Celebra-se hoje, dois de Junho, o Dia Mundial dos Distúrbios Alimentares. Apesar de serem doenças do foro psiquiátrico, os seus sinais devem ser identificados por qualquer médico para permitir um acompanhamento adequado. Neste seguimento, o presente artigo procura desmistificar e analisar uma destas patologias: a Anorexia Nervosa.
Hoje é dia de se colocar em debate um tema que, apesar de muito mediático, não é, na minha opinião, plenamente abordado.
Hoje são colocadas em destaque doenças que nos incomodam. Incomodam porque o seu cerne não está em sinais, mas sim em sintomas que estão quase sempre ocultos. É possível que assim seja porque os doentes não reconhecem o problema, mas o mais frequente é que o neguem. É muito raro que alguém se dirija por iniciativa própria aos serviços de saúde para abordar estas questões. As pessoas mais rapidamente são trazidas à consulta por insistência dos familiares. Além disso, não há exames complementares de diagnóstico milagrosos, com sensibilidade e especificidade elevadas ou com valor preditivo negativo significativo suficiente para nos garantir que a hipótese diagnóstica já não fica em cima da mesa.
É verdade; estas doenças são manhosas. Manhosas porque se regem por princípios que estão além dos ditos quadros orgânicos. Apesar de o problema estar no cérebro, não são doenças neurológicas, mas sim da mente. Consequentemente, tanto o diagnóstico como o tratamento assumem geralmente um certo esoterismo no prisma dos médicos que não exercem psiquiatria. Assim, o objetivo deste artigo é desmistificar e diminuir a estigmatização de uma destas patologias, a Anorexia Nervosa, de modo a que os futuros médicos as possam identificar em consultas de outras especialidades e referenciar à psiquiatria.
A Anorexia Nervosa tem uma etiologia multifatorial. A genética pode conferir um risco de 58 a 88% de desenvolver a doença, sendo responsável por traços comportamentais obsessivos e alterações na homeostase do apetite. Verificou-se ainda que linkage no cromossoma 1 está associado ao subtipo restritivo e que muito possivelmente há genes do sistema 5-HT envolvidos. Os fatores sociais são também importantes e passam não só pela promoção da magreza que se faz na atualidade, como pela pressão para adquirir a imagem corporal correspondente em determinados meios. Por exemplo, modelos, atrizes, bailarinas e atletas de alta competição estão mais suscetíveis ao surgimento da doença. Adicionalmente, apesar de a prevalência no sexo feminino ser muito superior, esta diferença é menor em idades jovens. De realçar também que foi registada uma associação entre homossexualidade masculina e perturbações do comportamento alimentar. No entanto, o que demarca o início da patologia são os traços obsessivos, que direcionam a procura da magreza e a perda de peso. Desenvolve-se o terror de ganho de peso e de gordura corporal, que se pode refletir em dieta, jejum e exercício excessivos (no subtipo restritivo) ou em episódios recorrentes de compulsão alimentar purgativa (no subtipo purgativo). O valor próprio é baseado no controlo alimentar, na forma e peso corporal, o que reflete baixa autoestima e perfecionismo excessivo. Estas duas características, juntamente com a intolerância aos afetos e as dificuldades interpessoais são fatores que perpetuam o problema e dificultam a abordagem terapêutica.
Quando tinha 12 anos fui diagnosticada com o subtipo restritivo esta doença. Inicialmente as restrições alimentares não eram propositadas, mas apenas uma consequência de ansiedade extrema. No entanto, à medida que a balança foi registando valores mais baixos, fui desenvolvendo a obsessão de limitar a ingestão. Podia não controlar uma infinidade de fatores na minha vida, mas isto podia e isso dava-me uma imensa sensação de poder que se tornou viciante. Fui acompanhada semanalmente em consultas externas durante anos porque a minha recuperação foi lenta, apesar de não ter atingido um quadro orgânico grave. Todavia, posso garantir que o problema começa muito antes da manifestação ponderal. Em períodos de maior vulnerabilidade, tanto a ingestão como a restrição trazem angústia na vivência de mim própria, quer o meu peso esteja baixo ou normal. Consigo ainda hoje enumerar tudo o que ingeri no fim do dia e há muitos alimentos nos quais nem toco. Posso estar normoponderal agora, mas nada invalida que daqui a uns meses ainda o esteja. Sei-o porque tive recaídas sérias entre os 18 e os 20 anos, sendo que numa delas quase fui internada e noutra perdi oito quilos em três meses.
Pode-se dizer que este é o meu adamastor pessoal; é um titã enclausurado à espera da próxima oportunidade de liberdade. A suscetibilidade existe e, como tal, o meu trabalho é encontrar mecanismos de coping que me permitam impedir a progressão da doença. Isso implica um trabalho diário de autoanálise e de desenvolvimento de sensores aos sinais de alarme. Mas, tal como os checkpoints do ciclo celular por vezes não impedem o desenvolvimento de neoplasias, também este meu processo ocasionalmente falha e o titã fica em liberdade. A restrição leva a hipoglicemia, irritabilidade e labilidade emocional, ao mesmo tempo que a obsessão perpetua a restrição, impede a minha atividade intelectual e conduz ao isolamento progressivo.
Sim, a doença tem repercussão nas atividades da vida diária e não apenas pelas repercussões orgânicas. Tem ainda importante morbilidade e mortalidade associadas e portanto torna-se importante averiguar em consulta se os elementos dos grupos de risco terão a doença; tentando perceber não só quais os seus hábitos alimentares mas também a autopercepção corporal. Isto assume uma importância extrema, uma vez que intervenções eficazes precoces estão associadas a melhor prognóstico. É essencial que o doente compreenda que a intervenção e a cura são do seu interesse e não uma ameaça; que o médico não vai compactuar com a autodestruição causada pela doença e que as suas intenções são de preservar o bem-estar físico e psíquico do doente. A resistência à mudança é expectável, mas isso não deve impedir o encaminhamento do doente à psiquiatria, sobretudo se o IMC for inferior a 18,5 Kg/m2 ou se existir sintomatologia depressiva, obsessivo-compulsiva e/ou ansiedade extrema.