A Ciência Culinária Volta a Atacar

A FRONTAL está de regresso à cozinha! Desta vez, a atenção recai sobre as fiéis companheiras das sessões de cinema, as peças de fruta descascadas e os petiscos característicos da Passagem de Ano. Por isso, se queres saber porque é que as pipocas se formam a partir de uma explosão, porque é que algumas frutas se tornam castanhas se expostas ao ar e porque é que os camarões e as lagostas adquirem uma cor avermelhada quando cozinhados, estás no sítio certo.

 

Estrondosamente deliciosas

Num artigo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, uma equipa de investigadores da Universidade de Vanderbilt, nos Estados Unidos, relatou a sua descoberta, no Perú, de restos fossilizados de milho com mais de 6 mil anos. A sua análise permitiu verificar que eles seriam manipulados de modo a poderem integrar a alimentação das populações peruanas.

pipoca2De facto, as pessoas são fascinadas por pipocas há centenas de anos. Alguns nativo-americanos acreditavam na existência de um espírito em cada grão de pipoca – quando aquecido, o espírito ficaria enfurecido e acabaria por se libertar para o ar através de uma explosão. Uma explicação menos engraçada, mas mais científica, existe hoje para justificar a explosão que origina a pipoca.

Cada grão de milho contém uma pequena quantidade de água retida no seu interior, precisando de cerca de 13,5-14% de humidade para se transformar em pipoca. Quando o grão aquece, a água inicia a sua expansão, passa ao estado de vapor e altera a conformação do amido existente no interior do núcleo de cada grão de milho. Este vapor de água não pode escapar imediatamente já que a camada exterior do grão de milho para pipocas, o pericarpo, tem uma estrutura extremamente forte. No entanto, com o aumento da pressão de vapor de água no interior do grão, a resistência da sua camada exterior é vencida, o que desencadeia a famosa explosão das pipocas. Quando o pericarpo rebenta, ocorre libertação deste vapor e do amido, que arrefece imediatamente, originando a parte esponjosa e branca da pipoca, que nos é tão familiar.

A verdade é que um grão de milho pode aumentar o seu tamanho entre 40-50 vezes aquando da sua transformação em pipoca! Mas o que se passa então com aqueles grãos que não chegam a “desabrochar”? Tal pode acontecer devido ao facto da sua camada exterior estar danificada, deixando passar o vapor, ou porque os grãos estão muito secos, pelo que a água existente no seu interior não permite que se atinjam valores de pressão de vapor suficientemente altos para que o pericarpo rebente.popcorn

“Come a fruta, senão fica castanha!”

apple-browning-chemistryDecerto que qualquer mãe já terá alertado os seus filhos para este facto – e com razão! Certos frutos como a maçã, a banana, o abacate e o pêssego, e vegetais como a batata, a batata-doce e os cogumelos, possuem um acastanhamento enzimático que resulta de uma reação de oxidação de certos compostos existentes nas células destes alimentos – denominados fenóis (ex: tirosina) – com o oxigénio do ar. Esta reação é acelerada por enzimas, as polifenol-oxidases (PPOs), dando origem a quinonas, que depois formam pigmentos castanhos chamados melaninas. A velocidade de acastanhamento é, portanto, determinada pelo conteúdo em PPOs e fenóis (variável de alimento para alimento), pela presença de oxigénio e ainda pelo pH e temperatura do meio.

maçãSe aqueles frutos forem cortados com uma faca ferrugenta ou colocados num recipiente de ferro ou cobre, esta reação processa-se de uma forma ainda mais rápida. Isto ocorre porque o ferro e o cobre se comportam como enzimas que irão reagir, mas sem serem consumidas, nesta reação de oxidação (como se de catalisadores se tratassem), provocando então a coloração acastanhada. Pelo contrário, se quisermos evitar ou atrasar o acastanhamento, a melhor forma é impedir o contacto com o oxigénio, mergulhando o alimento cortado em água ou embalando-o em vácuo. Outra possibilidade é juntar ácido ascórbico (vitamina C) na forma de sumo de limão, que é um antioxidante natural, com o qual o oxigénio reage facilmente. Deste modo, evita-se que este gás esteja disponível para oxidar os fenóis. Para além disto, o ácido ascórbico consegue também baixar o valor do pH (acidificar), tornando as PPOs menos ativas e, consequentemente, o acastanhamento mais lento. Em alternativa, pode sempre colocar-se os alimentos no frigorífico, visto que a atividade das PPOs é reduzida a baixa temperatura.

bananas

E porque é que esta reação não acontece nos frutos inteiros e com casca? A explicação é simples: os fenóis e as PPOs, apesar de se encontrarem na mesma célula, mantêm-se em compartimentos diferentes. Logo, se o fruto não for cortado ou descascado, aquelas substâncias não são libertadas e não contactam entre si, o que faz com que não ocorra a reação de oxidação.

Contudo, esta reação nem sempre é indesejada. Pelo contrário, até deve ser promovida em alguns casos. São exemplos disso o desenvolvimento da cor castanha dourada das passas de uva e de ameixas e das tâmaras e figos secos ou o acastanhamento do café, do cacau e do chá.

O mistério do marisco vermelho

lagosta

Sabe-se que o marisco foi – e ainda é – uma parte valorizável da alimentação de muitos povos. Segundo um estudo espanhol da Universidade de Sevilha, à semelhança do Homo sapiens, também o homem de Neandertal comia marisco. Tal foi comprovado pelo facto de terem sido encontradas não só conchas de moluscos, como também ferramentas de pedra utilizadas para o consumo destes, durante escavações numa caverna em Torremolinos, Espanha. Posteriormente, um exame com carbono-14 (um isótopo radioativo natural do carbono) efetuado a estes achados, permitiu a determinação da idade dos mesmos em cerca de 150 mil anos.

Francisco Jiménez Espejo, membro do Conselho Superior de Pesquisas Científicas da Universidade de Sevilha, afirma que «Muitos cientistas argumentam que a recolha de marisco é um dos comportamentos que define o Homem moderno e, em certa medida, é uma vantagem adaptativa que permitiu que o Homo sapiens se expandisse».

astaxantina
Fórmula química estrutural da astaxantina

Portanto, desde há muito tempo que o marisco é confecionado e apreciado pela raça humana. Como tal, os grandes amantes de camarões e lagostas já se terão questionado, muito provavelmente, acerca da razão de ser da cor vermelha que estes petiscos adquirem quando cozinhados.

O cerne deste enigma reside num pigmento que eles apresentam: a astaxantina. Esta é produzida por diversas espécies de algas e de plâncton que são ingeridas por vários animais, tais como os crustáceos aquáticos, nos quais se incluem os camarões e as lagostas. Estes têm a capacidade de armazenar o pigmento na sua concha/casca.

camarões

No entanto, o animal vivo não apresenta esta cor avermelhada: as moléculas de astaxantina estão envolvidas por uma proteína que atribui uma cor acinzentada, não deixando este pigmento exprimir-se. Durante o ato da cozedura, o aumento da temperatura faz com que as cadeias da proteína mudem de forma, desnaturando-se e libertando a molécula de astaxantina – origina-se, desta forma, a cor vermelha do marisco.

É ainda curioso notar que certos animais, como o salmão, a truta ou o flamingo, que se alimentam, na maior parte das vezes, dos crustáceos que possuem a astaxantina, acabam, consequentemente, por expressar também a cor avermelhada. Como este pigmento não sofre branqueamento, aqueles animais conseguem adquirir a coloração por ele conferida!

Uma vez mais, pudemos verificar que a Ciência é indissociável de algo tão presente no nosso quotidiano como a culinária. Mas ficarão os enigmas da cozinha por aqui? Esse sim, é que é o verdadeiro enigma.

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Diogo Franco Santos é aluno do 6º ano na NOVA Medical School / Faculdade de Ciências Médicas - Universidade NOVA de Lisboa. É natural de Torres Vedras e, como tal, é amante do Carnaval mais Português de Portugal. Fez todo o seu percurso escolar na vila da Lourinhã, Capital Europeia dos Dinossauros, e ingressou no Ensino Superior em 2010, onde ficou logo colocado na sua 1ª opção: Mestrado Integrado em Medicina, na supracitada faculdade. Se não estivesse em Medicina, provavelmente estaria em Jornalismo, o que tem tudo a ver. Atualmente é membro da Direcção da FRONTAL, estando a cargo da gestão dos conteúdos online da revista. Ele é aquela pessoa que deteta os erros que mais ninguém vê, dado o seu olho de lince para a coisa. "Grammar Nazi", muitos dirão. Os seus interesses pessoais, além da própria Medicina e de tudo o que se possa relacionar com a área da Saúde, incluem Artes e Espetáculos, Literatura, Natação, História de Portugal, Viagens... e a incomparável paixão por Cães. Aliás, só lhe falta mesmo ladrar.

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