Para além dos costumes e tradições, nada é tão característico de uma população como a sua própria língua. É uma herança extremamente rica e que deve ser preservada ao longo dos tempos, apesar das inevitáveis alterações que vai sofrendo. No entanto, a problemática que aqui te trazemos é outra: será que aprender uma nova língua altera a forma como percepcionas o mundo e, em última instância, a visão que tens de ti mesmo? Acompanha-nos e descobre alguns pontos de contacto entre estas duas questões.
A linguagem, seja ela verbal ou não, desempenha um papel-chave na relação que estabelecemos com o que nos rodeia. É através da linguagem que, como indivíduos, nos apropriamos da realidade e que, como comunidade, organizamos a nossa experiência cultural e a transmitimos. Muito para além disso, é através da linguagem que estruturamos o nosso modo de pensar e de interpretar a vida em todos os seus quadrantes. Por esta razão, aprender uma língua nova exige um exercício maior do que memorizar novas fonéticas, novos significados e regras gramaticais. Obriga a assimilar conceitos que espelham uma relação particular com as coisas, obriga a aprender a olhar para as coisas de outra maneira. Debrucemo-nos sobre alguns exemplos. No castelhano, a expressão “se me cayó” (literalmente, “caiu-se-me”) traz subjacente um sentido de fatalidade muito enraizado na cultura hispânica – o sujeito assume-se passivo e exterior à acção, que é centrada no objecto. Outro exemplo é a variabilidade de formas para expressar a idade. Na cultura inglesa, a idade corresponde a algo que se é, e na afirmação “I am x years old” está implícito o inevitável processo de envelhecer. Já nós, portugueses, consideramos que a idade é um atributo que possuímos, não algo que somos – temos x anos de idade, não somos “x anos velhos”.
A língua reflecte, pois, a perspectiva que uma comunidade assumiu acerca do mundo ao longo da sua experiência histórica. Mas poderá a língua afectar não apenas a forma como percepcionamos o mundo, mas limitar o que dele percepcionamos?
Palavra e Percepção
Serge Caparos, da Universidade de Londres, explorou a relação entre a linguagem e a percepção da cor e chegou a conclusões surpreendentes no norte da Namíbia, no seio da tribo Himba. Os Himba agrupam as cores em quatro categorias: Zoozu (vermelhos, roxos, azuis e verdes escuros), Vapa (branco e amarelo), Borou (alguns verdes e azuis) e Dumbu (outros verdes, vermelhos e castanhos), mas será que vêem as cores de forma diferente da nossa, que as organizamos num número muito maior de categorias? Para responder a esta questão, Serge apresentou a vários participantes esquemas com doze quadrados, sendo que em apenas um a cor diferia da dos restantes onze. De seguida, registou o tempo que cada indivíduo demorou a identificar o quadrado diferente ou se não o conseguiu sequer identificar.
Um dos exercícios consistiu em apontar o verde distinto dentro do leque apresentado na figura 1. Contrariamente ao esperado, os Himba fizeram-no rapidamente e sem mostrar hesitação porque na sua cultura estas duas tonalidades não pertencem à mesma categoria de cor, possuindo os Himba uma palavra diferente para nomear o verde em questão. Em contrapartida, o seu desempenho na identificação do quadrado azul entre os verdes, como mostra a figura 2, foi bastante inferior.
Para nós, ocidentais, a identificação é quase imediata porque possuímos uma palavra diferente para azul e verde; porém os Himba revelaram grande dificuldade em fazer esta distinção (expressa numa maior demora na selecção da cor diferente e numa maior ocorrência de erros) porque não têm uma palavra específica para o azul, fazendo este parte da mesma categoria de cor que o verde dos outros onze quadrados. Segundo Serge, estes resultados sugerem que a forma como categorizamos e nomeamos as cores interfere efectivamente na nossa capacidade de as percepcionar.
As descobertas da psicóloga Anna Franklin, da Universidade de Surrey, fortalecem a ideia desta intrincada relação entre linguagem e processamento da cor. Através do padrão de movimento ocular, Anna analisou a reacção à cor em crianças antes e depois de aprenderem a falar e concluiu que nas primeiras é o hemisfério direito que processa as cores, ao passo que nas últimas o efeito das diferentes categorias de cor é mais forte no campo visual direito, que projecta para o hemisfério esquerdo, o hemisfério dominante para a função da linguagem na maioria dos indivíduos. Esta é, segundo a autora, uma evidência de que a aquisição da linguagem condiciona o modo como o cérebro categoriza e processa a cor e que as palavras que aprendemos podem ter um impacto na forma como captamos e estruturamos o mundo visual.
A Linguagem e a Arquitectura Cerebral
De um ponto de vista anatómico, Ellen Bialystok, psicóloga e professora na Universidade de York, em Toronto, defende que o domínio fluente de duas línguas melhora a capacidade de atenção e o desempenho cognitivo (verbal e não-verbal) por provocar alterações estruturais, nomeadamente o aumento da densidade da substância cinzenta em zonas como o núcleo caudado e o córtex cingulado anterior. Esta observação vai ao encontro das conclusões de uma equipa de investigação sueca, que verificou que o estudo intensivo de uma nova língua (por oposição ao que acontece no estudo intensivo de outras matérias) está associado ao desenvolvimento significativo de zonas cerebrais específicas – o hipocampo, o giro temporal superior ou o giro frontal médio. Parece, pois, cada vez mais evidente que as palavras estimulam e reorganizam o funcionamento e a estrutura cerebrais e, mais do que afectar a natureza subjectiva do que pensamos, afectam os processos biológicos na génese do pensamento.