Sala dos Músicos

The only way to get rid of a temptation is to yield to it. Resist it, and your soul grows sick with longing for the things it has forbidden to itself, with desire for what its monstrous laws have made monstrous and unlawful.

Oscar Wilde, The Picture of Dorian Grey, 1891

Capa - Cocaine

Muitos são os vícios que diariamente nos tentam, procuram e pretendem assolar a nossa fortaleza de boa moral e candura.

Um artigo meio musical e de ideias soltas, tanto para aqueles que não concordam como para aqueles que pactuam com a wildiana frase-já-quase-cliché.

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 Instruçõede leitura: 

1. Carregar no símbolo do YouTube (canto inferior direito) da playlist abaixo.

2. Ler o artigo enquanto toca a playlist numa página separada. Aconselhamos vivamente o leitor a seguir a ordem indicada na playlist, uma vez que a sequência das músicas está relacionada com a ordem dos temas deste artigo.

3. Ao longo do artigo irão surgir expressões destacadas com um número à frente entre parêntesis, correspondente ao número da música da playlist a que se refere.

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Desde drogas (7), álcool (2) até aos simples café e televisão (11); desde práticas, hábitos ou comportamentos considerados imorais, depravados ou degradantes pela sociedade até defeitos, traços ou hábitos apenas vistos como “maus” ou “pouco saudáveis”, muita coisa caberá no volumoso e generalista saco do vício, do que é vicioso (3). A começar pelas drogas, em particular pela temida e muito filmada cocaína (1).

Linha preta

Cocaína

– Primeiro estranha-se, depois entranha-se –

Como protagonista ou personagem secundária, a cocaína já fez parte de tantos filmes que seria absurdo tentar deixar aqui uma lista representativa de exemplos. Se The Godfather, Goodfellas e Pulp Fiction (“I said Goddamn!”)  são exemplos que qualquer um poderá ter em mente, será menos evidente pensar que, até no filme do atlético e ingénuo Forrest Gump, estas tiras brancas (5 e 12) conseguiram um papel de figurante.

Um dos primeiros anúncios da Coca-Cola

E sim, para quem ainda tem dúvidas, quando foi lançada, no final do século XIX, a Coca-Cola continha duas substâncias estimulantes: cocaína e cafeína extraída da noz de cola. A partir de 1904, no entanto, a empresa deixou de usar folhas frescas de coca e passou a recorrer a folhas de coca das quais já tinha sido extraída a cocaína. Contudo, por ainda temer a possível toxicidade do produto, Ricardo Jorge, na altura Director-Geral da Saúde, proibiu, em 1927, a comercialização da bebida em Portugal. E fê-lo depois de tomar conhecimento do slogan publicitário criado por Fernando Pessoa (“Primeiro estranha-se, depois entranha-se”), que Ricardo Jorge viu como sendo uma confirmação do risco de dependência face ao produto. Paradoxalmente, a bebida foi vendida nas colónias portuguesas, em Angola e Moçambique. Por outro lado, o refrigerante passou a ser comercializado no país vizinho espanhol a partir dos anos 1950. Assim, quando, em Julho de 1977, a Coca-Cola foi vendida pela primeira vez na Baixa lisboeta, já muitos tinham travado conhecimento com a bebida antes.

O que haverá a temer na cocaína? Tanto os efeitos agudos como os crónicos. Existem três fases na intoxicação aguda. Na fase I encontra-se a euforia desejada; mas, entrando nas fases II e III, já se corre o risco de sofrer convulsões generalizadas, uma encefalopatia maligna ou mesmo de entrar em fibrilhação ventricular, edema agudo do pulmão ou coma. Os efeitos crónicos, esses, dependerão em parte da via usada para o consumo. Se fumada, a cocaína poderá levar a broncoespasmo ou hemoptises. A famosa degradação ou mesmo desaparecimento da cartilagem do septo nasal são efeitos da aspiração crónica. Os efeitos psiquiátricos estão também bem documentados: dez perturbações psiquiátricas induzidas pela cocaína estão descritas no DSM-IV-TR (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition, Text Revision) e não constituem tentações (4) para ninguém.

Linha preta

Álcool

– La fée verte –

La fée verte
“La muse verte”, Albert Maignan

Não estivesse a estética musical a impor que se começasse o artigo com o tema da cocaína, este seria sem dúvida o primeiro ponto a abordar, como se percebe, por exemplo, pelo gráfico publicado por David Nutt e seus colegas no The Lancet, em Novembro de 2010. Existem bebidas intencionalmente fermentadas pelo menos desde o período Neolítico (cerca de 10 000 a.C) e as bebidas alcoólicas mais antigas poderão ter sido confeccionadas a partir de bagas e de mel. No Antigo Egipto, eram produzidas pelo menos dezassete variedades de cerveja e vinte e quatro de vinho (10). Nesta altura, o álcool era usado para fins recreacionais, nutritivos, médicos, como forma de remuneração e em rituais religiosos… sempre com apelo à moderação. Os Gregos vieram, séculos depois, reforçar esse apelo, contando com Platão, que defendia que apenas se deveria beber depois dos dezoito anos de idade. Tanto Platão como Xenofonte apreciavam os efeitos benéficos do consumo moderado de vinho sobre a saúde e mesmo o grau de felicidade, mas ambos criticavam a embriaguez, que parece ter-se tornado um problema na altura.

De entre as inúmeras bebidas alcoólicas que existem, realce-se aquela que é abordada na banda sonora deste artigo: o absinto, que, pela típica cor verde, ganhou o nome de la fée verte (a fada verde). La fée verte (13) nasceu no cantão suíço de Neuchâtel no final do século XVIII. A popularidade da bebida cresceu nos anos 1840, quando o absinto foi dado às tropas francesas para prevenir a malária e a desenteria. O gosto adquirido foi depois naturalmente trazido para casa. Era uma bebida tão requisitada em bars, bistros, cafés e cabarets que, nos anos 1860, as cinco da tarde eram a heure verte (a hora verde). Tornou-se portanto uma bebida muito popular entre o final do século XIX e o início do século XX, sobretudo entre os artistas e autores parisienses. Ernest Hemingway, Charles Baudelaire, Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, Modigliani e Picasso, van Gogh e mesmo Oscar Wilde eram todos apreciadores desta bebida muito alcoólica e durante muito tempo considerada extremamente perigosa e alucinogénica. Foi banida dos Estados Unidos e de grande parte do continente europeu no início do século XX e apenas voltou a ser produzida legalmente na Europa nos anos 1990. Hoje em dia são cerca de duzentas as marcas de absinto, produzidas numa dúzia de países diferentes, incluindo a República Checa, onde, em Praga, até gelados de absinto se pode comer!

Harm done by drugs - The Lancet
“Drug harms in the UK”, David Nutt et al,, The Lancet

Linha preta

Sex (& drugs & rock & roll) (6)

Ian Dury
Ian Dury com os seus incisivos patriotas

Ian Dury não terá sido o primeiro a repudiar uma 9-to-5 existence e a desejar um par de olhos enublados (9) pelo prazer. Muitas são as línguas com expressões hedonistas: wine, women and song; Wein, Weib und Gesang; Bacco, tabacco e Venere; naipes, mujeres y vino, mal camino… e, se se exclui desta lista a expressão equivalente portuguesa, será pela dificuldade desta autora em colocar asneiras por escrito. Fica então a expressão politicamente correcta: prostitutas e vinho verde.

No Verão de 1949, tinha este artista inglês apenas sete anos, Ian Dury contraiu poliomielite numa piscina municipal de Southend. Passou por isso os dezoito meses seguintes no Black Notley Hospital de Essex e foi depois tranferido para a Chailey Heritage Craft School and Hospital, uma instituição descrita pelo próprio fundador Grace Kimmins como “a escola pública dos aleijados”. Do tempo em que passou nesta instituição, Ian Dury guardou muito presente na memória a disciplina austera – “Chailey made me strong physically and mentally” (1999) – mas também a violência institucional e o abuso sexual:

 

Hey, hey, take me away

I hate waking up in this place

There’s nutters in here who whistle and cheer

When they’re watching a one-legged race

And a one-legged prefect gets me in bed

Makes me play with his dick

One-legged horn and he’s shouting the odds

Driving me bloody well sick.

“Hey, Hey, Take Me Away”, Laughter, 1980

Ian Dury começou a sua carreira musical com Kilburn and the High Roads, banda que formou em 1971 e se dissolveu quatro anos depois. Só com The Blockheads é que conheceu o verdadeiro sucesso. Destacaram-se com singles como “What a waste”, “Hit me with your rhythm stick”, “Reasons to be cheerful, part 3” e, claro está: “Sex & drugs & Rock & roll”. O escritor socialista David Widgery, também ele um sobrevivente da poliomielite, escreveu:

That’s why I found Ian Dury so emancipated. Suddenly there was this sex symbol who had a limp.

Sex symbol ou não, era com certeza uma personagem por vezes controversa. Em 1981, declarado pelas Nações Unidas como Ano Internacional das Pessoas Incapacitadas, Ian Dury e os seus Blockheads lançaram “Spasticus Austicus”.

Crachá para lapela

The Year of Our Disabled Lord 1981 I was getting lots of requests. I turned them all down. We had this thing called the ‘polio folio’, and we used to put them in there . . . Instead I wrote this tune called ‘Spasticus Autisticus’. I said, I’m going to put a band down the road for the year of the disabled; I’ll be Spastic and they can be the Autistics. I have [my band named the] Blockheads and that means they’re autistic anyway. And my mate goes, ‘No – Spasticus Autisticus, the [rebel] slave’. Great, I’m Spartacus. So I wrote this tune . . . [I]t wasn’t allowed to be played anywhere and people got offended by it – everybody except the spastics.

Ian Dury, 1995

Foi, de facto, um escândalo… sobretudo para os walkie talkies, para as pessoas “out there in the Normal Land” (“Spasticus Austicus”, 1981) como Dury dizia. A BBC considerou o texto da canção ofensivo – “I wibble when I piddle ‘cos my middle is a riddle” (“Spasticus Autisticus”, 1981) – e baniu-a, tal como já tinha banido o single “Sex & Drugs & Rock & roll”.

Apesar da censura, apesar da falta de publicidade, “Spasticus Austicus” marcou e foi tocada, mais de trinta anos depois de ser lançada, na cerimónia de abertura dos Jogos Paralímpicos de Londres, em 2012.

Linha preta

Notas finais e referências musicantes

Ficam, já é sabido, muitos outros vícios e temas de fora, como o do jogo, em parte retratado na “Angels at my gate” (8) dos Manfred Mann’s Earth Band. Aproveita-se aqui também para corrigir uma das primeiras frases deste artigo, que não é “meio”, mas sim inteiramente musical, inteiramente musicófilo, musicado e musicante. Posto isto e explicadas todas as subtilezas da playlist apresentada, entitulada “Cocaine”, resta apenas desejar ao leitor um resto de boa hora de música.

A playlist:

01 Eric Clapton – Cocaine

02 Gogol Bordello – Alcohol

03 Lou Reed – Vicious

04 The Temptations – Papa was a rolling stone

05 The White Stripes – My doorbell

06 Ian Dury and the Blockheads – Sex & drugs & rock & roll 

07 Ratatat – Drugs

08 Manfred Mann’s Earth Band – Angels at my gate

09 Manfred Mann’s Earth Band – Cloudy eyes

10 Oasis – Pass me down the wine

11 Blur – Coffee & TV

12 The White Stripes – One more cup of coffee

13 Kasabian – La fée verte

 

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Inês Pereira tem 24 anos, é natural de Cascais e frequentou a FCM/NMS de 2010 a 2016. Mas, antes de enveredar pela via da Medicina, deambulou durante quinze anos pelo Liceu Francês Charles Lepierre de Lisboa, onde adquiriu um gosto particular pelas línguas. Fala fluentemente português, francês, inglês e alemão (quase...). Se lhe perguntarem que língua nova se segue, ela, muito aflita, vos dirá que ainda não sabe, que ainda não se decidiu. Italiano, polaco, grego, russo, árabe...? Enquanto não opta por um (ou dois...) partido(s) linguístico(s), vai lendo, ouvindo muita música e percorrendo os festivais de cinema que puder. A Mente no seu suporte cerebral e a Filosofia são duas paixões desta pequena cabeça, narcisicamente enamorada pelo Ser Humano.

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