A bela e o morbo

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“A beleza está nos olhos de quem a vê”: aquele cliché fenomenal capaz de conferir um tom pseudo-filosófico a uma discussão em defesa dos Crocs. Mas Shakespeare também o disse, e Benjamin Franklin, e David Hume. Todos defendiam, no fundo, que toda e qualquer percepção de beleza é subjectiva. Subjectivo é também o fenómeno da dor, aceite como um “mal necessário” pelos que aspiram a aproximar-se o mais possível da perfeição que idealizaram. O “subjectivo” parece ser então o grande foco destes temas, e seria, não fosse escassa a subjectividade inerente aos problemas que uns pés de 7 cm, uma cintura de 40 ou uns saltos de 20 poderão trazer.

Hoje, a FRONTAL apresenta-nos o perfil oculto de alguns acessórios e tendências que se destacaram dos seus pares não só pela excentricidade mas também pelo prejuízo à saúde inerente: dos corpetes aos saltos agulha, dos pés-de-lótus da China aos anéis de bronze de Burma, visitando por fim as obsessões cosméticas da aristocracia europeia.

De cortar a respiração

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O corpete vitoriano

A polémica em redor dos corpetes é praticamente tão antiga quanto os mesmos. Dada a sua agressividade estética, esperar-se-ia uma lista de malefícios inversamente proporcional à cintura dos seus apologistas; no entanto, a pesquisa de problemas de saúde directamente relacionados com a sua utilização revela poucas patologias bem documentadas. Do ponto de vista dos seus fãs, claro, passar a ter uma dor de estômago ao nível da sínfise púbica é extasiante, e a total reorganização da componente visceral abdominal e torácica é o marco de uma utilização do corpete bem-sucedida. Todavia, para a população médica, tipicamente Netter-conditioned, tal é visto com alguma confusão e sentimentos de mau-agoiro quase sempre bem fundamentados.

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Corpete de maternidade

O corpete tem origens italianas e foi introduzido por Catarina de Medici na corte francesa do século XVI. Nos finais do século XVIII, estava já tão incorporado na moda e cultura europeias que os seus utilizadores, femininos e masculinos, lhe dispensavam poucos pensamentos críticos. O uso do corpete era popular entre ambos os sexos e entre o público em geral, e até corpetes de maternidade foram desenvolvidos, de modo a mascarar e minimizar o tamanho do corpo da grávida.

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Radiografia de mulher usando um corpete

O primeiro grande atentado contra o corpete despontou do génio de um médico alemão, o Dr. Samuel Thomas von Soemmerring, em 1788, num artigo premiado sobre os perigos da peça de vestuário, traduzido em diversas línguas. A sua maior objecção partia da crença, embora infundada, de que o mesmo causava tuberculose, cancro e escoliose. Ainda assim, o corpete é sem dúvida responsável por alguns eventos patológicos, de entre os quais se destaca a visceroptose. A visceroptose, esplancnoptose ou doença de Glénard consiste numa ptose, ou queda, de uma ou mais vísceras abdominais para um local inferior à sua posição original. De facto, a decadência do seu uso, por volta do século XX, levou a uma diminuição da incidência de esplancnoptose nas mulheres. Teoriza-se que a causa se deva a uma perda de função dos ligamentos ou perda de tónus dos músculos abdominais, podendo resultar ambas da compressão prolongada pela estrutura do corpete. Outras complicações documentadas, associadas ao uso da peça, incluem refluxo gastro-esofágico, hérnias do hiato, obstipação e fractura de costelas.

Cinderela à força

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Pés-de-lótus e sapatos-de-lótus

Uma cintura diminuta na Inglaterra vitoriana seria o equivalente (bem menos tortuoso) a um pé diminuto na China, até há pouco menos de um século. Um pé pequenino traduzia-se num passaporte de ascensão na hierarquia social, tendo as noivas mais cobiçadas o chamado “Lótus de Ouro”: um pé com 7 cm. Um pé de 10 cm também era considerado respeitável, recebendo o nome de “Lótus de Prata”, mas todos os pés acima de 12 cm eram descartados e apelidados de “Lótus de Ferro”. As perspectivas matrimoniais para tais jovens eram indubitavelmente sombrias. O costume da deformação do pé, ou do “pé-de-lótus”, era uma tradição que permitia às mulheres encontrar um parceiro adequado, e casamenteiras e sogras requeriam que a pretendente tivesse os pés deformados e ligados, como sinal de que seria uma boa esposa, subserviente e submissa.

A origem do costume remonta provavelmente à dinastia Tang (937-975 A.D.) e ao imperador Li Yu. Este terá pedido à sua cucumbina preferida para ligar os pés em forma de quarto crescente com seda branca e dançar reproduzindo um lótus, como uma bailarina em pontas. Dado o êxtase com que o imperador acolheu a dança, a popularidade da prática cresceu e espalhou-se pela restante população feminina.

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Pés-de-lótus

O processo que resultaria nas imagens que conhecemos era iniciado antes que a arcada do pé se pudesse desenvolver totalmente, entre os 4 e os 9 anos. A deformação era feita tipicamente nos meses de Inverno, altura em que o frio propiciava a dormência dos pés e poderia acalmar de alguma forma a dor excruciante. Primeiro, cada pé era banhado numa mistura de ervas e sangue animal, destinado a amolecê-lo e facilitar a deformação e posterior ligadura. Depois, as unhas eram cortadas o mais rente possível, para prevenir infecções por feridas no local onde os dedos ficariam comprimidos, normalmente a planta do pé. Os dedos eram então enrolados, pressionados e empurrados contra a planta até partirem. Estes dedos partidos eram depois fixados firmemente à planta enquanto o pé era forçosamente flectido e a arcada partida. Ligaduras eram de seguida enroladas em redor do pé já deformado, com cada passagem em torno do pé a apertar as ligaduras cada vez mais, juntando a origem dos dedos ao calcanhar e fazendo com que o pé partido se dobrasse em arco.

Apesar da natureza bárbara deste costume, as mães que quisessem ver as suas filhas bem casadas e aceites na sociedade contemporânea tinham necessariamente de o infligir, sob pena de estas serem consideradas feias ou aberrações. Por outro lado, a tradição do “pé-de-lótus” cultivava a dominância masculina, obrigando as raparigas e esposas, cuja mobilidade se encontrava severamente reduzida, a ficar em casa, isoladas, com prejuízo para a sua educação e independência.

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Anciã chinesa e os seus pés-de-lótus

Ao longo dos séculos, a deformação dos pés conferiu às mulheres uma incapacidade vitalícia de efectuar com facilidade tarefas tão básicas como andar, sentar ou agachar-se, entre outras. Este costume influenciou não só a vida de milhões de raparigas, mas também a arquitectura (casas com escadas tornaram-se raras), sendo inúmeros os testemunhos na arte ou na literatura. Numa passagem do seu livro Cisnes Selvagens: Três filhas da China, Jung Chang fala da avó, a última mulher da família a sofrer (com) a tradição:

“But her greatest assets were her bound feet, called in Chinese “three-inch golden lilies” (san-tsun-gin-lian). This meant she walked “like a tender young willow shoot in a spring breeze,” as Chinese connoisseurs of women traditionally put it. The sight of a woman teetering on bound feet was supposed to have an erotic effect on men, partly because her vulnerability induced a feeling of protectiveness in the onlooker.”

 Medo das alturas

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O salto alto persa

Ainda no campo das extremidades inferiores, os saltos altos também têm o seu quinhão na lista de problemas beauty-related. O salto será originário do Oriente Próximo e fazia parte do calçado tipicamente utilizado para montar a cavalo, dado que impedia que o pé escorregasse para fora do estribo. No século XVI, os persas foram os primeiros a adoptar a moda. Quando passou pela Europa uma súbita onda de interesse por artigos persas, estes foram entusiasticamente adoptados por aristocratas, que consideravam o salto a forma ideal de conferir um aspecto viril e masculino à sua aparência. Quando o uso da peça se generalizou às classes mais baixas, a aristocracia respondeu aumentando a altura dos saltos, dando origem ao “salto alto” propriamente dito. Dado que era relativamente impossível andar com eles grandes distâncias, este adereço pouco prático e desconfortável passou a servir para demarcar as classes privilegiadas, menos adeptas da lavoura. Os saltos eram portanto, pelo menos a princípio, um elemento de vestuário predominantemente masculino. A sua popularidade entre o sexo masculino acabou por decair, verificando-se o contrário na população feminina, especialmente por volta do século XIX. Tal ficou a dever-se à revolução fotográfica e à utilização de saltos altos modernos em fotografias de índole pornográfica, cunhando possivelmente o sapato como um adorno erótico feminino.

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pedCAT de pé num sapato de salto alto

As complicações associadas à utilização de stilettos são inúmeras. Ao nível da coluna, existe um achatamento das vértebras lombares, um deslocamento posterior da cabeça e das vértebras torácica e um aumento de pressão na parte anterior do pé. O uso frequente e diário dos saltos altos pode levar a mudanças anatómicas, tais como atrofia dos músculos posteriores da perna e espessamento do tendão de Aquiles. Pode também haver um deslocamento anterior de uma vértebra sobre a outra (espondilolistese), especialmente na região lombar, onde o peso do corpo se concentra.

Ainda assim, há quem não prescinda deste tipo de calçado. Existem registos de cirurgias de remoção de dedos mindinhos com o intuito de tornar o dia-a-dia em saltos altos mais confortável. As sabrinas são sobrevalorizadas.

A senhora dos anéis

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Mulher Padaung com anéis de bronze

No extremo oposto do corpo e do mundo, outro costume prima pela excentricidade. Há já vários séculos que as mulheres da tribo Padaung (ou Kayan Lahwi, pertencente ao grupo Kayan, por sua vez um subgrupo de uma minoria étnica de Burma, os Red Karen) dão continuidade a este rito de passagem, carregando uma das suas tradições mais antigas ao longo de toda sua vida. Estima-se que esta prática remonte ao século XI, consagrando 1000 anos a esta forma particular de modificação corporal.

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Radiografia de uma mulher Padaung

No que concerne à origem do ornamento, existem várias teorias. Algumas defendem que os anéis eram usados principalmente para defesa de ataques de tigres. Outras, que o aspecto final das mulheres era pouco atractivo para os comerciantes de escravos, diminuindo as probabilidades de serem capturadas. Outras ainda que os anéis simbolizam “beleza” e “riqueza”, jogando a favor de um casamento de sucesso, ou que identificam as mulheres como Padaung, afastando possíveis pretendentes de outras tribos. Por fim, também é defendido que o conjunto anelar representa o aspecto e poder de um dragão, já que as mulheres Padaung são, segundo a lenda, descendentes da figura mitológica “Mãe Dragão”.

O processo inicia-se aos 5 anos, com um único anel de bronze colocado em redor do pescoço da rapariga pela anciã da tribo. Depois, e à medida que esta vai crescendo, anéis suplementares vão sendo adicionados. Um conjunto completo consiste em 25 anéis, organizados entre si como uma bobina.

Embora assim o pareça, não é o pescoço que “estica” com o aumento da altura do adereço. O peso do bronze é suportado pelas clavículas e primeiras costelas e, ao fim de algum tempo, provoca nelas uma descida de cerca de 45º em relação à sua posição inicial, fazendo com os ombros descaiam e dando assim a ilusão de que o pescoço se encontra alongado. Com cada adição, a altura dos ombros vai diminuindo cada vez mais, comprimindo também a caixa torácica. Sendo assim, não se trata de um ‘pescoço alongado’, mas sim de ‘ombros descaídos’. Contrariamente ao que se pensa, retirar os anéis não é particularmente perigoso. Há inúmeros relatos de mulheres que o fizeram, referindo apenas algum desconforto momentâneo.

Branca de chumbo

Por fim, ou não seria este um artigo sobre os extremos da beleza, resta falar da face e de uma tendência autodestrutiva que vigorou desde a Grécia Antiga até aos loucos anos 20: a maquilhagem de chumbo.

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A rainha Isabel I mantinha uma face ebúrnea à custa da maquilhagem de chumbo

Quanto mais elevado o estrato social, maior o tempo de ócio passado no interior e consequentemente mais acentuada a palidez da face e da pele em geral. Portanto, nas classes mais altas da sociedade europeia, por exemplo, a corrida aos produtos aclarantes era notória. Entre estes encontrava-se uma tinta branca de chumbo, que continha também arsénio, envenenando e matando inúmeros fãs da prática.

O chumbo é um assassino lento, e passavam-se anos até que este se acumulasse em quantidade suficiente para provocar dano. Os sintomas eram variados, sendo os mais importantes a lesão do sistema nervoso central e periférico, com perda de coordenação e memória, cefaleias, anorexia, sensação de paladar metálico constante, paralisia, insónias, irritabilidade, dormência das extremidades e ainda náuseas, dor abdominal  e uma linha azul acinzentada visível ao longo da margem das gengivas, na base dos dentes.

Em 1760, Marie Gunning, uma aristocrata irlandesa, famosa pela sua formusura e pele de porcelana, tornou-se na primeira vítima documentada de envenenamento por chumbo de cosméticos. Seguiram-se a actriz Kitty Fisher e, em 1878, Madame Rachel, que se dedicava a fabricar e comercializar os produtos fatais.

Hoje em dia, no entanto, verifica-se uma obsessão pelo outro lado do espectro. Um bronzeado vigoroso é invejado em qualquer ocasião mas, tal como o chumbo, as consequências de uma exposição prolongada ao sol podem levar de igual forma a um estado muito pouco estético de palidez perpétua.

“Beauty, like supreme dominion/ Is but supported by opinion.”

A demanda pela perfeição, a quase-obrigação de encaixe num molde físico restrito, provoca uma cegueira temporária aos potenciais riscos que um aparente benefício exterior poderá trazer. Dos três temas abordados, os corpetes e os saltos serão talvez os mais inofensivos, no sentido em que o seu uso é maioritariamente uma escolha individual. No entanto, a tradição chinesa é o reflexo de um capricho estético dolorosamente forçado a uma população indefesa. Embora pareça improvável a repetição de tal barbaridade nos tempos futuros, a transposição do seu significado poderá levar-nos a pensar até que ponto os nossos ideais de beleza serão mesmo nossos e não um mero fruto de uma moldagem extensiva ao longo do tempo; até que ponto somos incapacitados por esses ideais pré-concebidos ou, pior, até que ponto não seremos nós responsáveis pela sua implantação subversiva. A expressão “sofrer para bela ser” nunca foi tão suspeita.

Fontes das imagens
https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/originals/fd/f5/21/fdf5210334c4d098b6578342d00fc7d2.jpg http://en.wikipedia.org/wiki/Corset#/media/File:X-Ray%27de_bir_korseli_kad%C4%B1n.jpg                             http://exhibits.hsl.virginia.edu/clothes/maternity_corset/ https://foreignexposure1.files.wordpress.com/2009/12/chinese-shoe2b.jpg http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/14/Bound_feet_(X-ray).jpg http://www.bbc.co.uk/news/world-asia-china-31964279 http://images.mentalfloss.com/sites/default/files/styles/insert_main_wide_image/public/persian_shoe_0.jpg http://images.hngn.com/data/images/full/9930/3d-foot-scan.jpg https://www.flickr.com/groups/1618313@N24/pool/54729153@N07/                                                                       http://www.sideshowworld.com/81-SSPAlbumcover/Giraffe-Neck/GN-12a.jpg http://en.wikipedia.org/wiki/Elizabeth_I_of_England#/media/File:Darnley_stage_3.jpg

Imagem de capa: Maria Tareco

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