Por acreditarmos que a formação médica seria assaz improfícua se não contemplasse uma real reflexão sobre a promoção da saúde, aqui nos propomos a trazer alguns temas que, não constando de forma clara e inequívoca de programas académicos, testam os espíritos mais aguçados.
Alguns reconhecerão, entre as muitas citações que a Hipócrates se podem atribuir, essa crepuscular intuição de que a alimentação e as interacções com o ambiente são variáveis determinantes em Saúde: “Que o teu alimento seja o teu medicamento e o teu medicamento o teu alimento”. Este é um dos lugares-comuns a que dificilmente alguém se oporá.
Parece mais difícil, contudo, uma integração de princípios tão consensuais assim na prática clínica. Não obstante todo o avanço científico-tecnológico, continuamos a hesitar da mesma forma perante certas perguntas. O que é a Saúde, hoje? E em que trâmites falamos? De uma saúde molecular, celular? Orgânica? E inorgânica? A saúde é individual ou importa que se fale de uma saúde global? Ambiental?
[pullquote]Diz-me como viveste até hoje, dir-te-ei como viverás[/pullquote]Pensemos nos médicos, nos profissionais de saúde com quem aprendemos todos os dias. Pensemos nos médicos que queremos ser. Aqui e ali nos vão alertando para a importância da responsabilidade de cada um, a bem da sustentabilidade dos Sistemas de Saúde das sociedades desenvolvidas. “De outro modo, será a rotura”. Tudo isto no contexto daquela que dizem ser a Terceira Era da Saúde Pública, em que o centro das atenções está nas doenças crónicas, fortemente dependentes de hábitos e exposições; no fundo, diz-me como viveste até hoje, dir-te-ei como viverás. E este era o momento em que poderíamos dizer, de peito cheio, que o Sistema de Saúde somos todos nós – e somos. Mas não sem a incómoda sensação de não saber o peso exacto de uma nossa decisão ou acção. Caberá a um médico a real promoção da saúde, a par do tratamento da doença, ou estamos já no campo das políticas públicas? Interesses, dúvidas e inquietações de quem persegue uma visão mais holística para o ser humano.
Em Março de 2012, Charles Godfray, professor da Universidade de Oxford, e um dos peritos escolhidos pelo Governo britânico para pensar as mudanças na alimentação e na agricultura das próximas décadas, encetava a primeira conferência do ciclo “The Future Of Food”, organizado pela Fundação Gulbenkian, referindo-se muito sucintamente ao objecto em estudo (os alimentos) como “things we put in our mouth”. Num momento histórico em que nunca se produziram tantos alimentos, em que nunca a alimentação pesou tão pouco nos gastos (15% do rendimento familiar), em que as populações vivem maioritariamente em ambientes urbanos e longe dos locais de produção, em que nos suprimos largamente de alimentos processados, a Nutrição assume seguramente um papel fundamental no pensar a Saúde. Talvez aqui nos devêssemos recordar desse constrangimento básico que entre nós, formandos em saúde, emerge em questões práticas de campo como “então mas qual é a melhor forma de me alimentar, realisticamente?”: porque decerto nos vale sempre conhecer o metabolismo dos glícidos, lípidos, proteínas, os aspectos funcionais dos oligoelementos, mas no fim de contas o que comemos são mesmo alimentos…
[pullquote]Há quem diga que a nova forma de votar é o modo como consumimos[/pullquote]Os exemplos são muitos, as oportunidades de intervenção também. Há quem diga que a nova forma de votar é o modo como consumimos. Que já não somos tão cidadãos como consumidores. Se por exemplo ao consumo ocasional de pescado, tão relevante em Portugal, se acrescentar o cuidado com a escolha do mesmo, estaremos decerto a acrescentar benefício: preferindo origem local (costeira e Atlântica) à remota, tipo
artesanal à pesca de arrasto ou aquacultura (como o salmão modo OGM). Se por outro lado consumirmos alimentos na época do ano em que naturalmente eles existem, conforme preconiza a Macrobiótica, crê-se que estes estarão no seu máximo valor nutricional e energético, sendo também assim passível de se evitar o excesso de agro-tóxicos, conservantes, indutores de maturação e outros químicos necessários, utilizados para que tenhamos o prazer de comer morangos no pico do Inverno…
Mas porque discutir problemas complexos como a Saúde não nos isenta de contradição, erro, ignorância, incapacidade de controlar as inúmeras variáveis ou falta de visão macroscópica (e convenhamos, não nos livra da hipocrisia de não vivermos conforme o que defendemos) é que o estudo e o exercício em Saúde se deseja vivido, dinâmico e multidisciplinar. Mobilidade é saúde. Política é Saúde. Ambiente é saúde. E se o idealismo já vai muito alto, refreemos o passo e pensemos do individual para o colectivo, e talvez assim a caminhada não nos pareça tão agreste.
A este propósito, deixamo-vos com as palavras de Lissa Rankin, médica ginecologista-obstetra que nos oferece a sua visão pessoal sobre a muldisciplinaridade da saúde e as possíveis raízes das doenças orgânicas.
(O autor escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.)
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