Cinzas de Paris – o Legado de « Paris is Burning »

  Paris is Burning é um documentário gravado entre 1985 e 1989 e exibido pela primeira vez em 1990. Realizado por Jennie Livingston, submerge-nos no mundo de balls de Harlem, Nova Iorque, protagonizado por drag queens, homens homossexuais cisgénero, mulheres transgénero e comunidades queer afro-americanas e latinas.

Na época em que foi lançado, Paris serviu como primeiro contacto com esta cultura para o mundo mainstream, com grande aclamação crítica e popularidade nos media convencionais. Hoje em dia vivemos num período histórico em que um dos reality shows mais populares mundialmente, RuPaul’s Drag Race, menciona regularmente Paris como um documentário lendário. Tudo isto se deve à acessibilidade da obra de Livingston, que, intercalando com momentos do dia a dia de drag queens, abre a porta a estas pessoas para se expressarem sobre temas complexos como raça e racismo, pobreza, orientação sexual, género e padrões de beleza.

  Paris dedica-se a entender o que é ser negro e queer numa Nova Iorque branca e hétero. Começa com a célebre frase que pauta o tom do resto do documentário:

“You have three strikes against you in this world. Every Black man has two: that they’re just Black and they’re male. But you’re Black and you’re male and you’re gay…. If you’re gonna do this, you’re gonna have to be stronger than you ever imagined.”

  É este o mundo de Pepper LaBeija, a auto-intitulada “mãe lendária da Casa de LaBeija”. Com séculos de existência, os balls caíram na obscuridão quando Crystal LaBeija, antecessora de Pepper, apontou a óbvia discriminação contra pessoas negras nesses eventos. Formaram-se assim as casas (Drag Houses), com LaBeija a ser pioneira; assumindo uma estrutura semelhante a uma família, com uma mãe (drag mother) e filhos, davam a oportunidade a pessoas que se sentiam colocadas de parte no mundo de viverem a sua fantasia e reivindicarem poder para si.

Na verdade, parte da hostilidade dirigida a pessoas LGBTQI+ na época vinha das suas próprias famílias, sendo inclusivamente expulsas das suas casas. Nas Drag Houses encontravam então uma nova estrutura de apoio mútuo, com os balls a servirem de celebração do seu novo sentido de pertença. No filme, ouvimos “you feel 100% right being gay (…) that’s not what’s like in the world”.

Venus Xtravaganza, jovem drag queen, fala sobre a sua experiência relatando o que é ser trans quando ainda faltam as palavras para o descrever. Os seus sonhos de ter uma vida que consideraria “normal”, de se sentir amada e apoiada, contrastam com os relatos de violência homofóbica e transfóbica que sofreu no passado. Mais tarde, Angie Xtravaganza, a sua Drag Mother, conta que Venus foi assassinada – nunca se sabendo por quem – vítima mortal desta violência.

A hostilidade do mundo contra estas comunidades também se expressou na abordagem à pandemia de HIV. Dezenas de milhares morreram vítimas de SIDA, a maioria LGBTQI+, imersas no discurso político da época, que marginalizava e desumanizava estas pessoas, inclusive com propostas de campos de concentração de forma a “evitar a propagação da doença”. Numa reportagem de 1993 do New York Times1 soube-se que maioria dos participantes de balls na década de 80 morreram infetados por HIV, inclusivamente uma grande parte dos participantes de Paris.

Perante a falta de investimento em soluções médicas reais para esta catástrofe de saúde pública e a privação de acesso a cuidados de saúde para estas pessoas, muitas delas com severas limitações financeiras – como consequência de anos de políticas neoliberais em que fundos comunitários eram, na realidade, canalizados para uma economia de guerras fúteis – a estrutura familiar das Casas de Drag foi a salvação da comunidade.

Formou-se uma casa transversal, a House of Latex, responsável pelo Latex Ball, um evento anual que continua até aos dias de hoje a promover comportamentos seguros e a entreajuda para o acesso a cuidados de saúde. A estrutura familiar das casas serviu como fonte determinante de apoio, carinho e ambição numa comunidade que, até à altura, se sentia colocada de parte.2

Contudo, a obra de Jennie Livingston não pode ser encarada como um objeto de observação consciente da sua parte negra. Os balls eram um espaço de expressão de queerness em comunidades negras e latinas, com historiais de segregação inerentes não só às suas orientações e expressões sexuais, mas também à sua raça e condição social. Assim, torna-se importante destacar que a realizadora é, à semelhança da maioria dos espetadores, branca e pequeno-burguesa; como tal, a lente através da qual idealizamos este mundo está tingida pelos preconceitos raciais inerentes. bell hooks, filósofa americana reputada pelos seus ensaios sobre raça, classe e género, aponta, no seu livro Black Looks3, a incapacidade da realizadora desafiar o privilégio branco presente nas instituições que documenta, acentuando os preconceitos da mesma.

De acordo com o próprio documentário, esses mesmos preconceitos estão integrados na cultura de balls de 1990. Dorian Corey, drag performer que integra os entrevistados no filme, põe em palavras o que sentia sobre a mudança geracional na cultura em que se inseria: “That is why, in the ballroom circuit, it is so obvious that if you have captured the great white way of living (…) you is a marvel”. Corey admite que as tradições do ballroom que conhecia: as performances inundadas de lantejoulas, missangas e penas; foram substituídas por peças de designer, investimentos de centenas de dólares que acentuam o desejo de opulência e poder económico semelhantes aos da comunidade branca dominante. Para estas performers, o drag prende-se não com a representação da feminilidade per se, mas sim da feminilidade branca e opulenta.

Aqui, o propósito deixa de ser a criatividade na expressão de género, e transforma-se na compra de roupa, na imitação da riqueza e domínio cultural branco. O conceito de realness aplicado ao mundo do drag, ou seja, a ideia de imitar na perfeição o género pretendido, semelhante à expressão corrente “passar”, metamorfoseia-se em white realness, tingido subconscientemente por ideias de domínio económico e político.

Esta representação de whiteness como forma estética idealizada, filtrada através da lente da realizadora, serve ainda para tornar o conteúdo mais fácil de digerir para as plateias brancas que o consomem. O foco do documentário paira sobre o espetáculo, os aspetos mais glamorosos da vida destes performers, permeado pelo culto de uma América branca.

Uma analogia pode ser feita atualmente com o programa RuPaul’s Drag Race. Aqui, o drag serve para satisfazer o voyeurismo da plateia, onde o fetichismo pela opulência e pelos ideais colonialistas brancos predominam. O programa é a apropriação televisiva de uma realidade que, por não ser a nossa, mascara o quão deturpada está. O próprio ritual do drag é destilado ao mais puro espetáculo. Tudo o resto, dos diálogos profundamente fabricados sobre temas políticos diversos aos momentos de verdadeira abertura e exposição emocional, são situações aproveitadas e editadas para nos proporcionar “boa televisão”.

No entanto, por muitos defeitos que se lhe possam apontar, não há como negar que a obra de Jennie Livingston tenha sido um marco cultural que ainda hoje mantém relevância no mundo do cinema documentário e na cultura de ballroom. Os autores deste texto urgem o leitor a não se deixar ficar pelas palavras de dois homens cis que nunca integraram a cultura descrita neste documentário. Insistimos que procurem outras opiniões, nomeadamente de vozes queer e racializadas, que melhor que ninguém nos podem informar sobre os detalhes das suas lutas contra um patriarcado absolutamente masculino e absolutamente branco. Recomenda-se a obra de bell hooks aqui abordada, Black Looks, bem como o trabalho de Marlon Riggs que, com filmes como “Tongues Untied” e “Black is… Black Ain’t”, explora temas como raça, género e sexualidade de forma fascinante. Um último destaque fica para o mundo lisboeta de drag e balls, fervilhante e em expansão, e para todas as pessoas que o representam.


Fontes

  1. Green, J. (1993) « Paris Has Burned », The New York Times, 18 de abril;
  2. Arnold, E. A., & Bailey, M. M. (2009). Constructing Home and Family: How the Ballroom Community Supports African American GLBTQ Youth in the Face of HIV/AIDS. Journal of Gay & Lesbian Social Services, 21(2-3), 171–188.
  3. hooks, b. (1992) Black Looks: Race and Representation, London: Turnaround;
  4. Faye, S. (2016) « Looking at Paris Is Burning 25 years after its release », Dazed;
  5. Clark, A. (2015) « Burning down the house: why the debate over Paris is Burning rages on », The Guardian, 24 de junho;
  6. Jones, W. (1991) « Burning Voices: Redefining “Realness” in Paris is Burning », Documentary Magazine.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.