A Crise Académica em Entrevista – Prof. Dr. Valentino Viegas

Desde 1987 que o Dia Nacional do Estudante se comemora a 24 de março. É um dia de celebração, luta e homenagem às dificuldades e aos obstáculos que os estudantes enfrentaram na crise académica. Por sua vez, no presente ano de 2022, comemoram-se os 60 anos da crise académica de 1962, data essencial para recordar o papel dos estudantes na luta pelo direito à Educação e à Liberdade.

Como tal, estivemos à conversa com o Professor Doutor Valentino Viegas, historiador, escritor de diversas obras e professor jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que nos deu a conhecer a sua experiência académica enquanto estudante, guiando-nos pelos eventos que mais marcaram a crise académica em Portugal. Uma entrevista repleta de memórias e ensinamentos, com uma mensagem invariavelmente atual.


FRONTAL (F) – O Professor veio para Portugal no preciso ano de 1962, com apenas 20 anos. Como jovem recém-chegado, como encarou esses tempos de opressão, em que o conformismo era a palavra de ordem?

Valentino Viegas (VV) – Cheguei a Portugal em ’62, em plena ditadura, vindo de Goa, a minha terra-natal, que tinha acabado de ser invadida pela União Indiana. Em Goa, não havia uma oposição clara e aberta ao regime de Salazar, e nós, estudantes, não fazíamos ideia do que se passava. Eu próprio era comandante de bandeira da Mocidade Portuguesa. Portanto, a nossa mentalidade estava profundamente afeta ao regime de Salazar e, quando viemos para Portugal, vínhamos convictos de que esse regime era justo.

No ano seguinte, fui prestar serviço a Angola junto das tropas portuguesas, convencido de que as colónias portuguesas pertenciam a Portugal, chegando a ser inclusive condecorado com a Cruz de Guerra. De seguida, estive em Moçambique, onde, durante 5 anos, trabalhei como bancário. Até aí, reconheço ter sido um verdadeiro privilegiado por não ter sentido na pele as tremendas dificuldades que muitos passavam cá. Tinha sido como que absorvido pelo regime. Desse modo, eu, como muitas outras pessoas, não tinha consciência da opressão que se vivia no nosso país.

Apenas quando voltei a Portugal para completar a minha licenciatura é que comecei a ter uma perceção do que era a ditadura Salazarista. Dando aulas ao ensino secundário e estudando simultaneamente na Faculdade de Letras, conheci a realidade que há muito me havia sido ocultada.

F – Houve algum acontecimento ou alguém especialmente importante para essa mudança de pensamento acerca do regime do Estado Novo?

VV – A pessoa que mais me incutiu esta consciência foi o Professor António Borges Coelho, antigo professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que inclusive me convidou para ser professor assistente na mesma faculdade, após ter terminado a licenciatura. As suas aulas era espetaculares, com uma discussão permanente. As salas enchiam-se para o ouvir e para discutir ideias.

Ele teve um impacto fundamental na minha maneira de pensar, indicando-me regularmente livros que foram moldando, indubitavelmente, o meu pensamento na altura: foi o momento em que comecei a ver a outra face da moeda.

F – Não só enquanto professor e historiador, mas também na primeira pessoa, guarda decerto muitas memórias sobre os tempos da crise académica dos anos 60. Qual é a história mais marcante de que se lembra?

VV – Sem dúvida alguma, o episódio mais marcante foi o do dia 24 de março de ’62. Toda aquela massa estudantil em frente à Reitoria, a protestar, depois de terem sido proibidas as celebrações do Dia do Estudante – é algo impossível de esquecer. Nesse dia, a Polícia de Choque foi chamada a intervir, carregando sobre centenas, senão milhares, de estudantes, uma resposta de força que só revelava a real fragilidade do regime ditatorial.

Os protestos estenderam-se durante meses. Com o tempo, as manifestações deram lugar a greves às aulas. E a estas seguiram-se as conhecidas greves de fome coletivas na cantina da Cidade Universitária, praticadas por personalidades já influentes naquele tempo, como António Correia de Campos, que viria a ser Ministro da Saúde do governo de António Guterres.

De facto, a força dos estudantes fez, a pouco e pouco, estalar o regime salazarista que, apesar de se esforçar para reforçar a resposta militar contra as manifestações destes jovens, não conseguiu lidar com este novo movimento que atraia cada vez mais a atenção do povo português. Pela primeira vez, foi feito o que, até ao momento, mais ninguém tinha ousado fazer em tais proporções: colocar em risco a supremacia de Salazar e testar os limites de um regime, que, cada vez mais, dava sinais de sua fraqueza.

É importante ainda notar que, no mês de Junho desse mesmo ano, quando as manifestações acalmaram, mais de uma dezena de alunos foi proibida de continuar a fazer o curso em Portugal, tendo de sair para o exterior de modo a completá-lo. Lembro-me, por exemplo, de José Medeiros Ferreira, na altura dirigente do movimento associativo estudantil de ’62, futuro Ministro do Negócios Estrangeiros do I Governo Constitucional, que se viu obrigado ao exílio em Genebra para terminar a licenciatura em História.

F – Com o brotar da luta dos estudantes pela liberdade e por novos ideais, deu-se o início a uma reforma académica, que veio a alterar os papéis tanto do professor como do estudante. Nesse sentido, como era o ambiente entre professores e alunos durante a ditadura, comparativamente ao pós-25 de abril?

VV – Durante o regime de Salazar, havia um grande distanciamento entre alunos e professores. O professor ficava no seu pedestal, e o aluno era obediente. Havia algumas exceções de professores que, inclusivamente, apoiavam a causa dos estudantes, mas essa não era a regra. A titulo de exemplo, relembro o Professor Lindley Cintra como um dos únicos professores que apoiaram publicamente os estudantes.

Com o 25 de abril, infelizmente nem tudo mudou, ou pelo menos não mudou de forma imediata. No entanto, tenho a destacar que uma das grandes conquistas estudantis, a qual apoiei e da qual fiz parte como docente, foi a criação de aulas noturnas para trabalhadores-estudantes. Eu ofereci-me durante muito tempo para dar aulas à noite, porque sabia que tinha de defender o direito dos estudantes.

Adicionalmente, para além da criação do estatuto de trabalhador-estudante, passou a haver a possibilidade para os alunos que não tinham o antigo 7º ano do liceu [atual 12º ano] de realizarem um exame de equivalência para o acesso ao ensino superior. Houve alunos que, apesar de só terem a 4ª classe, como eram socialmente avançados, com este exame conseguiram matricular-se nas faculdades e tirar a licenciatura.

F – Atualmente, com uma sociedade que vai tentando respirar entre pandemias e guerras, em que a censura e o ódio se perpetuam, que lições podemos retirar desta crise académica e qual o possível papel dos estudantes no presente contexto?

VV – O regime de Salazar começou a cair justamente com a greve estudantil, o que demonstrou claramente que são os jovens o motor da mudança. Os lideres governamentais têm medo de manifestações estudantis. Não de sindicatos de trabalhadores, com esses eles podem bem. Têm medo de manifestações estudantis, porque estão lá os seus próprios filhos. E quando um filho se revolta contra o próprio pai, em praça pública, é porque alguma coisa tem de mudar.

Por isso, têm de lutar pelos vossos ideais, e dar voz às vossas necessidades. Acreditem em vocês próprios, porque o futuro está em vocês. A democracia não é um dado adquirido: ganha-se e perde-se todos os dias. Se não lutarem pelos vossos direitos, ninguém o fará por vocês. O regime democrático pode ser extremamente caro, e com vários inconvenientes. No entanto, é fundamental. É o melhor regime que conhecemos até ao momento e, por isso, há que estimá-lo.


A FRONTAL agradece ao Professor Doutor Valentino Viegas a amabilidade e disponibilidade na prestação desta entrevista.

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