Tomás Pessoa e Costa – Visões para o Ensino Médico

Para este mês de fevereiro, o NMS Alumni Club convidou a FRONTAL a entrevistar o Dr. Tomás Pessoa e Costa, antigo aluno da NMS | FCM, CEO e fundador da Dioscope e das Perguntas da Especialidade e antigo judoca de alta competição, tendo representado Portugal a nível internacional. Atualmente interno de Dermatologia no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, o Tomás (como preferiu que o tratássemos) falou connosco sobre o seu percurso académico e profissional, as suas perspetivas sobre o ensino médico em Portugal, o seu percurso enquanto empreendedor e as suas ideias para o futuro da prática clínica.

Foram autores desta entrevista Pedro Vilão Silva, Ana Sofia Faria e Hena Shurendra, alunos da NMS | FCM.


FRONTAL (F) – Podemos começar esta entrevista com a “pergunta da praxe” – porque escolheste a Medicina? O que te levou a fundar as Perguntas da Especialidade e a Dioscope? De onde surgem, no teu percurso académico e profissional, estes projetos?

Dr. Tomás Pessoa e Costa (TPC) – Quando entrei em Medicina, não me via como médico mas como atleta de alta competição. Era uma escolha que achava segura para conciliar com o desporto.. Na faculdade, conheci a minha mulher e apercebi-me que tinha de me esforçar muito mais para ter bons resultados no judo do que para ter boas notas. Assim, e com a perspetiva de querer uma vida familiar estável no futuro, optei por dar prioridade à Medicina.

» Fiz o Harrison com o foco em ter uma boa nota. Felizmente, consegui encontrar um bom equilíbrio entre a vida académica e a vida pessoal. Na altura, tive 100%, o que foi bom, mas percebi que tinha “tudo” para ter uma boa nota: família, amigos, namorada e o local das aulas de preparação por perto. Tinha, contudo, colegas que não tinham essas condições: viviam longe, eram pais, estavam a trabalhar, ou tentavam dedicar-se a outros projetos. Assim, surgiu-nos a ideia de criar as Perguntas da Especialidade, no fundo uma alternativa digital de preparação para o exame. A educação médica digital era uma área muito pouco explorada antes da pandemia e procurámos apostar nisso.

» Os primeiros alunos que estiveram connosco tiveram bons resultados, o que foi um bom sinal. Na altura, estávamos mais focados na simulação de exames, mas fomos evoluindo e começámos a construir uma equipa maior de pessoas à volta do projeto. Replicámos este modelo para outras áreas da Medicina (quer na formação pré-graduada, quer na formação especializada) e expandimo-nos para Itália e para o Brasil. Além disso, também damos apoio a médicos que queiram imigrar para Portugal.

» Se, em 2018, quando criámos as Perguntas da Especialidade, a educação médica digital era inovadora, em 2022, com a pandemia, já todos a praticam. Criámos também um projeto de apoio à decisão clínica [Dioscope] que penso vir a ter o mesmo percurso. No fundo, reflete aquilo pelo que passámos quando deixámos de ser estudantes e passámos a ser médicos. As guidelines e os livros dão a informação, mas no caos do Serviço de Urgências temos poucos segundos para saber como abordar um doente: o que pedir, com quem é necessário falar, o que fazer, o que é expectável? Tudo isto varia entre hospitais. Então, criámos um sistema de apoio à decisão que se adapta a cada hospital com base no que consideram ser a realidade local.

» Para mim, isto distingue este projeto das restantes soluções. Vejo muitas soluções focadas em criar conteúdo, mas nós não vamos reinventar a roda. O problema é passar da teoria à prática, e à prática local. A ideia é rapidamente replicarmos este progresso por todo o SNS: vamos conseguir ajudar os nossos colegas e os doentes. A maior parte dos doentes espera demasiado tempo; muitas vezes, pedem-se exames desnecessários. Podem ainda interpretar-se mal os resultados… Ainda me lembro de ter pedido uroculturas e ninguém me ter dito que demoravam cinco dias a sair! Bastava que alguém nos tivesse ajudado. O nosso lema tem sido assim – quando temos todos as mesmas perguntas, é altura de começar a escrever as respostas.


F – Há pouco, mencionaste a necessidade de apostar no ensino médico digital. O engenho da maior adoção deste acaba por surgir da necessidade imposta pela pandemia, mas o que poderia mudar, na tua perspetiva, para melhor, no ensino médico em Portugal?

TPC – Acho que as nossas faculdades foram “apanhadas no meio” da transição digital. As faculdades foram classicamente preparadas com grandes anfiteatros e grandes bibliotecas porque a única maneira que havia de transmitir conhecimentos era palavra a palavra, livro a livro, uma pessoa de cada vez. Assim, era necessário centralizar tudo. O melhor professor numa determinada área (de conhecimento e geográfica) era convidado para vir falar sobre um tema ao maior número de pessoas possível; por isso é que os anfiteatros eram tão grandes. No espaço de talvez 10 anos, tudo isto mudou. Já temos há alguns anos a tecnologia para ter, por exemplo, o melhor cardiologista do país a dar a mesma aula a todas as faculdades ao mesmo tempo.

» No meu ponto de vista, faria mais sentido ter os melhores a lecionar em simultâneo as componentes teóricas e ter as faculdades a focar-se naquilo que nenhum vídeo pode fazer: o contacto com o doente, a recuperação do humanismo do médico e, como falámos há pouco, a passagem da teoria à prática, com muitos estágios clínicos. A parte teórica acaba por ser igual entre faculdades, o que pode provocar ineficiências. Se uma aula é dada por um especialista na sua área, esta devia estar sempre disponível. Não me revejo num modelo de ensino teórico presencial, onde queremos “castigar os prevaricadores” que não vão às aulas. Acho que a maior parte das pessoas que falta não o faz por querer. Há alguns grupos de estudantes pouco protegidos: os trabalhadores-estudantes, os pais, os atletas de alta competição, quem mora muito longe da faculdade… Com este modelo ostracizamo-los e rotulamo-los como preguiçosos, quando provavelmente têm vidas mais difíceis do que uma pessoa com as condições todas. O que lhes é pedido é que, na teoria, saibam tanto como qualquer outro. Na prática, claro, devem estar sempre presentes.

» Todo o tempo que se passa na faculdade devia ser tempo que não se pudesse passar em outro lado. Fazem pouco sentido as barreiras ao conhecimento porque o aluno não pôde estar fisicamente presente naquele lugar àquela hora. Com o ensino à distância, isto mudou completamente. Os alunos não ficaram a saber menos. Faria assim tanto sentido marcar uma sessão Zoom de presença obrigatória para os alunos? Não seria mais fácil criar tudo antes e estabelecer uma rede entre as diversas faculdades? Por exemplo, em vez de ter dez aulas de insuficiência cardíaca a ser lecionadas por todo o país, tinha-se apenas uma. Escolhia-se um cardiologista adequado; este até poderia ser recompensado por um esforço conjunto de todas as faculdades. As faculdades não foram criadas para esta separação, mas sim porque nos era impossível ter esta rede conjunta.

» A componente prática, na minha opinião, devia ter uma carga horária superior e ser mais exigente. Não me chocaria que os alunos tivessem um horário completo de enfermaria, no qual, não sendo médicos, estariam na mesma a ajudar a equipa clínica, com trabalhos inclusivamente assistenciais. Temos de adequar o ensino à pessoa e perceber que, com os recursos que temos, de facto é possível formar médicos melhores, mais humanos, mais competentes e mais adaptados ao mundo em que vivemos.

» A memória deixou de ser importante. Há pouco, discutimos os sistemas de apoio à decisão clínica. Já não preciso de memorizar o livro, porque este está a um clique de distância. Preciso de compreender, contudo, como vou interagir com o doente e obter a informação de que preciso. Não podemos descurar o carácter humano da Medicina. Somos pessoas a falar com pessoas, não somos máquinas. Temos de parar de nos comparar diretamente contra a inteligência artificial e começar a compreender como conseguimos trabalhar com as máquinas.

» Para mim, é isto que as faculdades médicas devem começar a fazer: a formação tecnológica dos futuros médicos e a quebra de barreiras ao conhecimento. A única orientação de uma faculdade de Medicina deveria ser “como podemos formar o melhor médico possível?”. O melhor médico possível forma-se nos hospitais, junto das camas dos doentes desde o primeiro dia.


F – Passando a temáticas mais relacionadas com o empreendedorismo, gostávamos de te perguntar quando começaste a trabalhar nos teus projetos [Dioscope e Perguntas da Especialidade]? Quais foram os maiores desafios que se te interpuseram na criação destes projetos?

TPC – O maior desafio é convencer as pessoas à tua volta a juntarem-se à tua equipa. Sozinhos, não conseguimos nada. Quando passámos de apenas 3 médicos nas Perguntas da Especialidade a mais de 100 a dar aulas, demos o clique e conseguimos que o projeto se tornasse algo com muita qualidade. (Igualmente para a Dioscope.) Ter pessoas boas, competentes, em quem confias para assumir partes do projeto e trabalhar contigo, é fundamental.

» As razões pelas quais eu criei estes projetos são a resposta a outra questão. Sempre gostei de resolver problemas e sempre me fez confusão fazer algo de certo modo “porque sempre se fez assim”, sem perceber porque é que as outras formas podem estar erradas. Nas Perguntas da Especialidade, o mérito não é só meu. Tinha feito algumas perguntas enquanto estudava para o Harrison, mas havia um colega meu que queria comercializar as perguntas que ele tinha feito. Eu disse-lhe que ia montar um projeto à volta disso, portanto comprei-lhe as perguntas e demos o primeiro passo para criar uma plataforma a partir disto. Também reparei que as pessoas iam sempre mais cedo para a primeira fila das aulas de preparação para a PNA gravar o que era dito. Em vez de estarmos a tentar impedir que as pessoas gravassem, pensei que lhes devíamos dar os vídeos. Tive também a sorte de ter o apoio dos meus pais a dar a ajuda inicial para o lançamento do projeto.

» A Dioscope também surgiu, como disse, da necessidade que senti nas Urgências. Comecei a preparar documentos do Google para orientar o que teria de fazer quando encontrasse um doente com determinado quadro clínico, analisando o padrão dos doentes que vinham à Urgência. Tendo já a tração das Perguntas da Especialidade, consegui convencer, com palavras e com um projeto estruturado, as pessoas para colaborar connosco.

» Para mim, ter um grupo de pessoas competentes que coordenam e são eficazes no seu trabalho é o fundamental e, felizmente, tem sido o meu maior prazer enquanto tenho trabalhado nestes projetos.


F – Passamos, então, à nossa próxima questão, interligando o teu sucesso no universo académico e na vertente desportiva. Foste judoca na Universidade Lusófona e explicaste há pouco que a tua carreira desportiva influenciou as tuas escolhas académicas. De que modo sentes que o judo contribuiu para o teu sucesso académico e no empreendedorismo?

TPC – Em tudo! Desde muito novo fui habituado a “fazer diferente”. Enquanto os meus colegas, no verão, saíam à noite ou iam para festas, eu estava a tentar ir aos Jogos Olímpicos ou ao Campeonato da Europa ou do Mundo. No desporto de alta competição, se não deres tudo, há alguém tão bom como tu que o fará e terá melhores resultados que tu.

» Cresci com o apoio de pais fantásticos, de uma irmã fantástica e de bons amigos. Isso pode ser, às vezes, perigoso: não estás habituado ao fracasso e lidas mal com isso. O judo e o desporto tiram-te completamente essa hipótese: há alturas em que dás o teu melhor que, apesar de tudo, é insuficiente e vais ter de aceitar o fracasso. Quando cheguei ao Harrison, via gente a colapsar à porta do exame. Para mim, isso não fazia sentido. Sabia que se falhasse, vinha para o ano tentar de novo, como no judo.

» Com 16 anos, lutava contra o meu melhor amigo. Só um podia ir ao Campeonato da Europa. Dávamos o nosso máximo, mas só havia uma vaga. Para o Harrison, também não havia desculpas: era naquele dia e tínhamos de ter a melhor nota possível. Não interessava o que tinhas feito antes, mas sim a quantidade de cruzinhas que colocavas no sítio certo. Com qualquer doente, é parecido: com cada doente temos de fazer o máximo e não podemos errar. É a sua vida que está em jogo, não há desculpas. É esta a lição que retiro do desporto. Há dias em que as coisas correm bem, outros nem tanto, mas se dermos sempre o nosso melhor, temos a nossa consciência tranquila. Temos de saber lidar com o fracasso. Foram esses, além dos grandes amigos que fiz, os grandes ensinamentos que o judo me deu.


F – Para encerrar esta entrevista, vamos refletir um pouco sobre as perspetivas para o futuro. Falaste-nos muito da tua experiência e do teu percurso na criação destes projetos. O que achas que o futuro poderá reservar para o ensino médico e para o apoio à decisão clínica? Que desafios encontras para o futuro destes projetos?

TPC – Tal como atualmente ninguém põe em questão a educação médica digital, vai haver áreas na Medicina que vão deixar de ser tabu, como o apoio à decisão clínica. O que fazemos hoje é completamente arcaico: tentarmo-nos lembrar de tudo o que temos de fazer com um doente à frente dá azo a uma visão altamente enviesada. Isto é, em termos processuais, catastrófico, sobretudo quando a falta de experiência clínica não dá origem a um espetro potencial de patologias que possam estar presentes. Tentar recordar todos os pormenores de todas as doenças em segundos é humanamente impossível: os processos de apoio à decisão vão ajudar o médico a gerir o doente.

» O grande papel do médico será recolher a informação toda ao doente e manter a relação humana. Há coisas que não aparecem nos sistemas de inteligência artificial. O doente que se está a sentir mal e apenas consegue dizer que “se sente mal” não se resolve por si só: há que ter compaixão e perceber como se pode fazer algo para o aliviar. A preocupação com o doente é o mais importante, mais ainda que qualquer algoritmo. A compaixão com o doente é o que nos distingue das máquinas.

» A inteligência artificial, por exemplo, na interpretação de imagens, já é um não-assunto (são muito melhores que nós). Logo, a comparação que deve ser estabelecida não deve ser de competição, mas sim de colaboração entre homem e máquina. Nos sistemas de apoio à decisão, quando conseguirmos uniformizar a recolha de dados clínicos, a inteligência artificial poderá dar recomendações baseadas na evidência a cada equipa médica. Aliás, a inteligência que está por trás de cada algoritmo é a dos médicos, dado que são eles, em cada hospital, que determinam o que deve ser feito de forma adequada ao contexto local.

» A telemedicina também é um tabu que irá desaparecer. As consultas em Portugal têm indicações importantes no primeiro contacto com o doente, mas após este primeiro contacto o seguimento não é necessariamente presencial. Não é lógico que um doente esteja 2 anos à espera de uma consulta. A telemedicina em Portugal poderá, assim, servir como ponte para a consulta presencial ou para a resolução de quadros clínicos mais ligeiros (por exemplo, em doentes a que falte alguma literacia em Saúde). A telemonitorização mudará por completo a maneira como fazemos Medicina. Todos os nossos doentes estarão monitorizados num espaço de cinquenta (ou trinta) anos: já todos temos smartphones e já existem equipamentos capazes de monitorização de parâmetros vitais disseminados pela população. Aqui, os sistemas de apoio à decisão entram de novo em jogo para sistematizar tarefas. Um alerta poderá levar a uma resolução pelo sistema, sendo que os casos graves podem, por exemplo, ser encaminhados para um enfermeiro, e os muito graves para um médico.

» O objetivo, aqui, será racionalizar o esforço dos profissionais de saúde. Vai haver uma falta crescente de profissionais de saúde à escala global, com necessidades crescentes e custos igualmente crescentes. Portanto, vai haver necessidade de sistemas de apoio que a tornem cada vez mais eficiente e que permitam substituir algumas funções muito mecânicas de acompanhamento: se as perguntas são sempre as mesmas, a máquina pode dar parte das respostas. Quando deixam de ser as mesmas, em casos graves, os enfermeiros e os médicos devem ser acionados. Assim, a telemedicina, a telemonitorização, o apoio à decisão e a inteligência artificial (com “pés e cabeça”) são, para mim, o futuro.


 

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