Só Se Pode Viver Duas Vezes

Segundas oportunidades. É perante a eminência da morte que a força para viver ganha novo fôlego.

serpente

Recentemente foi publicado um artigo na National Geographic (nº143) que alerta para os efeitos de uma substância arcaica, mas não esquecida – a Peçonha – capaz de dar uma segunda oportunidade àqueles cuja esperança desvanecia há muito.

Já imaginaram ir de férias para um sítio paradisíaco, mergulharem numa bela piscina e de repente sentirem uma picada na coxa que se transforma numa dor agonizante e progressiva? Uma dor que nos faz querer arrancar a perna para terminar com o sofrimento? Isto pode ser conseguido com nada mais, nada menos do que uma picadinha de um escorpião Centruroides sculpturatus. No entanto, o veneno injetado por este animal, para quem sofre de espondilite aquilosante, pode ser a sorte grande!

[pullquote align=”right”]O veneno injetado por este animal, para quem sofre de espondilite aquilosante, pode ser a sorte grande![/pullquote]A peçonha existente nos dentes e ferrões de diversos animais é extraordinariamente dicotómica. Tanto bloqueia a mobilização muscular (miotóxica), coagula repentinamente o sangue (hemotóxica) e paralisa subitamente a presa (neurotóxica), tornando-se a assassina mais eficiente da natureza, como, por outro lado, promete dar, em breve, origem a novos fármacos utilizados na terapia de doenças cardíacas, doenças autoimunes – como a espondilite aquilosante – dor crónica, cancro e diabetes.

“Não nos referimos apenas a algumas novidades, mas a classes inteiras de fármacos” afirma Zoltan Takacs, herpetologista e explorador da National Geographic Society. A peçonha, enquanto combinação proteica altamente complexa, atua, tal como vários venenos já conhecidos na natureza, em diferentes locais e funções do organismo. Seguindo as sábias palavras de Paracelsus – “Todas as substâncias são venenos; não existe nada que não seja veneno. Somente a dose correta diferencia o veneno do remédio” – Zoltan Takacs trabalha na construção de uma biblioteca promissora, [pullquote]Zoltan Takacs trabalha na construção de uma biblioteca promissora, não de livros ou revistas, mas de toxinas derivadas da peçonha de todos os animais que a produzem[/pullquote]não de livros ou revistas, mas de toxinas derivadas da peçonha de todos os animais que a produzem (serpentes, escorpiões, aranhas, lagartos, abelhas, polvos, peixes e búzios), no intuito de originar uma base de dados que possa ser manipulada por investigadores e utilizada para o benefício da ciência, da Medicina e da saúde de doentes com as mais diversas patologias.

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As referências mais antigas ao uso medicinal de peçonha para o tratamento de feridas datam de séc. II a. C.. Também os indígenas brasileiros aprenderam a usá-la em seu benefício para a caça, enquanto os chineses adaptaram o seu uso ao alívio da dor crónica.

[pullquote align=”right”]Em 1970 a peçonha de jararaca (…) revoluciona a farmacologia, contribuindo para a base molecular dos IECAs[/pullquote]Mas é em 1970 que a peçonha de jararaca (género de serpentes da família Viperidae), revoluciona a farmacologia, contribuindo para a base molecular dos IECAs (inibidores da enzima conversora da angiotensina). Em 1975, surge o primeiro fármaco desta categoria, o captopril, e com o tratamento eficaz de milhões de pessoas em todo o mundo fica assim comprovado que um veneno tão potente quanto a peçonha terá com certeza muito mais potencial no futuro do que se pensava.

Gila-Monster-HissingMais uma vez, a descoberta da exenatida, também derivada do veneno da saliva do Monstro-de-Gila (lagarto nativo de vários estados do sudoeste dos Estados Unidos) – foi aplicada em prol da medicina na terapia da diabetes mellitus tipo 2.

As extraordinárias propriedades da peçonha no tratamento de tumores cancerígenos poderão surgir no futuro como uma luz ao fundo do túnel para aqueles que procuram distinguir com exatidão as margens tumorais e as células mutantes das saudáveis – segundo a pesquisa efetuada por James Olson do Centro de Pesquisa Oncológica de Fred Hutchinson.

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caoDe novo com recurso à fabulosa biodiversidade animal que o nosso planeta disponibiliza, mas neste caso não no âmbito dos répteis, mas no mundo canino – segundo um artigo da revista CiênciaHoje – foi descoberto por investigadores da Universidade Autónoma de Barcelona o tratamento da diabetes mellitus tipo 1 canina através de terapia genética.

Neste estudo, foram administradas injeções nas patas traseiras dos animais, introduzindo vetores de terapia genética para expressão de insulina e de glicoquinase. Desta forma, será possível que estes genes controlem a captação de glicose e sua produção, reduzindo assim os períodos de hiper e hipoglicémia a que os indivíduos diabéticos não tratados estão sujeitos. Este estudo abre, desta forma, novas portas para o uso de terapia genética equivalente para a cura da diabetes nos humanos.

Esgotando o possível, é assim que a ciência nos mostra diariamente que os imensos recursos naturais do nosso planeta não têm limites, se os soubermos reconhecer e respeitar. Estes mesmos poderão constituir uma segunda oportunidade de vida para muitos doentes, com condições de saúde substancialmente diferentes e mais satisfatórias do que as que podemos presentemente oferecer.

Afinal, para alguns, será possível viver duas vezes.

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Ana Rute Marques é aluna do 5º ano da FCM-NOVA. Nascida em Lisboa, cresce em Corroios. Ingressa no ensino superior em 2009, na Faculdade de Ciências Médicas, no mestrado integrado de Medicina. É colaboradora da Revista FRONTAL desde o início de 2013. Os seus interesses pessoais, além da Ciência (em especial das Neurociências), abrangem o Mundo Animal, a 7ª arte, as técnicas de Defesa Pessoal e os Clássicos da Literatura Portuguesa.

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