Sabias que as bactérias intestinais podem afetar a estrutura e função cerebral? Será que esta descoberta científica poderá ser a ponte para um futuro tratamento de doenças desmielinizantes e psiquiátricas? A investigação em torno da microbiota intestinal tem aumentado substancialmente nos últimos 10 anos, evidenciando a existência de uma clara interação bidirecional entre as bactérias intestinais e o cérebro.
Tem-se postulado que alterações na composição da microbiota intestinal podem estar implicadas em inúmeras condições neurológicas e psiquiátricas, nomeadamente doenças no espectro do autismo, esquizofrenia, dor crónica, depressão e doença de Parkinson, embora esta relação permaneça ainda pouco compreendida.
Curiosamente, em estudos pré-clínicos, a manipulação desta microbiota através da administração de antibióticos e probióticos parece modular o cérebro e o comportamento. A título de exemplo, um estudo recente conduzido por Lieve Desbonnet et al demonstrou que o uso crónico de antibióticos em murganhos induziu mudanças no comportamento social e de ansiedade, associadas a alterações do metabolismo do triptofano e do sistema endócrino.
As principais experiências laboratoriais utilizaram murganhos sem microbiota que cresceram num ambiente estéril a partir do nascimento – germ-free (GF) – possibilitando a descoberta da relação entre a microbiota intestinal e a resposta normal do adulto ao stress e a influência ao nível do comportamento emocional, nomeadamente a ansiedade e comportamento social normal. Verificou-se que nos murganhos GF existe uma resposta exacerbada do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal face a situações de stress, que é revertida quando se coloniza o intestino destes animais com bifidobacterium (próbiótico). Também diferentes tipos de stress psicológico podem alterar a flora intestinal, evidenciando a interação bidirecional entre a microbiota intestinal e o cérebro.
Mas em que fase da vida dos animais pode ocorrer a reversão dos estados de stress e ansiedade? Inicialmente pensava-se que a reversibilidade do fenótipo de ansiedade em murganhos GF só seria garantida se a recolonização com microbiota intestinal acontecesse durante um período de tempo restrito – durante o início da vida/adolescência. Novas evidências mostram que a colonização em adultos também afeta os comportamentos de ansiedade.
Segundo a revisão de Emeran A. Mayer et al, um número crescente de estudos têm sido realizados no sentido de descobrir as alterações da expressão génica em determinadas regiões do cérebro de murganhos GF. Observou-se uma diminuição da expressão da proteína brain-derived neurotrophic factor (BDNF) – proteína chave envolvida na plasticidade neuronal e na cognição – no hipocampo de murganhos GF comparativamente aos murganhos colonizados com microbiota (exGF). A diminuição da sua expressão foi corroborada após administração de antibiótico.
De acordo com um estudo recente desenvolvido por investigadores da University College Cork e publicado na revista Translational Psychiatry, a flora intestinal parece afetar a estrutura e função cerebral através da regulação da mielinização – processo a partir do qual as fibras nervosas são isoladas com mielina que impede a fuga de corrente elétrica e facilita a condutância do impulso nervoso. É importante enaltecer que a mielinização é crucial para o desenvolvimento e maturação do cérebro e que disfunções neste processo podem conduzir a doenças desmielinizantes, como a esclerose múltipla.
Este grupo de investigação colocou a hipótese de que a ausência da microbiota intestinal pode resultar na alteração do transcriptoma do córtex pré-frontal, recorrendo a murganhos GF e a animais normais para o desenvolvimento da investigação. Foram identificados alguns genes envolvidos na mielinização que parecem mais ativos no córtex pré-frontal dos murganhos GF em comparação com os murganhos normais. Estes genes codificam proteínas estruturais que formam os componentes da mielina e outras envolvidas na função reguladora na formação desta substância lipídica.
Os investigadores quiseram ainda analisar a estrutura do córtex pré-frontal dissecado através de microscopia eletrónica. Esta análise ultra-estrutural mostrou alterações anatómicas concordantes com o estudo do transcriptoma – bainhas de mielina mais espessas nos murganhos GF. E mais… também descobriram que esta alteração é mais evidente em murganhos machos e que pode ser parcialmente revertida pela colonização intestinal nos murganhos GF.
Desta forma, estes investigadores sugerem que esta descoberta pode ser um ponto de partida para a implementação de novos tratamentos para a esclerose múltipla e outras doenças desmielinizantes, com base em prébióticos, próbióticos ou até mesmo transplantes fecais, os quais poderiam ser usados para ajustar a composição da flora intestinal. Atualmente, estes transplantes são utilizados para o tratamento de infeções com Clostridium Difficile.
Realmente a ciência não dorme e a cada dia que passa surpreende-nos cada vez mais. O que ERA anteriormente uma relação improvável, é hoje em dia uma relação com um futuro promissor. No entanto, como em todas as relações, nem tudo é um mar de rosas. Por um lado, é necessário compreender melhor os mecanismos envolvidos nesta interação bidirecional. Por outro, é fundamental comprovar estes dados entusiasmantes em Humanos.
Também tu acreditas nesta relação?