Nunca nutri especial fascínio pela Geriatria. Não que me desperte qualquer espécie de repulsa ou desdém, é que sempre me encantei mais pelo extremo oposto da idade. Mas nutro um fascínio enorme pelos velhos que os meus avós são, e pelos velhos que os meus pais vão ser.
Três eventos fizeram com que a Geriatria merecesse mais da minha atenção, não necessariamente por esta ordem: ter começado a ler o livro “Ser mortal”, do médico Atul Gawande, foi a ignição (obrigada pai!); ter entrado nos trinta fez-me materializar o quão a contra-relógio os anos passam; e, por fim, há coisa de dois anos, a minha avó paterna ter sido submetida a uma intervenção cirúrgica que a afastou de casa por uns dias, levando a que a família se deparasse inesperadamente com todo um manancial de providências a tomar e rotinas a adaptar. Alguém tinha de olhar pelo meu avô durante aquela meia dúzia de dias porque, apesar de lúcido, já não dispunha da agilidade e da auto-suficiência de outros tempos. Na altura, face às circunstâncias de então, a única alternativa viável foi inscrever temporariamente o meu avô numa instituição para a terceira idade, bastante agradável e perto de casa, até ao regresso da minha avó. Lembro-me de o ter ido visitar e de ter sentido algo que, julgo eu, seria semelhante a um golpe seco em cheio no estômago. As condições eram boas, as assistentes pareceram-me muito atenciosas e dedicadas, mas claramente não tinham mãos a medir para atender a todos quantos por elas chamavam. E qualquer coisa naquela sala de visitas me fez sentir… Triste… Foi difícil encontrar naquele velho mingado e curvado, com um cobertor sobre as pernas e os dedos entrelaçados sobre o cobertor, o homem forte e vivaço que me levava às cavalitas pela mata de Mira d’Aire quando íamos apanhar flores para dar à minha mãe. O meu avô, jogador ávido de cartas, damas, xadrez e afins, um tagarela nato, viu-se rodeado de gente muda, mergulhada em si mesma, de olhar vazio e vago. Na segunda oportunidade que tive de o visitar levei-lhe um livro de palavras cruzadas (que devorava até há bem pouco tempo) e um jornal para ler as gordas, e segredei-lhe que a avó estava quase boa e que não tardava nada íamos buscá-lo. Saí de lá com o coração apertado (apertado!) e a certeza de que, ainda que compreendesse a situação, o meu avô se estava a sentir deixado para trás. Lembro-me de ter pensado no choque que terá sentido quando a realidade se abateu sobre si: a minha avó deixara de ser omnipresente, como sempre havia sido. A minha avó ia estar menos presente e também menos em forma.
Apesar de a arquitectura da minha família estar pouco preparada para os momentos em que um dos meus avós precise de maior assistência, ambos podem considerar-se sortudos. Ainda que nem filhos nem netos vivam por perto, a distância não é muito grande e vamo-nos manobrando para que haja sempre alguém em cima do acontecimento. Têm uma rede social sólida e, com toda a franqueza, creio que não haja quem consiga bater o número de chamadas que a minha avó recebeu quando começou a correr a notícia de que havia sido hospitalizada. Mas há quem não possa desfrutar de tamanha sorte. Há quem esteja só, seja por não ter filhos ou família chegada, seja porque os filhos, apesar de próximos, não têm disponibilidade (de que tipo for) para fazer face às necessidades dos pais, seja porque os filhos se viram obrigados a abrir a “janela de oportunidades” que é o desemprego e optaram por tentar a sorte além-fronteiras, seja por outro motivo qualquer.
A Medicina tropeçou no próprio pé. Nunca na sua História o Homem foi tão longevo, não obstante o menu de opções pelas quais o corpo o pode atraiçoar. Muitos parabéns avós! A velhice é um fenótipo relativamente recente e raro na Natureza, e a mesma Medicina que no-la entregou numa bandeja servida com promessas de um bem-estar centenário, vê-se agora sem hipóteses senão correr a passos largos para dar resposta a todos os desafios que a idade avançada nos coloca. Corre, corre Medicina! Corre que eu, quando for velha, não quero sentar-me numa cadeira com um cobertor sobre as pernas e os dedos entrelaçados sobre o cobertor.
Estima-se que, no mundo industrializado de daqui a trinta anos, existirão tantos octogenários quantas crianças com menos de cinco anos. A isto chama-se rectangularização da sobrevivência. Acima dos oitenta anos uma queda pode acarretar mais riscos para a saúde do indivíduo do que uma metástase, assim como o rol de exames de diagnóstico e o arsenal de armas que automaticamente desembainhamos perante a palavra “cancro” podem fazer mais por encurtar a vida do doente do que por prolongar o seu bem-estar. Segundo o Professor Doutor Pedro Pita Barros, autor do livro Pela Sua Saúde, da Fundação Francisco Manuel dos Santos:
O tipo de cuidados de saúde tem de acomodar a presença de múltiplas condições crónicas e o desejo de continuar a viver na comunidade. A composição dos cuidados de saúde a prestar a uma população envelhecida é diferente, mas não são necessariamente cuidados de saúde mais caros. Os cuidados de saúde apropriados não são sempre a última inovação ou o medicamento mais caro. O acompanhamento do doente crónico idoso de forma regular tem menores custos para o sistema de saúde e garante melhor estado de saúde e melhor qualidade de vida do que tratar episódios agudos dessa doença crónica.
O princípio da autonomia ensina-nos a perguntar aos doentes o que preferem em relação à forma de lidar com a enfermidade. Mas esta questão tem um trago a perversidade quando se trata da velhice. A maioria dos idosos não hesitará em responder que quer passar o tempo que lhe resta em casa, perto dos objectos e fotografias que acumulou ao longo de uma vida. Mas há poucos idosos realmente independentes, sobretudo depois dos oitenta. Uns poderão gozar de alguma autonomia, mas outros dependem de mais. Precisam de mais. Se alguns são simplesmente demasiado frágeis para viver sozinhos, uma mão cheia de gente com condições para tal vê-se obrigada a deixar uma morada que lhe é familiar, porque mantê-la lá exige uma rede tremenda e bem engrenada de gente assalariada, especializada e motivada. E no entretanto as camas das enfermarias vão rebentando pelas costuras com “casos sociais”.
Muitos de nós terão uma ideia do caminho para a saúde na terceira idade (no meu imaginário, este caminho é pavimentado a tijolos amarelos e percorrido em companhia da mais eminente qualidade, eu de sapatinhos encarnados). Sabemos que passa por começar cedo a sensibilizar as pessoas para o que é saudável, a educar crianças e jovens de um modo que os motive para comportamentos mais responsáveis e lhes ensine hábitos promotores da saúde e do bem-estar. Mas se eu não lhe desse as gomas ela não se calava… Sabemos que algures numa encruzilhada estarão as várias formas de prevenção e os cuidados de proximidade. Mas fiquei sem médico de família, a lista de espera para o meu exame é muito longa e eu não tenho como pagá-lo no particular… E vamos andando e comendo bagas e entupindo-nos de tudo o que conste ser rico em anti-oxidantes e ómega-3, fazendo pilates e sprintando de vez em quando para manter a “bomba” a funcionar. Mas o tempo não perdoa e o cérebro minga, os músculos atrofiam, as artérias calcificam e as articulações enferrujam… É ir dançando o tango enquanto a vida não nos prega uma partida.
Não nutro particular fascínio pela Geriatria. Mas nutro um fascínio enorme pelos velhos que os meus avós são, e pelos velhos que os meus pais vão ser (daqui a muitos, muitos anos, que eles envelhecem devagarinho). E a velha que eu vou ser… Ela é qualquer coisa… E a ideia de um dia poder concretizá-la, essa também é fascinante.