Investigação sobre a Frontalidade

Assino este texto de opinião num tom mais coloquial porque quero revisitá-lo nos canais adequados: nomeadamente, uma Assembleia Geral (AG) da AEFCM, na qual se possam discutir alguns dos temas e problemas que aqui levanto. Por isso, como apelo à discussão, decidi deixar aqui apenas a minha visão pessoal sobre as situações que se seguem, em vez de optar por redigir algo mais colaborativo, como foi o texto “Nota de alta?”, publicado em nome da Alvorada NMS no Dossier sobre a História dos Movimentos Estudantis em Portugal.


Choque de crânios

Mas, se calhar, é melhor voltarmos ao passado para perceber o porquê de usar esta plataforma. Tendo estado envolvido com a Frontal nos últimos três anos, é o projeto da faculdade com o qual mais laços criei e do qual mais memórias guardarei. Permitiu-me conhecer pessoas extraordinárias e desenvolver aptidões em diversas áreas.

A propósito disto, tendo a recordar-me de uma das primeiras conversas que tive com um dos fundadores desta Revista, o Dr. Roque da Cunha. Sempre muito prestável e com vontade de estar presente e envolvido neste projeto que, no fim de contas, não existiria sem si, contava-nos a história da Frontal. É uma história de representação estudantil contra um sistema unilateral, publicada de forma abreviada em 2020 na nossa 50ª Edição Impressa, numa entrevista da autoria da nossa colega Carolina Almeida. Passo a citar:

“[N]a altura, era necessário um instrumento de comunicação e afirmação da associação de estudantes (AEFCML), quer internamente, quer externamente. (…) [F]oi necessário… fazer um jornal de modo a afirmar aquilo que queríamos perante os professores. (…) Na altura, não éramos reconhecidos enquanto parceiros pela parte da direção da faculdade, pois tinha havido problemas com a direção anterior, e na academia ainda não nos conheciam. Assim, criámos um veículo de informação interna e externa ao mesmo tempo que divulgávamos as nossas posições junto dos docentes, do Ministério da Educação e do movimento associativo.” (1)

E continua, falando adiante sobre a organização das primeiras edições do Frontal (antes jornal, agora merecedor de um pronome neutro à alemã):

Recordo que, na altura [da formação do Frontal], a faculdade não tinha os instrumentos legais completamente desenvolvidos. Por exemplo, não havia Conselho Pedagógico e o Conselho Diretivo era algo que não estava acautelado pela lei. (…) O trabalho pedagógico com a faculdade era feito pelas comissões de curso (…) Consequentemente, em todos os números tínhamos duas comissões de curso que escreviam sobre os problemas que sentiam. Também falávamos sobre algumas questões de combate político-estudantil.” (2)

Discursa ainda sobre a origem do nome e do primeiro logotipo do Frontal:

Até o logotipo inicial teve de ser criado. Eram duas caveiras em choque, dois ossos frontais, para ser mais correto. “Frontal” do osso e “Frontal” porque não tínhamos receios e colocávamos as questões com frontalidade.” (3)

Frontalidade na colocação das questões. Aqui está o busílis da questão. Se nunca nos coibimos, enquanto revista académica, de colocar as questões mais importantes das Ciências da Vida na ribalta, também nunca nos coibimos, no nosso passado de revista estudantil – e há uma diferença-chave! – de colocar as questões mais importantes da miséria desse modo por palavras e abertas a toda a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa.


Repetitio est mater studiorum

Quem se ponha a olhar pelos Frontais mais antigos (de novo a adorável fluidez de género deste projeto!) constata uma mudança dupla. Não só mudou o formato da revista, passando de simples cadernos agrafados impressos na reprografia própria da (então) AEFCML – processo longo mas frutífero, como nos contam o Jorge e a Isabel! -, como também o seu conteúdo. Antes, sim, já havia edições temáticas – os cuidados paliativos e a questão da eutanásia eram tema frequente -, mas as revistas davam espaço para discussões sobre as diversas atividades recreativas, científicas, culturais e formativas da AEFCML. Colunas satíricas ou até a roçar no mordaz, debates sobre a praxe, críticas a uma reforma curricular que estava sempre ou para vir ou acabada de chegar, momentos de humor, e assim sucessivamente. Mini-álbuns fotográficos (em vez de editoriais pretensiosas que citam filósofos que morreram há quase cem anos!), segmentos sem separadores e com temas como “Chill Out”, “Aconteceu na AE”, “Sai de Casa”, e o apropriadamente denominado “Sê FRONTAL”. Houve hiatos – um, por exemplo, entre 2003 e 2005 -, houve mudanças na periodicidade: semanal, trimestral, semestral, anual?

Que mudança é essa no conteúdo? Simples: passou de uma revista estudantil, focada nas vivências quotidianas do que “Aconteceu na FCM”, para, na senda de se reinventar com a introdução do novo (agora no seu último ano de vida) plano curricular, com a construção do CEDOC e com a mecenização da UNL na senda do RJIES e do regime fundacional… se tornar numa revista mais “prestigiada”, mais académica, e focada em temas específicos, deixando o estudantil e mundano para as redes sociais, para o site e para, mais tarde, a comunicação da (agora) AEFCM. Não que isto esteja errado! Antes pelo contrário: investiu a FRONTAL, nesta altura da sua capitalização e transição para formato de revista, de pernas que lhe permitiram correr atrás do futuro e planear nova projeção, embora com um critério de exigência e necessidades de execução mais diferenciadas.

Com tudo isto quero dizer que a e o Frontal passaram por inúmeras fases e contradições na sua história, da qual se pode retirar a própria história do país nas entrelinhas, e da FCML, perdão, FCM-NOVA, aliás, NMS | FCM, ou, como querem fazer dela agora, NOVA Health, no texto. E se estas contradições não podem ser suprimidas (o tal Aufhebung hegeliano) meramente pela passagem do tempo e pelo esquecimento, a sua expressão real também não pode ser minorada em nome de “novos inícios”, como o que se avizinha nos próximos anos, começando na próxima reforma curricular – prometo, já lá vamos! – e culminando na deslisboetização da Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa para Carcavelos, Cascais.


Sê FRONTAL

Cito alguns exemplos de textos bastante FRONTAIS para ilustrar o ponto que quero fazer, que, no fim de tudo, se resume a: a Frontal sempre foi um espaço de disputa, reivindicação estudantil, e que a reinvenção da Instituição do Ensino Superior da UNL responsável pela ministração do Mestrado Integrado em Medicina não reinventa os alunos que lá se encontram matriculados e que (a meu ver, malogradamente!) pagam nela propinas.

Sim, o Professor Doutor J. A. Esperança Pina, fundador desta casa, escreveu, a jeito de conclusão da sua História, que:

“A Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa é ainda uma realidade, que se concretizou e solidificou, mas não se completou, e para a sua solidificação e adaptação ao presente século é fundamental a união de todos os seus membros.” (4)

Vamos ser, então, FRONTAIS. A união dos ditos membros é feita não só pela capacidade de trabalho conjunto, mas pela capacidade de autocrítica para delinear planos de ação e um rumo conjunto para o qual todos trabalham. Não tocando, naturalmente, na injusta exclusão hierárquica da vasta maioria destes membros, é, pois, na minha ótica, fundamental – mesmo para cumprir estes princípios seminais da nossa casa – que continue a haver espaço para a dissidência e a crítica. O facto de este texto estar agora mesmo aqui publicado prova que esse espaço existe e que o zelo e os juízos estão vivos e de saúde… bem, medíocre, mas estamos a tirar cursos de Medicina e Nutrição para os ajudar.

Passemos às citações de exemplo. Em dezembro de 2005, na Editorial da edição n.º 29 do Frontal, escrevia Miguel Araújo Abreu a propósito da corrente reforma curricular:

O estranho (ou não), no meio de tudo isto, é o facto de a única alteração no ciclo básico (básico e pré-clínico), tenha sido exactamente esta ridícula passagem de semestral para anual da cadeira de iniciação à clínica, dando a ideia que apenas os anos clínicos se têm de reformar face às novas exigências curriculares. Será que a teimosia e imutabilidade de muito poucos contribuirão para a pior formação de muitos mais!? Ou será que, mais cedo ou mais tarde, estes se aperceberão do erro que estão a cometer e, para seu próprio bem, cederão à inevitabilidade da mudança?” (5)

Presciente até certo ponto, com a chegada da Introdução à Prática Clínica ao 2.º ano dos currículos e um ano clínico precoce com contacto com a Medicina Interna e a Cirurgia Geral, mas, acima de tudo, profundamente crítico e com um tom de sinceridade combativa que se perde noutros lugares.

Em agosto de 2011, a edição n.º 39 do Frontal contava com uma mensagem do então Presidente da AEFCML, Francisco Valente, de tom bastante confrontativo face às políticas académicas então decretadas:

“Não posso igualmente deixar de referir que reconhecemos com grande desagrado o aumento da Propina Máxima para os 999,71€ para o ano lectivo 2011/12 (…). Da mesma forma, ao analisarmos a diminuição do valor da Bolsa Média na NOVA de 198,46€ para 157,86€ (no presente ano lectivo [2010/11], verificamos que os estudantes da NOVA vivem cada vez mais numa débil situação, podendo mesmo tornar-se precária.” (6)

E acrescenta:

Não poderá ser esquecido que as propinas devem ser encaradas pelas Universidades como uma fonte de rendimento direcionada especificamente para investimento nas condições de ensino e aprendizagem, verificando nós, diariamente, uma carência neste campo, não obstante a atual conjectura financeira do nosso País.” (7)

Já no ano passado, a edição n.º 51 da FRONTAL também contou com uma mensagem da Presidente da AEFCM, Joana Amado, que, cordial e elegantemente, soube colocar no papel algumas das importantes questões levantadas pela própria AEFCM à Direção da NMS | FCM durante o período da pandemia:

“Se é verdade que as Instituições adaptaram bem grande parte do ensino teórico ao modelo online, também é verdade que falharam a colmatar a falta de prática clínica. Não é aceitável a redução drástica da nossa prática clínica: apenas numa segunda fase desta crise conseguimos voltar, parcialmente e longe do ideal, a ter contacto físico com doentes. Atenção, não me tomem por ingrata ou por pessoa que nada compreende! O mundo está em constante mudança e a adaptação é uma arte que temos de saber dominar. Certamente, haveria mais que uma opção para colmatar as falhas do nosso ensino. Não teria sido agora uma ótima altura para dar uso aos centros de simulação de que tantas escolas dispõem? Não teria sido esta uma oportunidade única de crescimento e aprendizagem para os estudantes participarem ativamente na luta contra uma pandemia? Claro que temos as nossas limitações. Estamos ainda longe de ser profissionais qualificados, mas talvez um par de mãos a mais pudesse fazer a diferença.“ (8)

Frontalidade não nos falta. Talvez tenha sido da troika ou do COVID, mas sempre houve capacidade para, mais que criticar por criticar (o que não está errado per se, mas é materialmente infrutífero), expor situações críticas e propor planos de ação concretos para as paliar ou tratar definitivamente. Enfim, a história das nossas adolescências e jovens idades adultas posta a nu em excertos de editoriais! O espírito crítico, de novo, está vivo e de boa saúde. A FRONTAL, como espaço editorial por excelência que é, deve servir mesmo a autocrítica da comunidade estudantil e a crítica da restante comunidade académica. Tem-no feito ao longo de trinta e seis anos de história e não deve parar de o fazer agora.

Consciencializar para os problemas que se vivem na faculdade e abrir o espaço ao debate é uma das missões declaradas da AEFCM e, por consequência, da FRONTAL. Não é à toa que temos uma coluna de Pensar Livre, aberta a toda a gente, e um evento de Choque FRONTAL anual entre opiniões diversas e questões que não se calam. Dá que pensar sobre se não era meritória, talvez, uma meta-sondagem sobre as opiniões e a satisfação com o ensino.


Óleo de vitríolo

Passando, agora, ao fundamental, e ao que quero levar à próxima AG da AEFCM. Acho justo que comece a ler aqui quem não esteja interessado numa recensão histórica da FRONTAL e do Frontal como espaço reivindicativo e do salutar hábito de apontar problemas e discutir soluções abertamente que, felizmente, tem sido desenvolvido ao longo dos anos por dirigentes associativos dentro da nossa faculdade em concreto; tem-nos permitido usufruir de alguns importantes e valiosíssimos privilégios no ensino médico e na vida associativa, como (não querendo excluir os outros grupos de trabalho!) os intercâmbios internacionais, a participação em associações académicas internacionais, a oferta formativa extracurricular, os estágios de verão ou as iniciativas relacionadas com Projetos da AEFCM.

Tendo já integrado a Direção da AEFCM como Diretor desta Revista, em 2021, e reconhecendo na atual equipa as qualidades e competências democráticas que há pouco descrevi como, a meu ver, importantes na representação de estudantes em órgãos associativistas, estou totalmente confiante que estas questões e estas temáticas – quando as transpuser para a respetiva Ordem de Trabalhos através dos canais adequados – serão debatidas abertamente e soluções para as mesmas serão procuradas de forma honesta e transparente. (Apelo, desde já e ecoando o Professor Esperança Pina, à participação assídua nas AG e ao envolvimento ativo na vida associativa desta faculdade.)

Assim, há certos pontos, ou, aliás, tópicos, que levanto aqui para que se discutam, sob a forma, de inspiração num certo radical, de questões:

  • Porque é que ainda não existe uma cantina funcionante e operacionalizada pelos SASNOVA no interior da faculdade desde a retoma de atividades presenciais?
  • Porque é que, no interior das instituições da NOVA, ainda nos é dificultado o livre acesso a bibliotecas, locais de estudo e de ensino? As propinas são pagas à UNL, não à NMS|FCM.
  • Porque é que, de novo, a revisão do novo Programa Curricular foi realizada “por sobre” as cabeças dos alunos, não tendo havido sequer uma sessão de recolha de sugestões mais direcionadas ou transparência no processo de tomada de decisões pelo CP?
  • Porque é que o apoio dado pelos SASNOVA a bolseiros continua a ser diminuto e incapaz de colmatar não só a diminuição do poder de compra com o aumento dos custos de vida e o acentuar da especulação imobiliária em Lisboa… ao mesmo tempo que a NOVA lidera o projeto de 400 hectares do Innovation District em Porto Brandão, a mudança de inúmeras faculdades, não só a nossa, para Carcavelos, em propriedades de valor acrescentado à beira-mar, e a construção de campi diferenciados para todas estas?
  • Porque é que o descontentamento geral\descrença geral dos alunos para com a efetividade do Gabinete de Apoio ao Aluno não é monitorizado? Porque é que não são tomadas medidas para isso? Podemos também mencionar as sondagens de qualidade do ensino que, pelo método empregue, de preenchimento facultativo, se apresentam vulneráveis a vieses?
  • Porque é que alguns dos alunos de quarto ano, por exemplo, serão formados sem nunca ter tido estágios de Cardiologia, Pneumologia, Cirurgia Torácica ou Cirurgia Vascular, tendo de recorrer a estágios de verão ou oferta complementar em mobilidade externa para os realizar?
  • Porque é que os alunos não têm uma participação mais viva e solicitada em alguns dos processos mais relevantes de tomada de decisão na faculdade? Se as AG da AE conseguem ser um exemplo satisfatório de tomada de decisão democrática, sendo ainda abertas à comunidade estudantil, porque é que a Direção da NMS | FCM não pode fazer o mesmo com os alunos?

Conclui-se, pois, esta investigação sobre a frontalidade com um humilde agradecimento, como não podia deixar de ser, aos pioneiros desta revista e a quem a tornou no que hoje é: um projeto que pugna pela representatividade, pela inclusão e pela oportunidade que presta a qualquer pessoa interessada para que escreva, lute, critique, aprecie, recomende, enfim, expresse, mais do que a informação científica baseada na evidência que nos guia, o tal esprit que nos torna, enfim, parte da espécie humana.


Fontes

  • 1 – Carolina Almeida, Eis a Questão: Do Frontal à FRONTAL – Dr. Roque da Cunha e Dra. Maria Moreno, FRONTAL, 50.ª Edição, 2020
  • 2 – idem, ibidem
  • 3 – id., ibid.
  • 4 – J. A. Esperança Pina, História da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, Frontal | AEFCML, 2011
  • 5 – Miguel Araújo Abreu, Editorial, Frontal, n.º 29, dezembro-2005
  • 6 – Francisco Valente, Mensagem do Presidente da AEFCML, Frontal, n.º 39, maio-agosto-2011
  • 7 – idem, ibidem
  • 8 – Joana Amado, Mensagem da Presidente da AEFCM, FRONTAL, 51.ª Edição, 2021

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