Dossier – A História dos Movimentos Estudantis em Portugal desde 1907

No sexagésimo aniversário da crise estudantil de 1962, a FRONTAL colaborou com a Alvorada para a publicação de um dossier informativo sobre a história dos movimentos estudantis em Portugal. Com uma tradição de contestação do autoritarismo e de reivindicação de direitos, na luta por uma universidade acessível, justa e democrática, a comunidade académica bate-se há mais de cem anos contra quem afronta os seus ideais e os ideais de uma sociedade participativa e informada, contra a tirania monarquista, contra a repressão fascista e contra a guerra colonial.

Esta coletânea de textos termina com um texto de teor reivindicativo, segundo a perspetiva da Alvorada, que visa fazer um ponto de situação do atual estado das lutas estudantis em Portugal: o que nos resta ainda fazer? O que nós, estudantes de Medicina e Nutrição, podemos reivindicar? Pelo que podemos lutar?

Para recordar os esforços de gerações passadas e relembrar o marcado peso social e político da comunidade estudantil, a Alvorada organizou uma exposição com o título “História dos Movimentos Estudantis em Portugal: 1907-2022”, que podes visitar no aquário da faculdade ao longo desta semana. A Alvorada também marcará presença na manifestação organizada pela AEFCSH do dia 24 de março de 2022, Dia Nacional do Estudante, que terá lugar no Rossio a partir das 14h30 e que conta com o apoio de várias Associações de Estudantes universitárias do país e da Federação Académica de Lisboa.

NOTA: A Direção da FRONTAL gostaria ainda de notar que a Alvorada opta pela utilização de inflexões neutras em género (“-e”\”-es”) quando possível. Não sendo uma posição adotada pela FRONTAL, decidimos, em linha com o valor fundamental da liberdade de expressão, reproduzir abaixo o texto como redigido pela Alvorada.


A greve académica de 1907 – insurgência republicana contra a monarquia

Em dezembro de 1906, um grupo de estudantes contra a monarquia redigiu e publicou um extenso manifesto. Nele, João Franco, então Presidente do Conselho de Ministros, é apelidado “ditador”, “megalómano” e “ignorante”, sendo apontado um único caminho: “eliminar a monarquia e fazer a república”.

Passados dois meses, entre 27 e 28 de Fevereiro, José Eugénio Dias Ferreira, republicano e estudante de Direito da Universidade de Coimbra discute a sua tese de doutoramento, dedicada a Teófilo Braga, conhecido ideólogo republicano. Na sessão, ao júri “desagradava-lhes o seu feitio independente, (…) arreceavam-se de que um dia [professor] da faculdade ele não se adaptasse ao improgressivo sistema universitário e revolucionasse com ideias novas o ensino do Direito”.  O resultado, já antecipado pela comunidade estudantil, foi unânime, reprovação. 

A reprovação leva ao irromper de um protesto de estudantes que entoavam apelos por “cursos livres e uma universidade nova”, não ficando por aí. Nessa mesma noite, a Academia de Coimbra determina uma greve às aulas, aprovando uma moção que indica que “protesta contra a injustiça flagrante desta decisão [a reprovação] (…) e toma estes factos como a declaração mais solene do carácter improgressivo e autoritário da Universidade”.

Pinto Quartim, participante nesta greve académica, viria a dizer: “[e]s estudantes vendo nessa reprovação a revelação do carácter obsoleto e autocrático da Universidade, tomaram aquele facto como pretexto para um protesto contra a organização e o ensino do velho estabelecimento de instrução”.

Assim, no dia 1 de Março de 1907, a Universidade de Coimbra amanhece em boicote às aulas e ações de protesto que pediam, entre outras exigências: cursos livres, abolição do foro académico e um ensino mais racional e científico e menos mnemónico. Em resposta, o reitor ordena o encerramento da universidade.

Mantendo-se em greve, os grupos de estudantes apresentam ao governo uma lista de reivindicações sendo, no entanto, recebidos com intransigência. Entretanto, o movimento havia-se espalhado pelo país levando a que jornais académicos como O Século alcançassem tiragens inéditas.

 

A 1 de Abril, é conhecido o acórdão disciplinar que o Conselho da Universidade fez recair sobre 17 estudantes acusações de “agentes criminosos” e responsabilidade pelos protestos. Destes, 7 receberiam penas de expulsão de 1 a 2 anos. A greve, ainda assim, mantinha-se.

O governo decide utilizar a perda do ano letivo, quer por faltas quer por impossibilidade de realização de exames, como forma de demover grevistas, o que, em parte, funciona, mantendo-se apenas cerca de 150 estudantes em greve aquando da 1ª época de exames. Estus estudantes, apelidados de “intransigentes”, apenas viriam a quebrar o boicote no dia 26 de Agosto, quando a expulsão dos 7 alunes foi alterada para repreensões.

Era o fim da greve académica de 1907, mas a iniciação ideológica e política de importantes figuras, que o futuro revelaria como personalidades marcantes da Primeira República, era já uma realidade incontornável.


A crise académica de 1958-62 e a luta pelas organizações académicas democráticas e livres

No fim da década de 50, mais precisamente no ano de 1958, surge o decreto 40.900 e a comunidade estudantil acorda inconformada. Este decreto prometia assegurar o fim da autonomia universitária; o Estado Novo era agora capaz de intervir nos pareceres das associações de estudantes e dos seus órgãos.

A vida académica nos quatro anos seguintes decorre sem qualquer aplicação do decreto, decreto cuja existência por si só era uma forma de intimidação. Em 1962, a ameaça é cumprida, o decreto é aplicado e as comemorações alusivas ao Dia de Estudante são proibidas. Perante esta proibição, a comunidade estudantil vê-se obrigada a rebelar-se e o primeiro episódio de confronto entre um grupo de estudantes e as forças policiais surge com a ocupação da cantina da Universidade Clássica de Lisboa por um grupo estudantil.

Nesse mesmo ano planeia-se a realização do primeiro Encontro Nacional de Estudantes em Coimbra no dia 9 de março. O governo proíbe a sua realização e a polícia intercepta os autocarros encarregues de levar estudantes de Lisboa e do Porto para a cidade anfitriã. Apesar dos inúmeros obstáculos, o evento concretiza-se. São discutidos temas como o alojamento, a saúde e a pedagogia. Como fruto do primeiro Encontro Nacional de Estudantes, surge o Secretariado Nacional de Estudantes (SNEPE). O dia 24 de março aproxima-se e a comemoração do Dia de Estudante é ainda desautorizada. A Academia de Lisboa, posto isto, decreta a realização de uma greve de protesto com o apoio da Academia de Coimbra, mas mais uma vez o protesto é violentamente reprimido pelas autoridades.

Face à desobediência académica, o Governo ordena um processo disciplinar contra os dirigentes das associações académicas e cessa todas as atividades das mesmas. Devido à intransigência do governo e à violência exercida pelas autoridades, as academias de Lisboa e de Coimbra decretam então, em união, luto académico.

Entre maio e junho de 1962, docentes das Universidades e intelectuais abraçam os protestos estudantis e exigem o fim da repressão, mas o governo continua a responder com irredutibilidade. A crise académica de 62 incita o despertar para a atividade política da comunidade estudantil. Este acender de rastilho vem a espelhar-se, anos mais tarde, no 25 de abril de 1974.


A crise académica de 1969 e a oposição à guerra e à ditadura fascista

No seguimento da crise académica de 1962, envoltos numa Universidade fechada e elitista e sob o jugo do regime fascista e da guerra colonial, estudantes de Coimbra anseiam por reformas efetivas no ensino superior vigente. No dia 17 de abril de 1969, o Presidente da República Américo Tomás, acompanhado do Ministro da Educação José Hermano Saraiva, do Ministro das Obras Públicas Rui Sanches e outras figuras governativas, desloca-se a Coimbra para inaugurar o Edifício das Matemáticas. À chegada são recebidos por estudantes em protesto por uma democratização do ensino superior, pela autonomia eleitoral da Associação Académica de Coimbra (AAC) e pela participação efetiva de representantes estudantis nos órgãos decisores.

Na então sala Infante D. Henrique, levanta-se e pede a palavra Alberto Martins, presidente da Direção Geral da AAC. Tomás dá a palavra não a Martins mas ao Ministro das Obras Públicas, sendo prontamente interrompido por clamores de “Queremos falar!”. A comitiva sai da sala de forma abrupta, vaiada por jovens. Es estudantes fazem-se ouvir dentro da sua Universidade, expondo sem medo as exigências por que lutavam. Começava assim a Crise Académica de 1969.

Nessa madrugada, Alberto Martins é preso e váries estudantes são alvo de repressão violenta pela PIDE. Em resposta é organizada uma manifestação pela libertação do dirigente da AAC na tarde de dia 18, que contou com a presença de 4000 estudantes, cuja força obrigou à cedência por parte da autoridade.

Invocando “ofensas ao Presidente da República”, 8 alunos destacados do Movimento Associativo são suspensos das aulas no dia 22 de Abril de 1969. Nesse mesmo dia, é convocada uma Assembleia Magna onde é reivindicado o levantamento imediato das suspensões e declarado luto académico, com uma greve às aulas com taxas de adesão próximas dos 100%.

Durante os meses seguintes foi travada uma batalha entre as forças fascistas através da repressão policial, da demagogia e da calúnia, e es estudantes que corajosamente promoveram reuniões nas Faculdades, Assembleias Magnas que atingiram um máximo de 5000 participantes, concentrações, manifestações, boicote e transformação de aulas em debates e greve às aulas. Houve também um esforço por parte da comunidade estudantil em esclarecer a população de Coimbra sobre a sua luta, as suas motivações e as ações que levavam a cabo.

O governo tenta quebrar o movimento estudantil com o encerramento da Universidade a 6 de maio, em vão. A partir de 2 de Junho, é decretada greve a exames com 86,8% de grevistas entre a comunidade estudantil. A cidade é ocupada por brigadas de choque da PSP, GNR e pela própria PIDE, com cerca de 200 detenções e dezenas de processos disciplinares com vista à dissuasão das exigências de jovens. Os confrontos atraíram mediatismo a nível nacional e solidariedade de estudantes de outras cidades, principalmente do Porto, bem como da equipa de futebol da Associação Académica de Coimbra, destacando-se a final da Taça de Portugal. 

Após uma crise fervilhante entre abril e junho, vários fatores debilitaram o ímpeto do Movimento Estudantil: as férias de verão, o encerramento da AAC, a suspensão dos seus corpos gerentes, a prisão de váries dirigentes e, em outubro, a incorporação militar de 49 proeminentes ativistas estudantis. A presença policial na Universidade manteve-se e foram proibidas Assembleias Magnas e reuniões nas faculdades, criando um fosso na coesão entre o Movimento Associativo e as massas estudantis.

As condições desfavoráveis resultaram no levantamento da greve a exames em outubro de ‘69 e uma desorganização da ação estudantil. No entanto, o protesto nunca foi parado, havendo ressurgimento dos apelos de estudantes em novembro, coincidentes com a celebração da “Tomada da Bastilha”. Exigia-se a livre eleição de delegades de curso e a reconstrução das Juntas de Alunes. As autoridades reagiram com o encerramento da Faculdade de Direito de modo a impedir uma Reunião Geral.

As tensões escalantes resultaram na demissão do Ministro da Educação, do Reitor e Vice-Reitor. O novo Reitor surge com um discurso liberalizante e a luta sustentada do Movimento Associativo permitiu importantes conquistas: arquivamento dos processos disciplinares, amnistia do presidente da AAC, retoma do controlo da AAC por estudantes e eleições livres para a mesma, direito de reunião dentro das Faculdades, possibilidade de retorno dos estudantes incorporados nas Forças Armadas.

O desejo de uma Universidade democrática continuava por cumprir, destacando-se o episódio de confrontos violentos entre alunes e polícia a 9 de Maio de 1970, num protesto contra uma peça de teatro da organização pró-regime OTEC.


A luta contra as propinas nos anos 1990

Em 1991, durante o governo do então PM Cavaco Silva, iniciaram-se as conversações que acabariam por culminar na alteração do valor da propina, pondo fim à simbólica quantia de 1 conto e 200 escudos/ano (cerca de 6€), estabelecido há quase 50 anos. A intenção não passou despercebida, sendo alvo de contestação pelos estudantes que gritavam “Não pagamos”, frase que se tornou símbolo desta luta. As fortes contestações fariam cair 2 ministros em 3 anos.

Apesar da forte objeção estudantil, em 92 o parlamento aprova a Lei 20/92 ou “Lei das Propinas”, catalisando protestos académicos durante todo o decorrer da década de 90. Seguiram-se manifestações que contaram com representação de associações de estudantes de todo o país, protestando contra o aumento das propinas e exigindo um ensino superior verdadeiramente público.

Em ‘93, o dia de estudante levou ao corte do trânsito em vários pontos de Lisboa devido a uma manifestação convocada pela Associação Académica de Lisboa. A manifestação iniciou-se junto ao ministério, com milhares de estudantes a protestar contra o aumento das propinas. Posteriormente, juntaram-se estudantes do ensino secundário que protestavam contra a PGA (antiga prova de acesso ao ensino superior).

Não tendo conseguido evitar a implementação da propina, o movimento estudantil boicotou todas as reuniões onde se fixaria o seu valor e sobrecarregou os serviços sociais com pedidos de isenção, conseguindo adiar a sua aplicação durante todo o ano letivo de 1992/93.

Os protestos prosseguiram e a 24 de novembro foram alvos de uma carga policial enquanto tentavam colocar caixões nas escadarias da Assembleia da República. Os caixões simbolizavam a morte da Lei 20/92, muito pedida pela comunidade académica. Simultaneamente, foi “dia de gazeta” na eterna cidade de estudantes. Estudantes fecharam a universidade, pediram o fim da propina e criticaram as falhas no serviço social. Em 1994 a propina anual estabeleceu-se nos 300€, com intenção de continuar com a subida.

A mudança de governo em 1995 levou à suspensão da Lei n.º 20/92 e ao retorno dos 1200 escudos anuais, mas este alívio teria curta duração. Com a aprovação da Lei do Financiamento do Ensino Superior em 1997, a propina deixou de ser dependente do rendimento familiar, mas sim do SMN. O fim da isenção seria (teoricamente) compensado com a oferta de bolsas de estudo.

Em 24 de março de 1998, milhares de estudantes de todo o país juntaram-se em Lisboa para pedir o fim das propinas e melhores condições no ensino superior.

10 de dezembro de 1998, Lisboa


Os protestos da “Geração Rasca” nos anos 1990

15 de abril de 1993, Centro Cultural de Belém, Lisboa

“Geração Rasca”, expressão inicialmente cunhada por Vicente Jorge Silva no Jornal Público a 6 de maio de 1994, foi usada para descrever os protestos estudantis contra políticas educativas que se tinham vindo a concretizar desde 1989.  Esta foi precisamente a data em que foi introduzida a “Prova Global de Acesso”, que levou às manifestações es estudantes do ensino secundário. Mais tarde, a introdução de propinas no ensino superior em 1991 levou ao protesto des estudantes do ensino superior. 

No dia 15 de abril de 1993 no CCB, vários estudantes do ensino superior protestavam precisamente contra as propinas e mostraram o traseiro ao ministro da educação, Couto dos Santos, e pediram também a sua demissão. 

Manifestações de 5 de maio de 1994 voltaram a unir tanto estudantes do ensino superior como do ensino secundário. Nestas manifestações foi comum o recurso a escárnio e à exposição de órgãos sexuais. Jorge Silva no seu editorial fala em “A banalização da vulgaridade estimulada pela televisão e por alguns ídolos do momento — como o inenarrável Quim Barreiros — contaminou a própria linguagem da contestação? Estamos a assistir ao nascimento de uma geração rasca?”. Todos os protestos por parte des estudantes ficaram então conhecidos por esta expressão. 

Mais tarde o termo volta à ribalta, adaptado aos protestos relacionados com a crise financeira e intervenção da troika em Portugal, sob a forma da “Geração à Rasca”.


Nota de alta?

Escravo estóico, o estudante julga-se tanto mais livre quanto o tolhem todas as grilhetas da autoridade. Tal como a sua nova família, a Universidade, ele supõe-se o mais “autónomo” dos seres sociais, quando, pelo contrário, depende directa e conjuntamente dos dois mais poderosos sistemas de autoridade social: a família e o Estado. O estudante é deles o filho bem comportado e reconhecido. 

UNEF Estrasburgo, Da Miséria no Meio Estudantil, 1966

Atualmente, o quotidiano no meio académico é marcado por inúmeros espaços de contradição, nos quais os princípios de equidade e justiça que a academia afirma defender não operam. A própria constituição deste ambiente assim o garante. 

A título de exemplo, em Portugal, a aprovação dos atuais moldes do Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES, Lei n.º 62/2007) abre as portas ao autofinanciamento das instituições do ensino superior, lavando o MCTES as suas metafóricas mãos do crime do subfinanciamento do setor académico. Assim, além de contribuir para a produção científica deficitária e dependente do mecenato de terceiros, a externalização do financiamento das universidades em dito “regime fundacional”, nas quais a UNL se insere (1), opera uma transição do fio-guia da lógica pedagógica da universidade moderna para uma lógica mercantilista. Parafraseando uma popular figura política, afinal, “não há almoços grátis”.

 

Se os preços das propinas se mantêm fixos ou a acompanhar a sua tendência decrescente, a propina em si não é uma condição sine qua non para o funcionamento das instituições académicas, como a história da mesma o prova. (2) A mobilização estudantil para o combate à mesma pode ter ajudado a surtir efeito na descida do seu valor nominal, mas é fundamental, mesmo que por uma questão de coerência interna dos meios académicos atuais, que esta se torne obsoleta. No que toca às pós-graduações, a falta de regulamentação reflete-se no livre funcionamento de um mercado que, na sua ânsia de se autorregular, exclui a esmagadora maioria da população da oportunidade de acesso a diversos programas de qualificação académica, científica e profissional, com tabelas de preços impraticáveis e inacessíveis.

 

Fora, claro, dos trâmites do academicismo iluminista em que a universidade burguesa limita a sua ação direta – ou seja, regulamentos, leis, declarações, cartas de princípios e a ocasional reunião em que se finge ouvir e valorizar as queixas de estudantes -, continuam a operar muitos outros modos de exclusão e discriminação contra alguns de nós. O assédio sexual e moral no local de estágio ou no local de estudo continua a ser uma infeliz realidade, embora continuemos a combatê-lo com empenho. Em Portugal, há 32 mil mulheres e 25 mil homens a exercer a profissão médica, por exemplo (3), embora a maior preponderância destas continue a ser recebida, como há dez anos (4), com frieza e desdém, logo desde os primeiros dias de formação.

 

A esta inflexibilidade, por falta de termo ainda mais eufemístico, junta-se o flagelo da queerfobia em todas as suas formas nos cuidados de saúde e no ensino médico, da discriminação contra estudantes homossexuais, das “meras piadas” à perpetuação de mitos e factos obsoletos sobre os hábitos sexuais de casais não heterossexuais à violência dirigida a utentes trans. No mínimo, são contraproducentes; no máximo, são ações preconceituosas que violam a máxima hipocrática do primum non nocere pela exclusão da comunidade de prestação de cuidados de saúde que operam.

 

Após muitos anos colocado de parte por decisores políticos como flagelo externo à realidade portuguesa, talvez pelo próprio modo português – leia-se lusotropicalista – de ver as diferenças étnicas, o racismo finalmente é tido na consciência pública como um problema real na prestação de cuidados de saúde em Portugal. Embora dados de 2020 do inquérito do Medscape notem que 73% de profissionais inquiridos não tenham presenciado casos de racismo no sistema de saúde português (5), são relatados mais e mais casos na esfera pública de situações complexas na relação de prestação de cuidados, seja no sentido profissional-utente, seja no sentido inverso, como exemplificado pela situação do Dr. Pedro Gomes da Costa (6). Numa classe profissional em que a diversidade é um fenómeno mais recente que em muitas outras e perante uma sociedade com uma multiplicidade crescente de etnias, culturas e vivências, surgem desafios para garantir o acesso a cuidados de saúde livre de discriminação a toda a gente.

 

A necessidade de formar profissionais de Saúde capazes de lidar positivamente com a diferença, seja ela qual for, com preparação, esmero e dignidade, providenciando a utentes o melhor nível possível de cuidados e um ambiente acolhedor e salutogénico, é um dos imperativos para o ensino médico contemporâneo pelo qual lutamos. A capacitação de profissionais do futuro deve ser realizada com a diversidade em mente, não para formar robots que escondam ideias e pensamentos, carimbando todos os utentes com o mesmo selo, mas para formar elementos de uma comunidade em Saúde que consigam integrar criticamente na praxis e ars medica a necessidade de uma prestação de cuidados centrada, com efeito, no paciente.

 

Longe de esgotar uma problematização da atual situação académica e do ensino médico em Portugal em “causas” fáceis de adotar sob bandeiras progressistas de continuidade e reforma, há que criar uma componente de rutura com os maus hábitos do passado. A luta ambientalista está inserida no foco presente da luta académica, como têm exemplificado a Greve Climática Estudantil e outros movimentos de estudantes pelo ambiente. Claro está: a crítica ambientalista não se esgota em comunicados ou manifestos nos países de renda elevada; o desenvolvimento económico dos países de baixa-média renda afigura-se como principal zona de charneira entre diversos grupos ambientalistas. Contudo, a retórica de necessidade de ação imediata traz ao discurso sobre organização estudantil um importante caráter de rutura, abrindo as portas a inúmeras potencialidades. Tenhamos, portanto, coragem: a nossa participação na formação universitária torna-nos cúmplices com o próprio sistema de extração, redistribuição e emissão que criticamos e que “visamos virar”, parafraseando o filósofo, “ao contrário”. Não nos contentamos com este papel. 

 

Queremos criticar, queremos agir, queremos melhorar. Não basta acabar com palhinhas e copos de café em plástico: há que repensar completamente os modos de ensino, consumo e deslocação. Há que acabar com o fetichismo do ensino teórico presencial. (Obsoleto, mais que em conteúdo, na própria forma; não “castiguemos os prevaricadores”! (7)).

Há que orquestrar novas formas de acesso aos locais de ensino e estágio. Há que rentabilizar o património da universidade e contribuir para uma organização urbana verde e inclusiva. Há que facilitar o acesso ao ensino superior a estudantes deslocados combatendo as práticas predatórias do mercado imobiliário com a ampliação de residências estudantis. 

 

Há que investir na otimização e melhoria das infraestruturas presentes, minimizando o impacto ambiental verdadeiro de trabalhos de construção e que fica sempre excluído dos ditos cálculos de sustentabilidade apresentado a mecenas e acionistas.

 

Como pede a tradição académica, gaudeamus igitur! O mundo é a nossa casa, a universidade e o mercado os nossos pais. Enquanto somos jovens, cantemos, pois, mas sempre cientes do que nos é pedido como servidores do amanhã: que o tornemos, no consenso inalcançável da nossa infindável variedade de opiniões, suportável e real, ou que a terra nos coma os olhos quando perecermos.

Seguindo a mesma lógica do filho submisso, [o estudante] participa de todos os valores e mistificações do sistema, e em si os concentra. Aquilo que eram ilusões impostas aos assalariados torna-se ideologia interiorizada e veiculada pela massa dos futuros quadros profissionais secundários.

idem, ibidem

Fontes:

  1. – https://www.unl.pt/noticias/nova/universidade-nova-de-lisboa-passa-fundacao
  2. – Alvorada NMS, “Notas sobre a origem da propina”, documento orientador, 2021
  3. – PORDATA, Médicos: total e por sexo, dados de 2020
  4. – Andrea Cunha Freitas, Há mais mulheres do que homens na medicina. E então?, Público, 28 de maio de 2012
  5. – Leoleli Schwartz, Dilemas éticos na medicina: Portugal 2020, Medscape, 2 de junho de 2020
  6. – Joana Gorjão Henriques, O médico que levou a tribunal uma mãe que recusou ser atendida por um negro: “Foi responsabilidade social”, Público, 1 de agosto de 2021
  7. – A Direção da FRONTAL, Tomás Pessoa e Costa – Visões para o Ensino Médico, FRONTAL, 7 de fevereiro de 2022

Os textos da Alvorada NMS acima coligidos são da respetiva autoria de Rodrigo Militão; Soraia Neves; Daniel Duarte, Mariana Delgado, Mathias Mecking Weigl; Daniela Pontes; Pedro Pires; e Pedro Vilão Silva; não refletindo necessariamente a opinião da Revista FRONTAL.

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