No passado dia 24 de Outubro de 2014 poderá ter sido dado o primeiro passo para salvar a vida a mais de 30% dos doentes em lista de espera para transplante cardíaco. E é lógico que uma notícia desta envergadura não poderia escapar ao alcance da tua FRONTAL.
A colaboração entre o St. Vincent’s Hospital e investigadores do Victor Chang Cardiac Research Institute, duas instituições australianas (em Sydney e Darlinghurst, respetivamente), culminou na realização de dois transplantes com “corações mortos”, ou seja, órgãos desprovidos de batimentos. Se a técnica se provar eficaz, tal como a boa recuperação dos doentes transplantados indica, estaremos perante um futuro aumento no número de corações disponíveis para transplante, o que poderá vir a traduzir-se num grande impacto em termos de listas de espera para este procedimento cirúrgico.
O que é a transplantação cardíaca?
A transplantação cardíaca é uma cirurgia na qual se substitui o coração de um doente por um coração saudável de um dador-cadáver. O principal motivo para se fazer um transplante cardíaco é a insuficiência cardíaca (IC) refratária a qualquer outra terapêutica (IC “terminal”).
A transplantação cardíaca é o único procedimento curativo na IC e está indicada quando o risco de morte e a degradação da qualidade de vida são considerados inaceitáveis, sob terapêutica médica máxima e na ausência de alternativas cirúrgicas razoáveis.
No que diz respeito aos resultados desta intervenção, a sobrevida no primeiro ano pós-transplante é de 88%, a sobrevida aos 5 anos é de 75% e ao fim de 10 anos ronda os 56%.
Mais de 90% dos doentes transplantados volta à sua atividade normal, sem restrições.
O que é a Insuficiência Cardíaca?
A insuficiência cardíaca é uma síndrome clínica em que existe uma anomalia estrutural e/ou funcional que torna o coração incapaz de fornecer oxigénio aos tecidos de forma a satisfazer as suas necessidades metabólicas. Os principais sintomas desta doença são a fadiga e a dispneia, e os sinais clínicos mais frequentes são os edemas e os fervores na auscultação pulmonar.
A IC é um grande problema de saúde pública a nível mundial. A prevalência global na população adulta dos países desenvolvidos é de 2% e apresenta um padrão exponencial, uma vez que vai aumentando com a idade. Atualmente, afeta 6 a 10% dos indivíduos com mais de 65 anos e a tendência é de crescimento, parcialmente explicado pelo aumento da sobrevida dos doentes portadores de doença cardíaca, graças às terapêuticas existentes que, não sendo curativas, simplesmente atrasam a progressão da IC.
Atualmente os doentes com IC são classificados em dois grupos: IC com fração de ejeção diminuída (FEVE ≤ 40%) e IC com fração de ejeção preservada (FEVE entre 40 e 50%). A fração de ejeção não é mais do que a quantidade de sangue que é bombeada, para fora do coração, pelos ventrículos esquerdo e direito, a cada batimento cardíaco.
Sabe-se que cerca de 2/3 dos doentes com IC com FEVE diminuída são portadores de doença coronária (as artérias coronárias são vasos responsáveis pela vascularização do miocárdio). Relativamente aos doentes com IC com FEVE preservada, tem-se observado uma maior prevalência de hipertensão e fibrilhação atrial (o tipo mais comum de arritmia cardíaca), com predomínio nos indivíduos do sexo feminino e numa idade mais avançada, comparativamente aos doentes com IC com FEVE diminuída. Daqui se pode inferir que a IC constitui um importante problema de saúde pública a nível mundial.
O procedimento
Atualmente, os únicos órgãos viáveis para transplante cardíaco são corações retirados de dadores em morte cerebral, e que ainda têm capacidade de batimento. Esta condição implica a manutenção das funções vitais por intermédio de máquinas para que o coração se mantenha vivo até ao momento da remoção do órgão. A partir do momento em que o coração é retirado do dador começa a contagem decrescente para a viabilidade do órgão, que é no máximo 3 a 4 horas de tempo de isquémia (tempo fora do corpo, sem suprimento sanguíneo). Habitualmente o coração é colocado imediatamente em gelo e transportado para o recetor, sendo transplantado o mais rapidamente possível.
No entanto, esta técnica limita muito o número de corações disponíveis para transplante. De facto, deste modo são perdidos muitos órgãos, por vários motivos: ou porque são provenientes de doentes em morte cerebral e nos quais não se conseguiram assegurar as funções vitais, porque não foram transplantados a tempo, ou ainda porque foram colhidos mas acabaram por não se revelar funcionais.
A partir do momento em que o coração é retirado do dador começa a contagem decrescente para a viabilidade do órgão.
A equipa do St. Vincent’s Hospital conseguiu ressuscitar, durante pelo menos 20 minutos, dois corações que estavam “mortos”, através da utilização de uma máquina e de um fluido de preservação inovadores. Posteriormente conseguiu transplantá-los com sucesso em dois doentes com IC. Estes doentes, Michelle Gribilar de 57 anos, intervencionada há um mês, e Jan Damen de 43 anos, intervencionado há duas semanas, encontram-se atualmente em bom estado de recuperação.
O professor Bob Graham, diretor executivo do Victor Chang Institute e líder da equipa de investigadores envolvida nos transplantes, explicou a técnica utilizada, realçando a importância da ação conjunta do fluido de preservação e da máquina portátil conhecida como “heart in a box” (OCS – ex-vivo Organ Care System da TransmedicsTM).
O coração é colhido do dador após 20 minutos de morte encefálica e é confirmada a ausência de qualquer batimento. Seguidamente coloca-se o órgão no “heart in a box”, onde é submetido a uma circulação sanguínea artificial, que lhe garante o aporte de oxigénio. Desta forma, o coração recomeça, gradualmente, a bater, sendo administrado o fluido de preservação para diminuir o impacto da hipóxia (falta de oxigénio) e a máquina mantém as condições ótimas de temperatura, permitindo o seu transporte e transplante.
Este procedimento vem solucionar algumas das limitações da transplantação cardíaca: os órgãos estão “mortos” no momento da colheita; a máquina e o fluido de preservação ressuscitam o órgão e mantêm-no saudável aumentando a janela de tempo para se efetuar o transplante; e é possível ver se o órgão está ou não funcional através da observação direta dos batimentos cardíacos e das informações disponibilizadas pela máquina.
O potencial deste novo procedimento reveste-se de importância mundial. Em muitos países, de que são exemplo o Japão e o Vietname, não há transplantação cardíaca porque a morte cardíaca é a definição de morte utilizada, ao invés da morte encefálica.
Segundo o Professor Peter MacDonald, diretor da St. Vincent’s Hospital Heart Lung Transplant Unit, estes transplantes bem sucedidos representam a “maior inovação na área da transplantação cardíaca da última década”, devido às implicações profundas na redução da escassez de órgãos doados.
No ano em que se celebram o trigésimo aniversário da St. Vincent’s Heart Lung Transplant Unit e o vigésimo aniversário do Victor Chang Institute, celebra-se também uma nova esperança para quem espera por um novo coração. Poderia haver melhor “prenda de anos”?