Perda, Regressão, Anosognosia – Everywhere at the End of Time

Ivan Seal. Beaten Frowns After (2016). Óleo sobre tela. Capa da Etapa 1.

Everywhere at the End of Time é um conjunto de seis álbuns conceituais do artista e músico eletrónico inglês Leyland James Kirby, conhecido artisticamente como The Caretaker, lançados entre 2016 e 2019. Nestes, somos levados numa viagem emocional e sensorial ao mundo da demência, com composições musicais progressivamente mais experimentais, partindo de peças ambientais, eletrónicas, alegres, com sampling de música de salão dos anos 20 e 30, até alcançar faixas em que o ruído e o silêncio predominam, intercalados, ocasionalmente, com pequenos extratos das primeiras.

Com efeito, a temática da perda cognitiva é extensamente explorada na obra de Kirby: o álbum An Empty Bliss Beyond this World, de 2011, integra influências do jazz de salão da década de 1930 com uma interpretação eletrónica moderna, no campo do noise, traduzindo emoções, pensamentos fugitivos e a persistência da memória remota numa experiência sinfónica das fases precoces da doença de Alzheimer, inspirado nos achados de um estudo da Escola Médica da Universidade de Boston (Simmons-Stern et al., 2010) que relatam achados de melhoria da formação de memórias novas a nível da codificação através da exposição a música em pacientes com doença de Alzheimer.

Ivan Seal. Pittor Pickgown in Khatheinstersper (2015). Óleo sobre tela. Capa da Etapa 2.

Na senda de An Empty Bliss…, o artista inglês procurou em Everywhere at the End of Time aprofundar a relação entre a memória, a perda, a emoção e a música com uma descrição artística da insidiosa progressão associada às demências neurodegenerativas. Socorrendo-se de métodos semelhantes aos do álbum de 2011 e incorporando sonoridades renovadas e inspiradas nas obras de William Basinski (outro artista eletrónico que abordou no passado a temática do envelhecimento físico e cognitivo), The Caretaker leva-nos numa jornada às dimensões psíquicas, psicológicas e psiquiátricas da degradação da memória, do embotamento dos afetos e da perda da própria identidade ao longo de seis álbuns, denominados “etapas e numerados de 1 a 6.

Cada imagem de capa de cada álbum foi desenhada e pintada a óleo por Ivan Seal, procurando a cada “etapa” apresentar imagens progressivamente mais abstratas e vazias de forma, culminando na apresentação de uma tela vazia (Necrotomigaud (2018)) e conferindo uma dimensão visual à experiência sonora criada por Kirby. Assim, esta jornada, com a sua bradicinesia sonora progressiva, explora temas melancólicos que se dissipam no vazio e dão origem a sonoridades drone e noise surreais, sem ritmo distinguível, descritas pelo artista como “expressão auditiva do caos” e comparadas pelo próprio à anosognosia e a estados confusionais estabelecidos. Os próprios nomes das faixas começam, em “etapas” tardias, a ser mais e mais médicos, como “Synapse Retrogenesis” ou “Advanced Plaque Entanglements”.

Ivan Seal. Hag (2014). Óleo sobre tela. Capa da Etapa 3.

 

Por fim, as sonoridades musicais e vocais do álbum dissipam-se completamente nas últimas faixas, dando lugar a ruídos e sibilos, com rumores muito distantes das sonoridades das faixas prévias. O álbum termina, contrastando com esta experiência, com uma amostra da ária da Paixão de S. Lucas, de J.S. Bach, intitulada “Lasst Mich Ihn Nur Noch Einmal Küssen” (“Deixai-me Beijá-lo Apenas Mais Uma Vez”), seguida de um minuto de silêncio, dando palco a diversas interpretações, tais como a morte do paciente e a subida ao Além, ou o fenómeno de lucidez paradoxal (Batthyány et al., 2021), ainda hoje alvo de investigação, dada a ténue evidência científica da sua existência.


Se este álbum não é novidade aos estimados leitores e leitoras desta coluna, assim será pela sua famosa receção crítica nas redes sociais. Se, aos primeiros lançamentos, os anúncios se restringiram à comunidade de entusiastas de música ambient e noise, géneros explorados por Leyland Kirby na sua discografia prévia, a combinação da qualidade dos sons, da originalidade da abordagem a um tema sui generis e da mestria na execução do projeto levou a que as “etapas” subsequentes atraíssem números crescentes de escutas, críticas e discussões, de teor crescentemente positivo. Assim, as últimas etapas atraíram a atenção de publicações populares generalistas do mundo musical, como a Pitchfork, The Wire, e mesmo o Shifter por terras lusitanas, merecendo rasgados elogios ao poder empático e patético da progressão sonora.

Ivan Seal. Giltsholder (2017). Óleo sobre tela. Capa da Etapa 4.

Este destaque, que elevou transitoriamente o ambient a níveis de popularidade apenas igualados por nomes como Aphex Twin ou Brian Eno, não passou despercebido às mentes musicais das redes sociais, que aproveitaram a sua inusitada temática para criar conteúdos relacionados com o álbum. No TikTok, desde o lançamento da sexta e última “etapa”, começaram a circular curtos vídeos a desafiar a audiência a ouvir o álbum, introduzindo muitas vezes elementos de terror e horror existencial na sua descrição do mesmo. Se, inicialmente, estavam restritos aos grupos mais impressionáveis de espectadores (crianças e jovens adolescentes), a sua esmagadora popularidade transcendeu o TikTok, alcançou o YouTube e audiências mais maduras, com vídeos e análises mais aprofundadas e assentes na realidade. Como tal, os próprios álbuns receberam milhões de escutas no YouTube, facto que não passou despercebido a Kirby.

A atenção renovada que este projeto recebeu não assustou ou desanimou o músico anglo-saxónico. Na realidade, revelou-se compreensivo, afirmando que o fenómeno e a atenção que tiveram os álbuns, enquanto meme, junto de internautas adolescentes, poderiam fazê-los “compreender os sintomas que a pessoa com demência pode enfrentar.


Se a construção deste álbum, recuperando sonoridades dos anos 30 e 40 do século XX na sua relação temporal, emocional e mnésica com o presente que se esfuma, pode dizer muito sobre os sentimentos de perda e expiração, é também um louvor hantológico ao trabalho físico e emocional dos cuidadores e familiares que lidam com as lutas diárias destes pacientes. 

Bem entendido, o termo hantológico descreve, no sentido em que Mark Fisher o aplica às obras de Leyland Kirby, a aplicação de sonoridades antigas e instrumentos retro-futuristas, dos primórdios da música eletrónica, nos anos 1970, na produção de música que tenta recuperar uma aura fantasmagórica de uma memória degradada e de um futuro perdido. Se aqui nos podemos ficar pela descrição do crítico norte-americano, convém salientar a origem do termo, que nos abre uma janela de discussão para a doença de Alzheimer e para o esforço emocional e subsequente sobrecarga subjacente à vida com um paciente com doença crónica neurodegenerativa.

Ivan Seal. Eptitranxisticemestionscers Desending (2017). Óleo sobre tela. Capa da Etapa 5.

A hantologia é uma criação do filósofo francês Jacques Derrida, política e temporalmente contextualizada à queda da União Soviética, que visa exprimir a confusão e a saudade sentidas em círculos politicamente ativos com o “fim” publicitado da história e das alternativas à atual organização social. Longe, todavia, do mero saudosismo, a hantologia expressa, grosso modo, uma contradição entre existência e tempo, na qual algo dito hantológico, à semelhança de um espetro ou de um fantasma, simplesmente existe, sem contudo ter começado a existir num determinado ponto no passado, ou poder deixar de existir no futuro. A impossibilidade temporal da sua existência, pois, contrasta com o facto de, efetivamente, existir.

A meu ver e neste contexto em específico, o conceito visa descrever a fusão de sonoridades do passado com conceitos antiquados do futuro, resultando em musicalidades com expressão simultaneamente nostálgica e futurista, numa sobreposição de temporalidades que confere a quem escuta sentimentos de saudade apaixonada de um passado em comum que concorrem com planos sentimentais de profunda mágoa pelo contraste entre esse momento, o presente momento de degradação, e as visões negras de um futuro que, na doença neurodegenerativa, não poderá melhorar, apenas atrasar o seu declínio.

Sim, pois, este projeto não engloba “só” o paciente de Alzheimer, mas todas as pessoas que com ele convivem, que o auxiliam e o confortam no ocaso da sua vida, que lidam com as suas lutas diárias e com a lenta queda deste em etapas sucessivamente mais vazias da demência. Poderá esta interpretação, pois, coadunar-se com a ária profundamente hantológica de Bach no fim da obra?

Ivan Seal. Necrotomigaud (2018). Óleo sobre tela. Capa da Etapa 6.

 

A título pessoal, poderei estar a interpretar muito além do que era pretendido por The Caretaker aquando da gravação destes álbuns. Poderá assim o ser por também ter visto, à semelhança de muitos outros de vós, pois, entes queridos e amados sucumbir ao frio cinzento e vazio da demência. Se Apeles, escultor, avisou “sutor ne ultra crepidam” (não suba o sapateiro além da chinela), não deverá o estudante de Medicina ir além da doença propriamente dita? O que constitui aqui os limites da doença? Como resolver este dilema, onde as linhas entre a Medicina, a Arte e a Humanidade se esfumam?


Como a leitura já vai longa, podemos deixar a resolução do dilema a título do leitor ou leitora: não queremos impor aqui a nossa vontade. A FRONTAL, é, afinal, um espaço livre. Despeçamo-nos com uma nota resumida sobre a doença de Alzheimer, as suas manifestações clínicas e alguns pormenores médicos que evidenciam, à semelhança de Everywhere at the End of Time, a merecida atenção que esta entidade clínica tem tido junto da comunidade científica e da sociedade civil.

Doença de Alzheimer

Uma das temáticas centrais do álbum discutido, a doença de Alzheimer é a demência mais frequente na população. A demência define um estado de declínio adquirido das capacidades cognitivas que tem um impacto significativo sobre as atividades de vida diária (AVD) do indivíduo. Tendo um curso crónico, com degeneração insidiosa e prolongada, numa inexorável sucessão de perdas cognitivas, esta perturbação é a principal manifestação de doenças como a de Alzheimer, a demência de corpos de Lewy ou a degenerescência lobar frontotemporal.

No que toca à doença de Alzheimer, esta caracteriza-se por uma conjugação de alterações clínicas, bioquímicas e funcionais específicas que definem os seus critérios de diagnóstico. Se, tradicionalmente, os achados neuropatológicos de acumulação de tranças neurofibrilares intracelulares e placas senis extracelulares compostas por depósitos de β-amiloide, com provas de progressão hierárquica de início no lobo temporal, serviam como método de diagnóstico, e se conhecia a idade como principal fator de risco, o estado atual do conhecimento sobre esta patologia evoluiu bastante nos últimos anos.

Tranças neurofibrilares no hipocampo de um idoso com doença de Alzheimer.

Embora ainda se desconheçam os fatores precipitantes para o desenvolvimento da doença de Alzheimer, postula-se que as alterações sinápticas, com deposição de β-amiloide, e a nível neuronal – sobretudo nas vias colinérgicas associadas aos núcleos septais e ao núcleo basal de Meynert – possam levar a perda neuronal e a incapacidade cognitiva e funcional, traduzindo-se clinicamente por um quadro onde predominam sintomas neuropsiquiátricos (cf. Lyketsos et al., 2011).

Destes sintomas neuropsiquiátricos, pois, destaca-se uma perturbação cognitiva major que pode principiar de forma ligeira nos primeiros anos de doença, cursando com amnésia, desorientação temporal e espacial, incapacidade de executar AVD complexas (como usar dinheiro ou transportes públicos), alterações do julgamento e, mais notoriamente, perturbações do humor e ansiedade.

Esta fase mais precoce agrava-se insidiosamente, a médio-longo prazo, com crescimento da perturbação mnésica (poupando-se, contudo, a memória remota, geralmente), associando-se ainda esta amnésia a alucinações, delírios e incapacidade em reconhecer amigos ou familiares. Existem ainda nesta fase já marcadas perturbações do discurso e da escrita, com afasias sérias. Os doentes nesta fase intermédia evidenciam tipicamente agitação psicomotora com deambulação, com um compromisso do insight significativo, acreditando muitas vezes que nada se passa de errado consigo – anosognosia.

Placas senis: imagem de imunohistoquímica de cérebro de paciente com doença de Alzheimer.

Por fim, já com um ritmo mais acelerado de progressão, estas características patológicas positivas perdem-se: o doente, confinado à cama, assume uma postura de flexão dos membros superiores e inferiores e apresenta incontinência, encontrando-se ainda totalmente incapaz de qualquer comunicação linguística.

Atualmente, os critérios de diagnóstico de Alzheimer englobam, além do critério nuclear de base clínica – perturbação precoce e significativa da memória – características funcionais, biomoleculares, genéticas ou imagiológicas que permitem o diagnóstico definitivo da doença em vida (podendo consultar-se uma revisão de 2016 de Scheltens et al. para a Lancet neste link). Assim, investigam-se parâmetros como:

  • diminuição do metabolismo têmporo-parietal à RM funcional;
  • atrofia temporal medial à RM;
  • diminuição da isoforma β-amiloide Aβ42 no LCR;
  • aumento da concentração de proteína tau fosforilada no LCR;
  • entre outros (Frota et al., 2011).

Deste modo, é possível a deteção da doença de Alzheimer de uma forma mais generalizada e englobando as suas variantes numa definição que une a clínica aos achados laboratoriais, de investigação e imagiológicos, permitindo diagnósticos mais precoces, mais adequados e mais personalizados.

O tratamento da doença de Alzheimer é, contudo, meramente paliativo, atualmente. São utilizados, dada a perturbação acima referida das vias colinérgicas, inibidores da colinesterase em monoterapia, como o donepezilo, a rivastigmina ou a galantamina. Contudo, em fase de demência moderada, pode acrescentar-se a memantina, antagonista dos recetores NMDA de glutamato.

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