, Inglaterra.
  • Países do Mundo com maiores índices de osteoporose per capita: Finlândia, Suécia, Estados Unidos da América, Inglaterra.
  • Ingestão de cálcio na China rural: metade da ingestão da população americana.
  • Fracturas ósseas na China Rural: 5 vezes menos do que na população americana.

Lido de uma assentada e sem fio condutor, são informações a mais para se processar e a posteriori avaliar o seu real peso na saúde pública. Porém, não deixa de ser surpreendente que um pouco por todo o mundo científico se vão levantando questões específicas relacionadas com o impacto da dieta na saúde, e assim mesmo assistamos a uma acalmia generalizada nas diversas entidades, e pior, na sociedade. E se nenhuma das questões aqui levantadas constituem “verdade científica”, terão pelo menos o peso válido de instituir a dúvida da próxima vez pusermos à boca um copo de leite.

heidi-klum-got-milk-01

Artigo anteriorNegociar com o Despertador
Próximo artigoNatação, Segundo Vasco Gaspar
Joana Aguiar ingressou no Mestrado Integrado em Medicina em 2008, na FCM-NOVA, onde frequenta agora o 2º ciclo de estudos. Actualmente é Directora da Revista Frontal, dinamizando a secção Sete Palmos de Testa - espaço que se quer (des)construtivo o bastante que não caiba em gavetas ou rotulações. Francamente interessada em Medicina Holística (particularmente Nutrição, Saúde Ambiental, Psicociências e Comportamento), Filosofia e Literatura, publicou pela primeira vez em 2008 um livro de Poesia, e foi agraciada em 2012 com o Prémio Literário José Luís Peixoto - Poesia.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.