Todos sabemos que ver um filme tanto nos pode levar às lágrimas, como nos dar dores de barriga de tanto rir. E se esse efeito fosse utilizado de forma terapêutica? E se ver um filme pudesse ter o mesmo valor que um fármaco? O que é que a Sétima Arte pode trazer de novo à Medicina? A FRONTAL explica-te o conceito de Cinematerapia, que poderá revolucionar, não só a interação médico-doente, como mudar o modo como prescrições do foro psicológico são feitas.
Durante o iMed Conference 7.0, o psiquiatra Dr. Ahmed Hankir apresentou, na palestra Wounded Healer, algumas das adversidades por que passam profissionais de saúde com problemas mentais. Muitos dos que assistiram a esta sessão estarão recordados de que foram feitas diversas referências ao mundo do cinema e a filmes como Pulp Fiction ou The Dark Knight Rises, com o objetivo de ilustrar momentos de loucura. O Dr. Hankir referiu que acreditava que o cinema tem o poder de alterar mentalidades e que nas suas consultas recorre a Cinematerapia.
A Cinematerapia é definida como a utilização de filmes com uma finalidade terapêutica. O objetivo é levar os doentes a confrontarem-se com realidades semelhantes às suas, como por exemplo crises de identidade ou incapacidade de estabelecer relações harmoniosas com quem os rodeia.
Uma breve história da Cinematerapia
O cinema e a psiquiatria têm relações estreitas. Das Kabinett des Dr. Caligari, exibido em 1920, foi um dos primeiros filmes da história do cinema a retratar a psiquiatria. Por outro lado, desde há cerca de 60 anos que se fazem estudos sobre aplicações práticas que a sétima arte poderá ter enquanto forma de psicoterapia. O primeiro artigo cientifico sobre esta matéria de que há registo, The use of Films in Psychoterapy é da autoria do psiquiatra espanhol Miguel Prados e foi publicado em 1951 no American Journal of Orthopsychiatry.
A Teoria Psicanalítica do Cinema, nascida no final dos anos 70, procura analisar filmes segundo uma perspetiva baseada na psicanálise. Para esta corrente de pensamento, o cinema é uma arte particularmente envolvente, porque nos coloca na posição de observador omnipotente de um dado acontecimento, o que contribui para facilitar a nossa identificação com um dada personagem ou situação.
O processo de identificação depende, por um lado, de nós próprios, já que há uma tendência para sentirmos empatia por uma personagem semelhante a nós, ou que experiência algo com que facilmente nos identificamos, devido à nossa história e às nossas vivências. Por outro lado, a sétima arte sabe manipular. É o caso da exposição de emoções nos filmes que levam ao fenómeno de mirroring, ou seja, sentirmo-nos alegres ou tristes ao testemunharmos cenas de alegria ou tristeza.
Além disso, a música ou o tipo de plano utilizados são subtilezas que vão acabar por influenciar também a nossa visão do filme. Por exemplo, para transmitir que uma personagem é autoritária ou poderosa, em regra esta deve ser filmada de baixo para cima, o que a engrandece. Pelo contrário, para demonstrar que uma personagem é frágil ou submissa esta tende a ser filmada de cima para baixo, o que a faz parecer mais pequena.
O cinema ajuda-nos a refletir com maior facilidade sobre nós próprios ou sobre a sociedade em que vivemos porque estamos numa posição confortavelmente passiva: vivemos as emoções do filme, mas não somos nós que estamos em causa. Não corremos riscos e não temos responsabilidades no que testemunhamos. Mais ainda, o cinema difere dos livros ou das peças de teatro porque o nosso olhar e a nossa empatia são focalizados para o que a câmara nos mostra. Como não dispersamos tanto, acabamos por nos envolver mais profundamente.
Aplicações Práticas da Cinematerapia
A Cinematerapia é perspetivada em duas vertentes: a terapêutica, direcionada aos doentes, e o ensino, destinada aos futuros médicos.
Na vertente terapêutica, a Cinematerapia procura levar um doente a confrontar-se com uma situação semelhante à sua, ocupando a já referida posição confortável de observador. A terapêutica pode ser pensada com o objetivo de, por exemplo, levar o doente a reconhecer que sofre de uma dada patologia ou mesmo de dar ao doente uma referência de que atitudes poderá tomar para facilitar a sua vida e/ou a sua relação com quem o rodeia.
No artigo The Portrayal of Mental Ilness in Film and its Application as a Learning Tool in Medical Education, da autoria do Dr. Ahmed Hankir e outros colaboradores, é citado o exemplo de como o filme When a Man Loves a Women, realizado por Luis Mandoki em 1994, que pode ajudar numa situação específica de conflito matrimonial. O filme retrata a história de Michel Green e a sua mulher Alice Green que vivem em S. Francisco com as duas filhas. A vida deste casal aparenta ser perfeita – contudo, na realidade, Alice é alcoólica. O filme proporciona uma visão íntima dos efeitos que a dependência do álcool pode ter em casais e nos seus filhos. É sugerido que a visualização deste filme pode ajudar a criar pontes de comunicação entre casais que passam por situações semelhantes e que já não conseguiam sentir empatia um em relação ao outro.
Dr. Hankir referiu ainda no iMed Conference 7.0 que o filme Inside Out, produzido pela Pixar e que esteve em exibição este ano, poderá ser no futuro uma ferramenta terapêutica útil no caso de crianças com autismo. O filme relata a história de Riley, uma rapariga de 11 anos que muda de cidade com os pais, deixando os seus amigos e hobbies para trás. O espectador é levado a acompanhar esta fase complicada da vida de Riley através de personagens que representam as suas emoções – Alegria, Tristeza, Repulsa, Medo e Raiva – e que habitam a sua mente. Este filme poderá portanto ajudar crianças autistas a compreender o papel importante das emoções na sua vida e nas suas interações sociais.
Há que ter, no entanto, em conta que a Cinematerapia pode ser uma espada de dois gumes. Apesar da sua visão ser bastante guiada pelo realizador, dois doentes podem ver o mesmo filme e interpretá-lo de forma completamente diferente. A escolha do filme tem de ser pois muito bem ponderada de modo a evitar consequências negativas. O filme Natural Born Killers (1994) de Oliver Stone , por exemplo, foi referido como inspiração de pelo menos dois casos de homicídio, um dos quais o Massacre de Columbine, ocorrido numa escola secundária dos Estados Unidos, em 1999, onde acabaram por falecer 13 pessoas.
A escolha de um filme para efeitos terapêuticos é, portanto, um processo complexo que exige um conhecimento aprofundado quer do filme quer do doente ao qual o filme é “prescrito”, devendo-se discutir o que é que foi assimilado após a visualização do mesmo.
O Dr. Hankir defende no artigo supramencionado que o cinema permite aos futuros médicos “caminhar nos sapatos” do doente, beneficiando de uma visão mais intimista da patologia evitando que ela seja reduzida a um conjunto de sinais e sintomas. Citou o exemplo do filme A Beautiful Mind, onde Russel Crowe desempenha o papel de um esquizofrénico.
Em 2011 foi criado em Londres o MedFest, um festival de cinema para estudantes de medicina patrocinado pela Royal College of Psychiatrists. Estudantes de medicina são convidados a assistir a uma série de filmes sobre vários temas relacionados com medicina e no fim da sessão há uma discussão sobre o tema apresentado. O MedFest de 2015 teve como tema “ Medicina Global e Civilizações” e ocorreu em vários países, incluindo Portugal, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar.
A Cinematerapia tem como grandes vantagens a elevada adesão à terapêutica, já que o cinema é uma forma de entretenimento bastante acessível e que não exige muita concentração. Além disso, ajuda a solidificar a relação médico-doente, já que o filme corresponde a uma experiência comum aos dois.
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