Episódios do antitabagismo reunidos em crónica histórica bem-humorada
Se pensas que vais ler mais um artigo sobre os malefícios do tabaco e já estás a suspirar porque os sabes de cor e salteado, desengana-te. Desta vez a FRONTAL decidiu ir mais longe; literalmente. Que fumar faz mal já todos o sabemos. Em pleno século XXI, a informação corre como o Usain Bolt nos Jogos Olímpicos: quase à velocidade da luz! Contudo, a noção do tabaco como um risco é relativamente recente, certo? Sim e não: enquanto factor de risco oncológico cientificamente comprovado, sem dúvida; mas o tabaco já era visto como um risco social e moral quando ainda era considerado uma benigna planta medicinal. Ademais, um rápido olhar pela História permite-nos observar que a legislação antitabágica dificilmente é uma temática recente.
Comungar com os deuses ou uma grande moca
As primeiras referências ao tabaco são cronologicamente imprecisas, mas, geograficamente, remetem-nos sem margem para dúvidas para a Mesoamérica. Muito se especula em torno de quando e como foi descoberto e primeiramente utilizado o tabaco, mas não há certezas. Antes do período de Globalização, iniciado pelos Descobrimentos portugueses, o uso do tabaco estava restrito ao continente americano. Nestas longitudes, as tradições indígenas evoluíram durante séculos incorporando o tabaco como factor integrante de um meio biopsicossocial; aqui os fumadores não tinham que ir fumar para a rua.
Aquando dos primeiros contactos com o Velho Mundo, o tabaco era utilizado como substância recreativa, como alfaia litúrgica em rituais elaborados, como meio de comunhão com o metafísico (pois claro…) e até, imagine-se, como moeda de troca. Afinal de contas, os prisioneiros dos filmes americanos não foram assim tão originais ao estabelecerem os cigarros como moeda, apenas repetiram o que por aquelas bandas já se fazia há séculos.
In La Espanola, when their doctors wanted to cure a sick man, they went to the place where they were to administer the smoke, and when he was thoroughly intoxicated by it, the cure was mostly effected. On returning to his senses he told a thousand stories of his having been at the council of the gods, and other high visions.
Excerto de Historia del Mundo Nuovo (1565), de Girolamo Benzoni in Tobacco; Its History, Varieties, Culture, Manufacture and Commerce (2008), de E.R. Billings.

O último grito da moda em Paris
Com o movimento de expansão ultramarina dos reinos ibéricos, várias foram as substâncias do Novo Mundo que foram exploradas pelos europeus, enxertando-se na nossa cultura hábitos que até então lhe eram estranhos, como o de beber café. Um outro foi o uso da planta do tabaco, cujo cultivo é introduzido na Europa pelos Portugueses em 1512. A aceitação inicial parece ter sido óptima – pelo menos numa perspectiva de mercado –, uma vez que 20 anos depois já existiam em Lisboa mercadores especializados no comércio do tabaco. A posterior introdução do rapé (folhas de tabaco em pó para inalar), já na segunda metade do século XVI, abriu portas a um consumo mais limpo e elegante que conquistou a aristocracia europeia.

O exemplo paradigmático é o do embaixador francês em Portugal, Jean Nicot, que em 1559 levou rapé para a corte francesa. A rainha-mãe Catarina de Médicis tornou-se num dos primeiros casos documentados de dependência; dizia que lhe curava as enxaquecas, nem mais! Até o venerável Grão-Mestre da Ordem de Malta recomendou o uso da substância a todos os seus monges. Nicot tornou-se numa celebridade e o tabaco numa das mais duradouras modas parisienses. A denominação taxonómica da planta do tabaco (Nicotiana tabacum), donde posteriormente se derivou o termo nicotina, foi uma homenagem a este embaixador Nicot. O sucesso do tabaco foi cristalizado pelas suas alegadas propriedades terapêuticas – que lhe conferiam uma aura de benignidade – e que desde o século XVI são introduzidas nos tratados e estudadas nas escolas médicas. Uma perspectiva ligeiramente diferente das aulas que hoje se ministram nas Faculdades.
A grande popularidade do tabaco conduziu ao rápido aparecimento de referências aos hábitos tabágicos nas expressões artísticas. Uma das mais precoces ocorre na peça The Woman in the Moon (1597), um drama de John Lyly, onde o tabaco é ainda referido como Erva Santa, esse potentíssimo acrescento à farmacopeia Europeia originário do mítico Novo Mundo:
Gather me balme and cooling violets
And of our holy herbe nicotian,
And bring withall pure honey from the hive
To heale the wound of my unhappy hand.
Salve-se o Mundo do novo pecado!

Delírios de um Papa febril
Este estado de graça do tabagismo emergente na centúria de Quinhentos não haveria de permanecer incontestado por muito tempo. A moda havia pegado de tal forma, que os janotas da altura, com os seus chapéus de plumas e collants pelo joelho, faziam questão de fumar em todo o lado, até, benza-os deus, na missa! Ora, pois é logo no final do século XVI, no ano da graça do senhor de 1590, que surge o primeiro édito restringindo as liberdades dos fumadores. O Papa Urbano VII é geralmente relembrado por ter tido o pontificado mais curto da História – uns meros 13 dias. Não obstante, foi do seu leito de enfermo que este Papa ditou uma bula pontifícia ameaçando de excomunhão qualquer crente que ousasse fumar nos pórticos ou no interior dos sagrados templos da Santa Madre Igreja. Terá considerado que fumos na Igreja só mesmo os dos incensórios, que tudo o mais é, na verdade, concorrência desleal. Delírios de uma mente febril pensarão com certeza os fumadores. E a morte do Papa alguns dias depois foi castigo divino na certa!

Exortações de um Rei snobe
Todavia, não seria a cátedra pontifícia a única fonte de autoridade que se iria aliar a esta moda de criticar o tabaco por razões morais. Também o poder temporal irá juntar a sua voz ao coro dos que procuram a salvação das novas gerações no século XVII, exortando-as a abjurar o vício do tabaco. Logo em 1604 é publicado o primeiro manifesto antitabágico da História: “A Counterblaste to Tobacco”, saído da pena do próprio Rei Jaime I de Inglaterra, considerando o acto de fumar uma imitação dos hábitos bárbaros e monstruosos dos indígenas americanos – à época considerados socialmente inferiores. Pergunta o Rei aos seus súbditos:
“what honour or policie can moove us to imitate the barbarous and beastly maners of the wilde, godlesse, and slavish Indians, especially in so vile and stinking a custome? (…)shall we, I say, without blushing, abase our selves so farre, as to imitate these beastly Indians, slaves to the Spaniards?”

Jaime I enumera-nos muitas das críticas ainda hoje dirigidas aos fumadores: os problemas de saúde pública e de saúde do indivíduo, a natureza suja do hábito, os custos financeiros, entre muitos outros. Uma linha argumentativa já não tão em voga nos dias de hoje é a de considerar o tabaco como uma fonte de pecado. O Rei inglês apontava aos fumadores as falhas da luxúria e do vício, condenando o tabaco como fonte de degeneração moral. Esta pérola de retórica antitabágica concluía advertindo que o fumo do tabaco era o prenúncio dos miasmas do Odioso Rio que limitava o mundo dos mortos:
“In your abuse [of Tobacco] sinning against God harming yourselves both in person and goods (…) a custom loathsome to the eye, hateful to the nose, harmful to the brain, dangerous to the lungs, and in the black stinking fume thereof nearest resembling the horrible stygian smoke of the pit that is bottomless”.
Quanta sabedoria no século XVII…
That escalated quickly!
Mais papista que um Imã!

Quanto ao século XVII, ainda a procissão vai no adro, que não só no mundo católico se condenaram os fumadores aos fogos do Inferno. Nos nossos dias, estes queixam-se do quão aborrecido é ter de sair dos seus locais de trabalho e/ou convívio para fumar um cigarro. Queixar-se-iam muito mais se vivessem no Império Otomano daquela época. O sultão Murad IV, guiado por esse bom e leal conselheiro que é o fanatismo religioso, proibiu em 1633 o consumo de álcool, café e tabaco na capital do Império: Istambul. Como a infracção a esta lei configurava sacrilégio e, assim como assim, a pena de morte era coisa banal, os fumadores eram executados sem apelo nem agravo. Os números são assustadores: eram executadas cerca de 18 pessoas por dia! Morreram milhares de súbditos otomanos condenados por recorrerem a “intoxicantes” sacrílegos. O irónico deste turvo moralismo de trazer por casa é que Murad IV morreu aos 28 anos de uma possível intoxicação alcoólica.
Turismo de saúde na Sibéria
Situação semelhante decorreu um pouco mais a Norte, na fria Rússia czarista. O reinado do Czar Miguel I Romanov marcou o fim do Tempo de Dificuldades (1598-1613) no Império Russo; mas não para os fumadores. Em 1634 foi publicada legislação antitabágica, que ainda assim era mais generosa que a do Sultão: qualquer indivíduo apanhado na posse de tabaco era presenteado com flagelações, chicotadas e uma viagem para a Sibéria (só de ida claro). Diz que os ares da Sibéria são do melhor que há para os pulmões. É o despontar do conceito de turismo de saúde. Todavia, à segunda infracção a magnanimidade do Czar era ultrapassada e os fumadores não se livravam de uma execução sumária.
Decapitações para todos!

Entre outros exemplos reveladores desta centúria de Seiscentos encontramos a proibição do consumo e do cultivo de tabaco na China por decreto imperial de 1612. A partir de 1638 a infracção a esta proibição no Império do Meio é punida com a decapitação. Esta política agressiva pretendia parar com a disseminação do consumo de ópio associado a tabaco; mistura que tornava o consumo do ópio mais barato, promovendo o crescimento exponencial do consumo de opióides a partir desta época. Da China o hábito rapidamente se estendeu a todo o Sudeste Asiático e depois ao mundo, vindo a arruinar milhões de vidas nessa espiral de autodestruição que é a toxicodependência.
Vade retro rapé!
A porventura mais caricata de todas as proibições moralizadoras do século XVII terá sido a instituída pelo Papa Urbano VIII. (Claramente um Urbano no sólio pontifício nunca augurava nada de bom para os fumadores!) Este Urbano – mais famoso pelo seu envolvimento na recantação de Galileu –, renovou a proibição imposta pelo seu antecessor, Urbano VII. O pormenor mais interessante desta nova proibição é a menção específica ao rapé. Urbano VIII proibia a qualquer bom católico a inalação de rapé, pois tal hábito predispunha as gentes a espirrar e, na omnividente sapiência de Sua Santidade, o espirro estava perigosamente próximo do êxtase sexual. Ora, parece-nos que daqui é legítimo concluir que este Papa terá, pelo menos, sido fiel ao seu voto de castidade.
Uma moral carunchosa
O século XVII foi, efectivamente, prolífico em proibições e restrições ao tabaco e aos fumadores. Esta linha moralizadora estava em consonância com o ambiente ideológico da época. Enquanto o século XVI foi a centúria das aventuras e das descobertas, do início da globalização, da experimentação e do Renascimento e o século XVIII foi a época do Iluminismo e da fermentação das correntes revolucionárias que haveriam de explodir no seu término – séculos de mudança ideológica, portanto –, o século XVII foi um período de ortodoxia, de manutenção do status quo social, mais de sofisticação do que de inovação. Este ambiente foi fortemente marcado pelas forças moralizadoras e normativas emanadas dos centros de poder, que permitiam a manutenção de uma estrutura social altamente anquilosada.
Não é permitido, mas pode-se fazer…


Paradoxalmente, era esta estratificação social que permitia que estas regras moralizadoras não se aplicassem com igual rigor a todas as classes sociais. O tabaco, particularmente o rapé, continuou a ser um hábito elegante e de luxo das classes privilegiadas. As caixinhas de rapé da época, que são autênticas peças de joalharia, aí estão para o comprovar. Os efeitos neuroquímicos da nicotina e o fenómeno psicossocial de imitação das classes privilegiadas explicam o completo falhanço destas políticas de restrição tabágica. Como já vimos, Papas, Reis, Imperadores e Sultões, todos eles tentaram travar a vaga de disseminação do tabaco no Velho Mundo. Infelizmente, opinamos nós, não o conseguiram.
[hr]
Em suma, o antitabagismo não é uma moda recente. No fundo, é uma corrente que começou como uma reacção à introdução do próprio tabaco na Europa há uns quantos séculos atrás. Newton asseveraria em 1687, nos seus Principia Mathematica, que para cada força exercida (acção) existe uma força de igual magnitude que se gera em sentido contrário (reacção). Chegados ao final do século XVII parece-nos que a acção tabágica está a levar a melhor sobre a reacção antitabágica. Será que se estabelecerá um equilíbrio digno desta 3.ª Lei de Newton ou no final haverá um vencedor?