Gostas de festejar os aniversários? Os investigadores também. E o dia 25 de abril de 2003 não lhes poderia ter passado despercebido, não fosse volver-se meio século desde a publicação, na Nature, de um dos mais fecundos e empolgantes triunfos científicos do século XX: a descoberta da estrutura tridimensional do DNA, a enigmática molécula da hereditariedade. Nesse mesmo mês, o Projeto Genoma Humano foi dado como concluído, dois anos antes do término previsto.
Essa coincidência pontual viria a servir de rastilho além-fronteiras para que o dia 25 de abril fosse declarado como Dia Internacional do DNA ou Dia Mundial do DNA. Mas não sopres já as velas! Antes disso, aproveita algum do teu fôlego para leres este artigo e descobrires quatro curiosidades acerca da molécula da vida – e a certeza de que, ainda hoje, ela não para de nos surpreender.
A construção do modelo da dupla hélice do DNA, que viria a servir de berço para a genética molecular, é um marco que superlativamente se destaca no âmbito do património científico, tendo valido o Prémio Nobel da Medicina (1962) a James Watson, Francis Crick… e Maurice Wilkins. A culpa não é inteiramente tua se este último nome não te soar familiar: múltiplas circunstâncias concorreram para que a dupla formada por James Watson e Francis Crick se tornasse sobejamente conhecida e, assim, condenasse à sua sombra o contributo de outros investigadores. Em torno de um dos maiores ícones da biologia, o DNA, orbita uma controvérsia não isenta de preconceitos, ideologias e disputas pessoais. Quem foi Maurice Wilkins? Porque foram Rosalind Franklin e Linus Pauling determinantes para a descoberta da dupla hélice? Que elos se escondem por detrás de todos estes nomes, e qual deles merece ser, em última instância, consagrado?
Recuemos até outubro de 1951. Em visita ao Laboratório Cavendish, da Universidade de Cambridge (Inglaterra), um físico resolvido a dedicar-se à biologia conhece um investigador formado nessa área e que, à época, estudava os bacteriófagos. Mas atribuamos nomes a quem os tem: o primeiro chamava-se Francis Crick; o segundo, James Watson. Unia-os a ambição de esclarecerem os mecanismos subjacentes à replicação de genes – mas, para isso, tinham de decifrar a estrutura química do DNA.
Ao mesmo tempo, no King’s College, em Londres, um grupo de físicos – entre os quais Maurice Wilkins (Figura 1) e Rosalind Franklin (Figura 2) – estudava o DNA a partir da cristalografia de raios X, visando desmistificar a sua estrutura molecular. Inspirados nas imagens resultantes dessa técnica (que mostravam uma estrutura regular e repetitiva) e no método de construção de modelos do renomado químico americano Linus Pauling (cujo livro The Nature of the Chemical Bond lhes serviu de referência), Watson e Crick começam, a partir de novembro de 1951, a esboçar eles próprios um modelo para o DNA. E o que concebem eles nas primeiras tentativas? Um esqueleto em tripla hélice, com os grupos fosfato dispostos internamente e, no exterior, as bases azotadas.
Todavia, este modelo foi desaprovado por Wilkins e Franklin, em virtude de diversas incongruências ao nível da composição química e dos cálculos da densidade. E tal desaprovação surtiu uma consequência imediata: Lawrence Bragg, diretor do Laboratório Cavendish, decidiu suspender a investigação em torno do DNA, alocando a dupla para outros projetos.
As coisas pareciam não estar a correr de feição a Watson e Crick – mas, pelo menos, puderam dispor das imagens de DNA obtidas por cristalografia de raios X, contrariamente ao que sucedeu a Linus Pauling (Figura 3). A impossibilidade imposta a este químico cristalográfico de aceder àquela que era uma das melhores pistas então disponíveis – por motivos políticos, o passaporte fora-lhe vetado pelo governo dos Estados Unidos – fez com que o foco da sua investigação continuasse a recair nas proteínas, e não nos ácidos nucleicos, cuja importância era persistentemente subvalorizada.
E eis que, no final de 1952, algo precipitou a corrida em direção ao seu desfecho final. Esse acontecimento impulsionador não é mais do que a publicação, na Nature, de um artigo escrito por Linus Pauling, em coautoria com Robert Corey, seu assistente, e no qual apresentava o DNA como sendo uma molécula em tripla hélice, contendo no seu interior grupos fosfato; um modelo que, de resto, era muitíssimo similar àquele a que Watson e Crick haviam chegado um ano antes… O químico mais influente na época havia cometido um erro, e o laboratório Cavendish não tardou a tirar partido dele.
Depois de autorizados a prosseguir a investigação sobre a estrutura do DNA, Watson e Crick contam com uma descoberta experimental de Erwin Chargaff que lhes será deveras valiosa: a quantidade de adenina é igual à de timina, e a quantidade de guanina igual à de citosina . Mas o mais relevante de tudo prende-se com a atitude de Wilkins que, contagiado pela entusiasmante euforia de Watson e Crick – e constrangido pela antagónica sobriedade de Franklin –, decide mostrar-lhes aquela que se tornou a célebre foto 51 (Figura 4). Esta fotografia do DNA cristalizado por difração de raios X, obtida nesse mesmo ano por Franklin, ultrapassa as anteriores pela sua clareza e nitidez: a disposição das bandas em cruz que nela se observa revela o padrão hélico do DNA.
Esta fotografia – utilizada sem o consentimento de Franklin – terá sido um fator decisivo para corroborar a dupla hélice da molécula da vida, colocando assim a dupla em vantagem (Figura 5). Algumas semanas e muitos acertos depois, a construção do novo modelo da estrutura do DNA é publicada na Nature. O segredo da vida havia sido revelado, o que culminaria com a atribuição do Prémio Nobel da Medicina a Watson e Crick, que o partilhariam com Wilkins.
E o que aconteceu a Linus Pauling? Bem, é certo que saiu derrotado no que à corrida ao DNA diz respeito, mas o seu prestígio construiu-se de outro modo. Com efeito, a descoberta da estrutura helicoidal das proteínas valer-lhe-ia o Prémio Nobel de Química em 1954; oito anos depois, arrecadaria o Nobel da Paz. É hoje tido como um dos principais químicos do século XX, e a única pessoa a ter recebido, individualmente, dois Prémios Nobel.
E quanto a Franklin? «The Dark Lady of DNA» – como Watson lhe chamou em The double hélix, o controverso livro autobiográfico que publicou já depois de ser premiado – faleceu em 1958 de cancro dos ovários, provocado, em parte, pela exposição continuada à radiação, impedindo-a de ser agraciada (o Prémio Nobel não é entregue a título póstumo). Apesar de a sua contribuição ter sido referida por Wilkins no discurso proferido ao receber o Nobel, Watson e Crick nunca viriam a reconhecer o quão crucial foram os dados empíricos de Franklin para a construção do modelo de dupla hélice.
Da contribuição de Franklin emerge um problema historiográfico: se era ela a autora dos dados empíricos que viriam a corroborar a dupla hélice, por que razão não a decifrou antes? Na verdade, estão em jogo diferentes compromissos profissionais. Franklin ancorava-se na cristalografia, perspetivando a estrutura molecular do DNA como um problema per si. Watson e Crick, pelo contrário, estavam menos interessados no DNA enquanto molécula do que nas implicações genéticas que resultariam da sua estrutura: para eles, o DNA funcionava como ponto de partida, como mola que os catapultaria para a compreensão de fenómenos genéticos (o que se encontra bem patente no final do artigo A Structure for Deoxyribose Nucleic Acid: «It has not escaped our notice that the specific pairing we have postulated immediately suggest a possible copying mechanism for the genetic material»). O mérito científico de Franklin não está, portanto, em causa; esta situação revela apenas investigadores que, não obstante debruçarem-se sobre a mesma entidade científica, possuem objetivos e metodologias distintos.
Apesar de a dupla hélice se encontrar padronizada (Figura 6), e de já todos estarmos familiarizados com ela, ainda subsistem mistérios quanto à estrutura do DNA. Já se sabia, por exemplo, que a tripla hélice era suscetível de ser criada em laboratório, mas só recentemente se percebeu que este fenómeno ocorre espontaneamente in vivo, como um mecanismo associado à regulação do funcionamento dos genes. Tome-se o caso do LncRNA (sigla inglesa para RNA longo não codificante), um tipo de RNA que, ao encaixar-se em segmentos genéticos com elevada frequência de adeninas e guaninas, é capaz de «silenciar» certos genes. A interação entre um LncRNA e uma dupla cadeia de DNA leva à formação de uma tripla hélice híbrida, induzindo o silenciamento de regiões específicas do genoma. Mais do que desafiar o Dogma Central da Biologia Molecular (DNA → RNA→ PROTEÍNAS), esta aparente correlação entre o controlo da expressão génica e a formação de tripla hélice introduz novas conceções terapêuticas. Estará ao nosso alcance «desligar» genes conducentes a um quadro patológico?
Não é ficção científica: o DNA pode bem ser a próxima forma de armazenamento de dados. O seu potencial de armazenamento ultrapassa o de formas inorgânicas como discos rígidos ou pen drives: um único grama de DNA armazena mais do que um milhão de CDs!
O recurso ao DNA como método de armazenamento ocorreu pela primeira vez em 2012, quando uma equipa de investigadores da Universidade de Harvard converteu um livro (53 246 palavras), 11 imagens e um aplicativo de javascript num fragmento de DNA. Mais recentemente, outra equipa codificou 5,2 milhões de bits em DNA (entre os dados armazenados constam os 154 sonetos de Shakespeare, uma gravação do discurso «I Have a Dream», de Martin Luther King, e uma cópia da pesquisa original de Watson e Crick sobre a estrutura helicoidal dupla do DNA).
As vantagens subjacentes a esta tecnologia de sequenciamento futurista são inegáveis, atendendo à estabilidade do DNA (pode durar mais de 3,5 mil milhões de anos, resistindo a condições adversas) e à fidelidade no armazenamento de dados. E não se levantam problemas de tamanho: apenas quatro gramas seriam suficientes para armazenar a totalidade de dados digitais produzidos mundialmente, num ano! Para já, os inconvenientes prendem-se com os custos associados quer à codificação quer à recuperação da informação, que exigem uma tecnologia de sequenciamento apenas acessível nos laboratórios. Por enquanto…
A substituição de uma das quatro bases do DNA por um composto sintético permitiu criar, em meio laboratorial, uma nova forma de vida. Mas… e se fossem substituídas as quatro bases conhecidas, criando assim um genoma totalmente artificial?
Este novo paradigma genético, que vem comprometer a centralidade reservada ao DNA na interpretação do conceito de «vida» (Figura 7), é uma das potencialidades da xenobiologia, um campo de estudos ainda incipiente que procura, entre outros aspetos, compatibilizar o progresso tecnológico e industrial com o princípio da precaução. E a chave para o conseguir radica precisamente na criação de formas de vida artificial baseadas, não em DNA, mas em XNA (Xeno Nucleic Acid).
A este propósito pode citar-se Philippe Marlière, biólogo francês e pioneiro no desenvolvimento da biologia sintética e da xenobiologia, e um dos defensores da ideia segundo a qual «a proximidade genética é muito mais perigosa do que a diferença». Embora este seja um tópico não isento de controvérsia, pensa-se que a construção de sistemas biológicos a partir de nucleótidos sintéticos poderia funcionar como uma ferramenta de biossegurança: a natureza do genoma dos organismos sintéticos é de tal maneira distinta que inviabilizaria por completo a transferência horizontal de genes. A interação entre vida sintética e o mundo natural seria possível a um nível ecológico, mas jamais a um nível genético.
No campo da biotecnologia vermelha (aplicações terapêuticas biomédicas e de diagnóstico), o XNA pode ser equacionado como instrumento terapêutico para doenças como o cancro ou as infeções virais: por um lado, não é reconhecido pela maquinaria enzimática do hospedeiro humano, podendo assim atuar como meio de transporte de drogas e agentes ativos; por outro, organismos baseados em XNA não seriam afetados pelos vírus, estando portanto aptos a proteger o hospedeiro. Se mesmo assim continuas relutante em legitimar a criação de vida sintética, aqui fica um excerto do xenobiologista Markus Schmidt. Não para efeitos de convencimento, mas de reflexão: