Tudo começou naquela tarde de sábado. Não, na verdade, já tinha começado – eu é que não sabia. A Matilde chegou ao banco onde eu estava sentada, no jardim de minha casa, e disse-me:
– Carol, preciso de te dizer uma coisa.
Não houve aquela pausa dramática, nem suspiros ou hesitações. Sem rodeios, disse-me:
– Tenho cancro.
Ok. O que era suposto eu dizer? Alguém faz qualquer tipo de ideia? Não posso dizer “Ah, ok. Vamos comer um gelado?”. E também não podia dizer “Oh meu Deus”, porque ela acharia que eu a estava a condenar. Também não consegui chorar. Dei-lhe um abraço e ficámos em silêncio.
Já perto da hora do jantar a Matilde foi-se embora. E eu, sem qualquer apetite, fui para o quarto pesquisar tudo e mais alguma coisa sobre o cancro, mas principalmente sobre os efeitos adversos dos tratamentos. O que assustava não era o monstro, era a luta. Só pensava nos enjoos, vómitos e na má disposição que ela iria ter. Só mais tarde me lembrei do cabelo. O cabelo ia cair e o que é que eu podia fazer para ajudar?
O meu cabelo era loiro e longo… O que podia fazer? Lembrei-me que podia doar parte à Matilde e com ele fazer uma peruca com parte dele. Porque não? Fui pesquisar.
São várias as pessoas que doam parte do cabelo. Aliás, fiquei a saber existem várias bloggers que cortaram parte do seu cabelo e o doaram, assim como existem páginas na internet como o Doar Cabelo, que explicam os passos que há que percorrer no processo de doação de cabelo.
Existem também vários projectos como DAR – um projecto de amor que sensibiliza a comunidade à doação de cabelo. O projeto DAR nasceu em Torres Vedras, com o objetivo de angariar muitas tranças de 30 cm para serem doadas à Liga Portuguesa Contra ao Cancro, para depois darem continuação para a elaboração de perucas. É para todos o maior interesse na divulgação deste projeto ou iniciativas semelhantes de forma a combatermos os preços exorbitantes das perucas de cabelo natural, sobretudo no estrangeiro.
Fiquei a saber que atualmente, em Portugal, nenhuma instituição recebe doação de cabelo, preferindo outros donativos na luta contra o cancro.
A nossa principal mensagem para todos os que se preocupam em apoiar o doente oncológico é, nesta fase, agradecer as inúmeras doações de cabelo realizadas, reforçando que, para a LPCC, esta já não é uma necessidade premente. Apelamos assim para que não nos doem cabelo. Temos, infelizmente, muitas outras áreas para onde canalizar o esforço de todos, pelo que sempre que pretendam apoiar a LPCC visitem o nosso site www.ligacontracancro.pt – no separador “Como Colaborar” – porque juntos encontraremos, certamente, forma de chegarmos ao principal objetivo: apoiar os doentes oncológicos em Portugal.
Comunicado da Liga Portuguesa Contra o Cancro, 10 de Setembro de 2015
Como doar o cabelo?
A alternativa para quem decide ter um gesto de bondade e amor para com quem sofre com a perda de imagem associada aos tratamentos anticancerígenos é enviar o donativo para fora de Portugal, nomeadamente para a associação Little Princess Trust (UK).
Sheridan House 114-116 Western Road
HOVE BN3 1DD
UK
Outra associação que aceita cabelo é a Locks of Love, nos Estados Unidos da América, cujo site apresenta informações úteis e guidelines para a doação de cabelo. Trata-se de uma organização que conta com 18 anos de existência, inicialmente dirigida pela Enfermeira Madonna Coffman, da área de Cardiologia, que tinha já bastante experiência em voluntariado na área de Palm Beach.
234 Southern Blvd.
West Palm Beach
FL 33405-2701
Ou seja, era uma boa ideia doar parte do meu cabelo. Fiquei com aquela ideia na minha cabeça a pairar durante dias.
Certo dia, estávamos nós a passear pela baixa de Lisboa quando duas senhoras ficaram a olhar para nós, num misto de desagrado e pena alheia. Não suportei aquele olhar a transbordar de preconceito. Naquele dia, a Matilde decidiu não levar a peruca, nem o turbante, nem o lenço. Decidiu pintar os lábios e os olhos e assumir a careca.
Sim, ninguém precisa de ter uma longa cabeleira para se sentir mulher, bonita e feminina. Não é o facto de ter ou não cabelo, de este ser longo ou curtinho, aos caracóis ou rapado que faz de ti mulher.
E foi exactamente isso que o meu olhar de quem “nunca viste?” transmitiu àquelas duas senhoras.
De repente, comecei a ter consciência da importância que as pessoas dão ao cabelo. O cabelo é visto como uma herança cultural, como um marcador de idade, de saúde, e de género. Isto talvez explique o porquê da alopécia (aprendi o nome técnico à conta das minhas pesquisas exaustivas) ser tão dramática nas mulheres, porque vai necessariamente implicar mudanças na forma como a própria se vê, e vai acarretar, infelizmente, um estigma social enorme. E há ainda a perda de privacidade, porque as pessoas aprenderam a associar os dois “c”, careca e cancro, e portanto a careca da Matilde é uma seta de neon para a doença dela, à qual vem agarrado ao terceiro “c”, o de coitadinha (que provoca na Matilde o revirar de olhos mais dramático do universo). A verdade é que o que a Matilde faz à cabeça dela não é da conta de ninguém, mas não é por isso que eu desvalorizo o que a quimioterapia faz à cabeça dela. Desde ter de se habituar à sua nova imagem, a encontrar formas de se sentir melhor com ela, e lidar com as respostas, muitas vezes insensíveis, dos que a rodeiam, o impacto da perda de cabelo não é de todo uma questão trivial. Nem mesmo a Matilde, que é a pessoa mais forte do universo conhecido, aguentou sem lágrimas os primeiros dias em que acordar significava sacudir os lençóis das mechas de cabelo loiro que lhe tinham caído durante a noite.
A Matilde teve sorte com os médicos dela. A alopécia é um assunto muito sensível que deve ser abordado pelos médicos aquando das consultas, deve ser feita uma preparação e ser falado com clareza e sinceridade. Preparar as pessoas para o que pode acontecer, explicar o porquê de acontecer e dar apoio relativamente a esse tópico tão sensível. Muitos estudos que vi referiam que a maioria das mulheres considera a alopécia o segundo maior “problema” dos tratamentos do cancro, logo a seguir às náuseas e vómitos.
Mas uma rapariga com cabelo rapado é menos do que uma com cabelos longos? É menos mulher? Existe uma escala de 0-100 por causa do cabelo? E a personalidade? A expressão do olhar? O sorriso? Nada disso conta? A sociedade tende a valorizar coisas supérfluas. Uma mulher é muito mais que um estereótipo, do que um corpo, do que um cabelo. É óbvio que a beleza ultrapassa esse conceito. Existem horizontes a explorar. Há tanta magia numa mulher.
O facto é que por vezes a sociedade consegue ser mesquinha. O mais impressionante é que são as mulheres as primeiras a apontar o dedo às outras mulheres. Mas quando apontas um dedo tens todos os outros a apontar para ti. E a vida é demasiadamente pequena para julgarmos e sermos preconceituosos.
É claro que podemos doar cabelo para fazer peruca. Podemos usar uma peruca artificial, usar um turbante, um lenço, um gorro, uma tiara ou assumir a carequinha. É preciso haver liberdade de escolha e cada vez menos estigma. É preciso haver união e compreensão. E, sobretudo, não haver preconceito no olhar.
Além de todos estes pensamentos que me surgiam quando pensava e estava com a Matilde, pensava nas maneiras de abordar o cancro. Esse maldito. No meio das minhas pesquisas, descobri a página Cancro com Humor da Marine Antunes e mostrei à Matilde. O projecto é excelente, e conta tudo na primeira pessoa. Não eram mentiras, coisas fantasiadas: era a pura realidade. Até pensei em comprar-lhe o livro. O blog está excelente e a Matilde adorou. Além disso, a Marine tem um projecto de BD em paralelo que retrata, com humor mais uma vez, alguns preconceitos da sociedade.
No meio das nossas conversas disse-lhe:
Tu és linda por aquilo que és e não por aquilo que tens. Sim, tu. Tu, que tens a maldita “pochete” da quimio. Tu que tens direito a mais raios que todos os outros. Sim, eu sei, são palavras duras. Mas também és dura e tens esse sorriso maravilhoso. Mas o mais importante, é seres como és. Não importa se, para vencer, ficas sem o cabelo. Não importa nada porque esse sorriso brilha mais que qualquer coisa e é esse sorriso que tens de manter até ao fim. Sim, até sempre aliás. E assim, juntas, com humor, com lágrimas, com risos, com cabelo, com cabelo partilhado, sem cabelo continuamos a lutar contra o cancro.